Quando em matéria grave de Doutrina algum
bispo, ou pessoa que ocupe um alto lugar na Igreja, pode interpelar
directamente o Papa, colocando-lhe a sua dúvida ou dúvidas, e a resposta do
Santo Padre constitui matéria doutrinal.
Usa-se a palavra latina dubium para exprimir a dúvida, ou se
forem mais que uma, usa-se o plural de dubium,
em latim, dubia.
Temerosos dos resultados do Sínodo que
agora decorre em Roma, e baseando-se em afirmações de diversos outros bispos, com
diversas sensibilidades, cinco cardeais colocaram cinco dubia ao Papa Francisco.
Antes de prosseguir, apoiemo-nos no
Evangelho, para entendermos o processo à luz da Palavra ensinada pelo Filho de
Deus encarnado.
Também Jesus foi interpelado no seu tempo. Comecemos
por este exemplo que Mateus nos deixou no Evangelho (Mt 19,16-22)
Um
jovem aproximou-se e disse a Jesus:
- Mestre, que devo fazer de bom para
alcançar a vida eterna?
Jesus respondeu:
- Porque me interrogas sobre o que é bom?
Bom é um só. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos.
O homem perguntou:
Quais mandamentos?
Jesus respondeu:
- Não matarás; não
cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; honra teu
pai e tua mãe; e ama o teu próximo como a ti mesmo.
O jovem disse a
Jesus:
- Tenho observado
todas essas coisas. O que é que ainda me falta fazer?
Jesus respondeu:
- Se queres ser
perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um
tesouro no Céu. Depois vem e segue-Me.
Ao
ouvir isto, o jovem retirou-se cheio de tristeza, porque era muito rico.
Este
jovem era bem intencionado na interpelação a Jesus, embora depois tenha tido
dificuldade em seguir o ensinamento do Mestre. Também conhecemos muitos outros
exemplos em que Jesus é interpelado, mas maliciosamente. Também em Mateus temos
desses exemplos. Detenhamo-nos em (Mt 22,16-21).
Naquele
tempo, os fariseus reuniram-se para deliberar sobre a maneira de surpreender
Jesus no que dissesse. Enviaram-Lhe alguns dos seus discípulos, juntamente com
os herodianos, e disseram-Lhe:
-
Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas, segundo a verdade, o caminho de
Deus, sem te deixares influenciar por ninguém, pois não fazes acepção de
pessoas. Diz-nos o teu parecer: É lícito ou não pagar tributo a César?
Jesus,
conhecendo a sua malícia, respondeu:
-
Porque Me tentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo.
Eles
apresentaram-Lhe um denário e Jesus perguntou:
De
quem é esta imagem e esta inscrição?
Eles
responderam:
- De
César.
Disse-Lhes
Jesus:
-
Então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Não
existe mal em ter dúvidas e em as colocar, ou nelas meditar, mas as dúvidas
também podem ser colocadas para pressionar e fazer cair no ridículo a pessoa a
quem são dirigidas.
Nos
casos que Mateus nos relata, vimos o jovem rico, cheio de boas intenções, no
primeiro caso, e umas víboras que tentam desacreditar o Senhor no segundo caso.
Acontece
que o Papa Francisco está a realizar na Igreja uma série de correcções à
prática que vinha sendo correntemente adoptada, em muitos casos ao longo de
séculos, e que eram desvios aos ensinamentos de Jesus, reintroduzindo uma
prática tanto mais evangélica quanto possível. Tal agrada à generalidade do
povo de Deus, mas desagrada a muitos que sentem fugirem-lhes muitos
privilégios, privilégios injustos que foram adquirindo por via dessas más
interpretações do Evangelho.
Jesus, a
propósito dos fariseus que tentavam impor regras da sua autoria (Cf. Mt 23,4),
ensinou:
Mas
não imiteis as suas acções, pois eles dizem e não praticam. Amarram pesados
fardos e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos
a movê-los, nem sequer com um dedo.
À
luz desta introdução com textos bíblicos, poderemos analisar mais adiante se os
Cardeais que colocaram as dubia ao
Papa estavam com boas intenções ou tentavam apanhá-lo em falso.
Os cardeais
são todos eles conhecidos pela forte oposição à regeneração evangélica do Papa
Francisco. São muito conhecidos nos meios teológicos, mas os seus nomes pouco
ou nada dizem ao fiel comum. Os seus nomes:
Walter
Brandmüller, cardeal emérito de 94 anos, e Raymond Leo Burke, cardeal
norte-americano de 75 anos, que encabeçam este movimento das dubia. Juan Sandoval Íñiguez, Cardeal de
Guadalajara, de 90 anos, Robert Sarah, Cardeal guineense de 78 anos e Joseph
Zen Ze-kiun, Bispo emérito de Hong-Kong, com 91 anos.
Usaremos
traduções simplificadas das dubia e
das respostas, que copiámos ou adaptámos de textos fidedignos, da Santa Sé ou
de agências acreditadas pela Igreja.
Eis as 5 dubia e
respostas
Dubium 1. “É possível que a Igreja ensine hoje doutrinas
contrárias às que ensinou anteriormente em matéria de fé e de moral, seja pelo
Papa ex cathedra, seja nas definições de um Concílio ecuménico, seja no
magistério ordinário universal dos bispos espalhados pelo mundo (cf. Lumen
Gentium 25)?”
Resposta do Papa Francisco
a)
A resposta depende do significado que atribuem à palavra
"reinterpretar". Se for entendida como "interpretar
melhor", a expressão é válida. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II
afirmou que é necessário que, através do trabalho dos exegetas - e eu
acrescentaria, dos teólogos - "o juízo da Igreja amadureça" (Concílio
Ecuménico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 12).
b)
Portanto, se é verdade que a Revelação divina é imutável e sempre vinculante, a
Igreja deve ser humilde e reconhecer que nunca esgota sua insondável riqueza e
precisa crescer na compreensão.
c)
Consequentemente, também cresce na sua compreensão do que ela mesma afirmou no
seu Magistério.
d)
As mudanças culturais e os novos desafios da história não alteram a Revelação,
mas podem estimular-nos a expressar melhor certos aspectos da sua riqueza
transbordante que oferece sempre mais.
e)
É inevitável que isso possa levar a uma melhor expressão de algumas afirmações
passadas do Magistério, e isso de facto aconteceu ao longo da história.
f)
Por outro lado, é verdade que o Magistério não é superior à Palavra de Deus,
mas também é verdade que tanto os textos da Escritura quanto os testemunhos da
Tradição precisam de uma interpretação que permita distinguir a sua substância
perene dos condicionamentos culturais. Isso é evidente, por exemplo, em textos
bíblicos (como Êxodo 21, 20-21) e em algumas intervenções magisteriais que
toleravam a escravidão (cf. Nicolau V, Bula Dum Diversas, 1452). Esse não é um
argumento secundário, dada a sua íntima conexão com a verdade perene da
dignidade inalienável da pessoa humana. Esses textos precisam de uma
interpretação. O mesmo se aplica a algumas considerações do Novo Testamento
sobre as mulheres (1 Coríntios 11, 3-10; 1 Timóteo 2, 11-14) e a outros textos
da Escritura e testemunhos da Tradição que não podem ser repetidos hoje.
g)
É importante enfatizar que o que não pode mudar é o que foi revelado "para
a salvação de todos" (Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição
Dogmática Dei Verbum, 7). Portanto, a Igreja deve discernir constantemente o
que é essencial para a salvação e o que é secundário ou menos directamente
relacionado a esse objectivo. Interessa-me recordar o que São Tomás de Aquino
afirmou: "quanto mais se vai aos particulares, mais aumenta a
indeterminação" (Summa Theologiae 1-1 1, q. 94, art. 4).
h)
Por fim, uma única formulação de uma verdade nunca pode ser compreendida
adequadamente se for apresentada isoladamente, isolada do contexto rico e
harmonioso de toda a Revelação. A "hierarquia das verdades" também
implica colocar cada verdade em conexão adequada com verdades mais centrais e
com o ensino da Igreja como um todo. Isso pode levar a diferentes maneiras de
expor a mesma doutrina, mesmo que "para aqueles que sonham com uma
doutrina monolítica defendida por todos sem cambiantes, isso pode parecer uma
dispersão imperfeita. Mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diferentes aspectos da inesgotável riqueza do Evangelho
(Evangelii gaudium, 40). Qualquer corrente teológica tem os seus riscos, mas
também as suas oportunidades.
Dubium 2. “Será possível que, em certas circunstâncias, um
pastor possa abençoar uniões entre pessoas homossexuais, dando, assim, a
entender que o comportamento homossexual enquanto tal não seria contrário à lei
de Deus e ao caminho da pessoa para Deus? Ligado a este dubium, é
necessário levantar um outro: continua a ser válido o ensinamento defendido
pelo magistério ordinário universal, segundo o qual todo o acto sexual fora do
matrimónio, e em particular os actos homossexuais, constitui um pecado
objectivamente grave contra a lei de Deus, independentemente das circunstâncias
em que se realiza e da intenção com que é praticado?”
Resposta do Papa Francisco
a)
A Igreja tem uma concepção muito clara do matrimónio: uma união exclusiva,
estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta a gerar
filhos.
Somente
essa união pode ser chamada de "matrimónio". Outras formas de união o
realizam apenas "de maneira parcial e analógica" (Amoris laetitia
292), portanto não podem ser chamadas estritamente de "matrimónio".
b)
Não se trata apenas de uma questão de nomes, mas a realidade que chamamos de
matrimónio tem uma constituição essencial única que requer um nome exclusivo,
não aplicável a outras realidades. É, sem dúvida, muito mais do que um mero
"ideal".
c)
Por essa razão, a Igreja evita qualquer tipo de rito ou sacramental que possa
contradizer essa convicção e levar a entender que se reconheça como matrimónio
algo que não o é.
d)
Todavia, no nosso relacionamento com as pessoas, não devemos perder a caridade
pastoral, que deve permear todas as nossas decisões e atitudes. A defesa da
verdade objectiva não é a única expressão dessa caridade, que também é composta
de gentileza, paciência, compreensão, ternura e encorajamento. Portanto, não
podemos ser juízes que apenas negam, rejeitam, excluem.
e)
Portanto, a prudência pastoral deve discernir adequadamente se existem formas
de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam um conceito erróneo
de matrimónio. Pois, quando se pede uma bênção, está a expressar-se um pedido
de ajuda a Deus, uma súplica para poder viver melhor, uma confiança num Pai que
nos pode ajudar a viver melhor.
f)
Por outro lado, embora existam situações que, de um ponto de vista objectivo,
não são moralmente aceitáveis, a mesma caridade pastoral exige que não tratemos
simplesmente como "pecadores" outras pessoas cuja culpa ou
responsabilidade pode ser atenuada por vários factores que influenciam a
imputabilidade subjectiva (cf. São João Paulo II, Reconciliatio et Paenitentia,
17).
g)
As decisões que podem fazer parte da prudência pastoral em determinadas
circunstâncias não precisam necessariamente de se tornar uma norma. Ou seja,
não é conveniente que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra
estrutura eclesial habilite constante e oficialmente procedimentos ou ritos
para todo tipo de questão, pois tudo "que faz parte de um discernimento
prático diante de uma situação particular não pode ser elevado ao nível de
norma", porque isso "daria lugar a uma casuística insuportável"
(Amoris laetitia 304). O Direito Canónico não deve e não pode abranger tudo,
nem as Conferências Episcopais, com seus vários documentos e protocolos, devem
pretender isso, uma vez que a vida da Igreja flui por muitos canais além dos
normativos.
Dubium 3. “O Sínodo dos Bispos que se realizará em Roma, e que
inclui apenas uma representação escolhida de pastores e de fiéis, exercerá, nas
questões doutrinais ou pastorais sobre as quais será chamado a exprimir-se, a
autoridade suprema da Igreja, que pertence exclusivamente ao Romano Pontífice
e, una cum capite suo, ao Colégio dos Bispos (cf. Cân. 336 C.I.C.)?”
Resposta do Papa Francisco
a)
Não obstante reconheçam que a autoridade suprema e plena da Igreja seja
exercitada seja pelo Papa em virtude do seu cargo, seja pelo colégio dos bispos
com a sua cabeça o Romano Pontífice (Cfr. Concílio Ecuménico Vaticano II,
Constituição dogmática Lumen gentium, 22), com essas mesmas perguntas os
senhores manifestam a própria necessidade de participar, de expressar
livremente o seu parecer e de colaborar, pedindo assim uma forma de
"sinodalidade" no exercício do meu ministério.
b)
A Igreja é um "mistério de comunhão missionária", mas esta comunhão
não é somente afectiva ou etérea, mas implica necessariamente uma participação
real: não só a hierarquia, mas todo o Povo de Deus em modos diversos e em
diferentes níveis pode fazer ouvir a própria voz e sentir-se parte do caminho
da Igreja. Neste sentido, podemos dizer que a sinodalidade, como estilo e
dinamismo, é uma dimensão essencial da vida da Igreja. Sobre este ponto, disse
coisas muito belas São João Paulo II na Novo
Millennio Ineunte.
c)
Outra coisa é sacralizar ou impor uma determinada metodologia sinodal que
agrada um grupo, transformá-la em norma e percurso obrigatório para todos,
porque isto levaria somente a “congelar” o caminho sinodal, ignorando as
diversas características das várias Igrejas particulares e a variegada riqueza
da Igreja universal.
Dubium 4. “Poderia a Igreja, no futuro, ter a faculdade de
conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, contradizendo, assim, que a
reserva exclusiva deste sacramento aos homens baptizados pertence à própria
substância do Sacramento da Ordem, que a Igreja não pode mudar?”.
Resposta do Papa Francisco
a)
"O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial diferem
essencialmente" (Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição dogmática
Lumen gentium, 10). Não é oportuno apoiar uma diferença de grau que implique
considerar o sacerdócio comum dos fiéis como algo de "segunda
categoria" ou de menor valor ("um grau inferior"). Ambas as
formas de sacerdócio se iluminam e se amparam reciprocamente.
b)
Quando São João Paulo II ensinou que é preciso afirmar "de modo
definitivo" a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às
mulheres de modo algum estava a denegrir as mulheres e a conferir um poder
supremo aos homens. São João Paulo II afirmou também outras coisas. Por
exemplo, que quando falamos do poder sacerdotal “estamos no âmbito da função,
não da dignidade e da santidade”. (São João Paulo II, Christifideles laici,
51). São palavras que não colhemos suficientemente. Afirmou ainda claramente
que não obstante só o sacerdote presida à Eucaristia, as tarefas "não dão
justificação à superioridade de uns sobre os outros" (São João Paulo II,
Christifideles laici, nota 190; Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé,
Declaração Inter Insigniores, VI). Afirmou também que se a função sacerdotal é
"hierárquica", não deve ser compreendida como uma forma de domínio,
mas “é totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo” (São João Paulo
II, Mulieris dignitatem, 27). Se isto não for compreendido e não forem tiradas
as consequências práticas dessas distinções, será difícil aceitar que o
sacerdócio seja reservado só aos homens e não poderemos reconhecer os direitos
das mulheres ou a necessidade de que elas participem, de vários modos, na
condução da Igreja.
c)
Por outro lado, para sermos rigorosos, reconheçamos que ainda não foi
desenvolvida exaustivamente uma doutrina clara e com autoridade sobre a
natureza exacta de uma "declaração definitiva". Não é uma definição
dogmática, e mesmo assim deve ser aceite por todos. Ninguém pode contradizê-la
publicamente e todavia pode ser objecto de estudo, como no caso da validade das
ordenações na Comunhão anglicana.
Dubium 5. “Pode receber validamente a absolvição sacramental um
penitente que, embora admitindo um pecado, se recusar a fazer, de qualquer
forma, o propósito de não o voltar a cometer?”
Resposta do Papa Francisco
a)
O arrependimento é necessário para a validade da absolvição sacramental e
implica a intenção de não pecar. Mas aqui não há matemática e devo recordar
mais uma vez que o confessionário não é uma alfândega. Não somos os donos, mas
humildes administradores dos Sacramentos que nutrem os fiéis, porque estes dons
do Senhor, mais do que relíquias a conservar, são auxílio do Espírito Santo
para a vida das pessoas.
b)
Existem muitas maneiras de expressar arrependimento. Muitas vezes, nas pessoas
que estão com a autoestima muito ferida, declararem-se culpadas é uma tortura
cruel, mas só o acto de se aproximarem da confissão é uma expressão simbólica
de arrependimento e de busca da ajuda divina.
c)
Quero também recordar que “às vezes nos custa muito dar espaço na pastoral ao
amor incondicional de Deus" (Amoris laetitia 311), mas se deve aprender.
Seguindo São João Paulo II, defendo que não devemos pedir aos fiéis propósitos
de correcção demasiados detalhados e firmes, que no final acabam por ser abstractos
ou até mesmo narcisistas, mas inclusive a previsibilidade de uma nova queda
"não prejudica a autenticidade do propósito" (São João Paulo II,
Carta ao Card. William W. Baum e aos participantes do curso anual da
Penitenciaria Apostólica, 22 de Março de 1996, 5).
d)
Por fim, deve ser claro que todas as condições que normalmente se colocam na
confissão geralmente não são aplicáveis quando a pessoa se encontra numa
situação de agonia ou com as suas capacidades mentais e psíquicas muito
limitadas.