Nunca naquela aldeia do interior de Portugal se tinha visto uma bicicleta, nem ao natural, nem em imagens, nem se tinha ouvido falar de tal coisa.
Estava-se em finais da monarquia ou princípios da república, mais coisa, menos coisa.
Um rapaz de uma ladeia ali perto, que andava a arrastar a asa a uma moçoila dali, lembrou-se de comprar uma bicicleta, coisa que já tinha visto em Coimbra, e pois, montado numa máquina daquelas, certamente teria mais facilidade em conquistar a rapariga que já amava.
Dito e feito, no Domingo de manhã, mesmo à hora da missa estar para começar, quando aquela que ele queria tocar no coração estivesse com a família e as amigas já no adro da igreja, ele iria passar num galanteio deveras exibicionista.
E o efeito da bicicleta foi de arromba!
Foi a moça e foram as amigas atrás da bicicleta, foram os rapazes da aldeia, jovens e menos jovens, até alguns mais velhos que se mexiam melhor, à mistura com os cães a ladrar, enfim, a aldeia foi em peso atrás da bicicleta. Bem, não foram todos: o padre e o sacristão ficaram para a missa e mais um ou outro fiel.
Indignado, o padre tratou de ir saber que máquina era aquela, logo nesse Domingo à tarde.
E à noite, quando todos se preparavam para ir para a cama, ou alguns já lá estariam, tocam os sinos a rebate. Em alvoroço, todos acorrem à igreja, onde as portas estavam abertas e a iluminação toda acesa.
Foram entrando, enquanto se deparavam com o padre, no altar paramentado de negro. Quem teria morrido, perguntavam-se?
Com a igreja cheia, o padre falou:
- Irmãos, o demónio anda à solta aqui na aldeia! Aquela máquina que viram hoje de manhã, com um diabrete montado nela, é uma das maiores obras de Satanás. Todos estão proibidos de se aproximar de máquinas daquelas. Estive a rezar e percebi que o Demónio inventou aquela máquina para acabar com os fiéis na missa. Quem for por Deus não volta a chegar perto de uma coisa daquelas e vem à missa. Quem se quiser sujeitar à tentação do maligno e olhar para uma bicicleta, que só existe para afastar os filhos de Deus da Santa Igreja, pois que siga o trilho da perdição.
Assim acabou a vida das bicicletas naquela aldeia, pois aquilo era obra do diabo, tão grande que as pessoas até deixavam de ir à missa. Pobre do padre que não foi capaz de guiar as suas ovelhas com melhor discernimento e motivação para o encontro com o Senhor.
Orlando de Carvalho
História ouvida num retiro.
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