Ternura de Criança |
O dia estivera quente, o fim de tarde continuava morno e sem
vento, condições ideais para fazer uma caminhada. Numa esquina havia um número
elevado de pessoas, paradas, olhando-se entre si estranhamente. Outras pessoas,
de todas as direcções encaminhavam-se para o mesmo lugar, algumas muito
lentamente, de olhos no chão. Uma sirene de ambulância fez-se ouvir. Uma mulher
corre para o meio da rua a acenar aos bombeiros para onde deviam seguir e eu
continuava sem perceber. Depois um homem veio completar o trabalho da mulher,
auxiliando os bombeiros a dirigirem-se para o local devido. Chegamos, eu vou um
pouco mais à frente. Alguns dos mirones olham para cima. Começo a ter uma ideia
do que se podia passar, mas só uma ideia. Um bombeiro grita, respondendo a
alguém:
- A melhor ajuda que podem dar é afastar-se.
Indago junto de um mirone, como eu.
Uma criança caíra do oitavo andar. Eu vi-a, ao longe, por
entre os braços, pernas e material dos bombeiros. O tronco nu ainda mexia. Podia
ser minha neta, aquela criança. Alguns oitenta centímetros de gente, tronco
meio despido com a queda. Eu não podia continuar ali. Ela também não. Saímos logo.
Ainda esclarecemos de modo sucinto algumas pessoas que nos inquiriram. Uma senhora
que recordo, só conseguiu apontar para dentro do carro, articulando algumas
palavras para dizer que a pequena criança que lá estava era sua, depois agarrou-se
ao peito em evidente esforço para não desfalecer.
Nós continuámos a caminhar, não podíamos parar, porque o
corpo estava completamente dominado pela emoção. Ela tirou da mala um Lexotan e
água e continuámos, sem parar. Os músculos, o peito, a garganta, tudo apertava.
Passados largos minutos conseguimos finalmente começar a rezar, sempre
caminhando. Ou a vida, ou o mínimo sofrimento para aquela criança, ou o que
Deus melhor decidisse.
Completámos um longo giro e voltámos à origem. Já não
consegui contar todos os carros de bombeiros e da polícia que lá havia, então. A
zona estava isolada. Perguntei a umas senhoras do cabeleireiro que tinham vindo
para a porta. A criança sucumbira. Aliás era visível no rosto de todos. Uma tristeza
sem fim invadira o bairro.
Passo ao que me parece ser a face mais triste deste
acontecimento. Eu fiquei em choque, ela ficou comigo em choque, tanta gente que
se juntou… e todos pareciam em choque. Era a doçura de uma criança, a criança
que todos fôramos um dia e em que nos projectamos por um filho, um sobrinho, um
neto, o filho de um amigo ou de um vizinho. Enquanto rezara caminhando, não me
saíam da cabeça os judeus e os palestinianos, e todos os outros conflitos mais
na moda, mas que podemos observar atentando a judeus e palestinianos. Judeus matam
a frio crianças palestinianas e palestinianos matam a frio crianças judias. Será
que eles não sentem? Eles não têm coração para amar? Matam crianças dentro das
suas casas, nos hospitais, nas escolas…
Aquela criança do bairro… ainda não sei quem era. O mais
certo é não a conhecer. Como tantos dos que ali estavam, pois nos nossos dias
ninguém se conhece nos bairros. Mas todos podem sentir a doçura das crianças. Não
sei se os pais eram judeus ou árabes, ciganos ou pretos, chineses, brasileiros
ou ucranianos, nem preciso de saber, era gente e era criança. E morreu. Condolências
à família. Que Deus receba a criança na sua infinita misericórdia e console a
família que ficou órfã do seu pequenito.
Quem não se condói com o sofrimento ou a morte de uma
criança… não deve ser gente, não devia poder usar o direito de cidadania.
Os políticos e os generais que mandam matar, matar a torto e
a direito, matar crianças, mesmo quando são apenas um efeito colateral. A inocência
de uma criança destruída, esmagada, ensanguentada, como efeito colateral, porque
estava acidentalmente no caminho da bala que ia matar um suposto inimigo.
Judeus e palestinianos, não são mais que o exemplo que todos
compreendem. Mas morrem tantas crianças todos os dias em guerras estúpidas que
conduzem ao Inferno os políticos e os generais que as comandam! Tantas crianças
que morrem para que algumas das pessoas mais ricas do mundo possam enriquecer
ainda mais, morrer no fim, como qualquer humano e apodrecer depois no Inferno
por terem andado a matar crianças.
Apetecia-me pensar que todos deviam morrer uma criança para
se converterem ao Amor, mas não vale a pena, acho que continuariam intolerantes
a defender as misérias que possuem e que cá deixarão quando morrerem.