Este texto de 2005 ganha especial actualidade em 2014 quando o Beato José de Anchieta é canonizado.
São José de Anchieta
José de Anchieta nasceu em San Cristobal de La Laguna , na ilha de
Tenerife, no Arquipélago das Canárias, em Espanha, a 19 de Março de 1534. Foi o
terceiro filho de Mência Dias de Clavijo Llerena e de João Lopez de Anchieta,
um basco que se refugiara nas Canárias, depois de ter escapado à pena de morte
pela participação numa insurreição contra o governo de Castela. Um dos seus
irmãos foi soldado e outro missionário no Novo Mundo. José devia ter sido
soldado, mas o pai, vendo o menino muito pequeno já a versejar e em latim,
mudou de ideias. Assim, aos catorze anos de idade, José vai para Coimbra e
estudo no Real Colégio de Artes. Começa a fazer versos em latim, língua com que
já tomara contacto, nas Canárias, ao aprender as primeiras letras com os
Dominicanos, e ganha a alcunha de “Canário de Coimbra”.
Em 1549, o primeiro grupo de missionários jesuítas,
encabeçados pelo padre Manuel da Nóbrega, chega ao Brasil, com Tomé de Sousa, o
primeiro governador nomeado para a colónia por Dom João III.
Em 1551, José de Anchieta juntou-se à Companhia de Jesus. É
curioso notar que Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, fora
anteriormente oficial do exército castelhano e foi ele que salvou o pai de José
da pena de morte, facto atrás referido. Uma intensa actividade no Colégio da
Companhia de Jesus dá-lhe progressivamente cabo da coluna vertebral que fica
completamente torta, a ponto de ser visível pelas outras pessoas e provocando
intensas dores.
Em 1553 parte para o Brasil mais um grupo de missionários
jesuítas. Vão como companheiros de viagem transatlântica do segundo governador
do Brasil, Duarte da Costa, e partem a 8 de Maio. No grupo de jesuítas vai o
Irmão José de Anchieta. Quando chegam ao Brasil, os jesuítas dividem-se em
grupos, seguindo cada qual para um dos colégios que o padre Manuel da Nóbrega e
os seus companheiros já tinham começado a estabelecer. José de Anchieta segue
com um grupo que vai para sul, em direcção a São Vicente. Projectando estender
a missionação ao Paraguai, o padre Manuel da Nóbrega manda erguer uma choupana
para lhes servir de base, num planalto, um pouco para o interior. A choupana é
construída a 24 de Janeiro de 1554 e inaugurada com missa no dia seguinte, a
festa da conversão de São Paulo. Esta choupana é, pois, o núcleo de onde
germinará a grande metrópole que é hoje São Paulo. José de Anchieta é um os treze jesuítas
fundadores desta grande cidade. O trabalho de anúncio aos índios e de
administração dos sacramentos está a começar. José de Anchieta, que continua e
continuará toda a vida com as costas deformadas, dá-nos conta do seu trabalho e
do seu estado de espírito:
“Até
agora tenho estado em
Piratininga. Ocupo-me em ensinar gramática em três classes
diferentes. E, às vezes, estando eu dormindo, me vêm a despertar para fazer-me
perguntas; e em tudo isto parece que saro; e assim é, porque, em fazendo conta
que não estava enfermo, comecei a estar são; e podeis ver minha disposição pelas
cartas que escrevo, as quais parecia impossível escrever em Coimbra.”
A boa preparação
académica de Anchieta faz dele um mestre entre os outros jovens jesuítas do
grupo.
Os índios são instruídos e vão chegando atraídos pelas
novidades que os jesuítas fazem acontecer. Anchieta ensina – são principalmente
as crianças que os portugueses conseguem ensinar – a escrever, a ler, a
catequese, o canto! José de Anchieta, como é hábito dos jesuítas em toda a sua
acção na América do Sul, esforça-se para promover e dignificar os índios,
opondo-se à escravização destes que a outros tanta agrada!
Dominando já fluentemente o português, o castelhano e o
latim, José de Anchieta aprende a língua tupi, falada por aqueles índios, para
melhor se poder relacionar com eles, compreendê-los e fazer-se compreender;
para ajudar as outras pessoas da região a relacionarem-se também, ele escreve
uma gramática da língua tupi, que viria a ter grande utilidade naquele
território. Esta primeira gramática de língua tupi foi editada pela primeira
vez em Coimbra, em 1595.
Em 1555, os franceses conseguem instalar-se em Guanabara. São
calvinistas e anseiam por tomar as terras brasileiras: politicamente é uma
colónia de grande extensão, do ponto de vista religioso, trata-se de expulsar
os portugueses católicos. Os seus grandes aliados são os índios tamoios que
odiavam os portugueses que tentavam escravizá-los.
Em 1562, já a então vila de São Paulo era um lugar de alguma
riqueza agrícola, com terras roubadas à selva e transformadas em hortas e pomares,
os franceses e seus aliados atacam os portugueses, que têm como aliados outras
tribos de índios. São Paulo resiste, mas o Padre Manuel da Nóbrega e o irmão
José de Anchieta compreendem que a situação tem que ser resolvida de outra
forma, pois enquanto se escravizarem índios haverá guerra. Partem os dois
jesuítas sozinhos ao encontro das aldeias dos tamoios. Falam das intenções
pacíficas e fazem promessas de sã convivência, em nome dos colonos e dos
militares. Eles, jesuítas, sempre se haviam oposto à escravatura.
São José de Anchieta entre os índios
Rumam os dois a Iperoig. Não são mortos logo à chegada,
porque Anchieta fala a língua dos índios e com doces palavras expõe-lhes ao que
vêm. As negociações, com os dois jesuítas na aldeia índia, negociando com
vários chefes índios, uns defendendo a guerra, outros aceitando negociar a paz,
estendem-se ao longo de sete meses. Este tempo vai servindo para José de
Anchieta, que conhece a língua dos índios, ensinar catequese às crianças e
também aos adultos. Ensina-lhes canções que ele próprio compôs ou traduziu para
a língua tupi.
Com muito tempo livre, Anchieta entretém-se a escrever na
areia. Compõe em latim o poema “A Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus”. Ele
decora o poema, com 4172 versos e escrevê-lo-á quando voltar. O latim
renascentista de Anchieta é considerado, por especialistas, o melhor da sua
época.
Em 1563 escrevia José de Anchieta ao Geral da Companhia: “Eu me achei em Piratininga um pouco de
tempo a visitar nossos discípulos, os quais me desejavam lá muito, porque me
têm por bom cirurgião”. De facto, não havia médicos no Brasil de então
e os jesuítas foram médicos e cirurgiões de colonos e de índios. O caso de José
de Anchieta é especial, pela perícia que usou, destacando-se como bom
cirurgião. Mas não só. Deixou importantíssimas anotações sobre a fauna e a
flora e sua utilização em medicina, bem como muitos métodos curativos e
remédios usados pelos índios.
A paz estabelecida não é duradoura e novamente as partes em
conflito se defrontam, no Rio. José
de Anchieta parte para o norte, para Salvador. Vai relatar a situação ao novo
governador, mas vai também receber a sua ordenação presbiteral. É ordenado
padre em 1566, com trinta e dois anos de idade. Poucos meses depois, os
franceses são definitivamente expulsos e as tribos hostis são pacificadas. A
batalha final marca o local onde começa a crescer a cidade do Rio de Janeiro.
São José de Anchieta na selva brasileira
Para além
do poema referido, o padre Anchieta escreveu em português, castelhano,
latim e tupi, poesia, prosa ou teatro, sobre história, filosofia ou religião. É
considerado o primeiro autor literário brasileiro. Como meio de transmissão da
mensagem evangélica escreveu muitas peças de teatro, através das quais
transmitia valores e princípios e transmitia a doutrina cristã.
Milhares de índios abraçaram a Boa Nova e receberam o
Baptismo pela mão de José de Anchieta.
O padre Manuel da Nóbrega falece em 1570 e José de Anchieta
vê-se mais responsável pela actividade da Companhia, nomeadamente em relação
aos colégios jesuítas. Quando finalmente pensa que se pode dedicar apenas a
ensinar catequese e a dar aulas, aquilo que mais gostava de fazer, em 1577 é
nomeado provincial da Companhia para o Brasil. Para o incansável padre é mais
um ror de responsabilidades e trabalhos. Tem de visitar regularmente todas as
missões e colégios da Companhia, mas continua a vestir-se de forma simples e a
andar descalço, como sempre fizera. O direito que tinha, por tradição, de
fazer-se transportar, carregado – por índios, claro – é dispensado.
Em 1584 pede dispensa do cargo, por motivos de saúde. Não
esqueçamos as dificuldades que o acompanham, desde a juventude, devido à mal
formação adquirida da sua coluna vertebral. A nomeação do seu substituto só
chega de Roma em 1587. Ainda assim, outras tarefas de menor responsabilidade
são-lhe ainda atribuídas, até 1595, quando, muito cansado e doente, repousa
algum tempo, até o Senhor o chamar para o repouso final, na glória dos
bem-aventurados, a 9 de Junho de 1597, em Reritiba. Os seus
restos mortais foram transportados de Reritiba para Vitória, num percurso de
noventa quilómetros, acompanhados por milhares de índios. A cidade de Reritiba
denomina-se actualmente Anchieta.
Numerosos testemunhos asseguram milagres relacionados com
José de Anchieta, em vida e depois de falecido. Por exemplo, que costumava levitar
quando entrava em êxtase. O
facto de os testemunhos serem oculares dificultou o andamento do seu processo
de canonização, pois para este são necessárias provas documentais que possam
ser estudadas e avaliadas.
Foi beatificado em 22 de Junho de 1980 por Sua Santidade
João Paulo II.
In 'Os Santos de João Paulo II', Livro I, Orlando de Carvalho, Lusodidacta, 2005