quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Ao meu avô João Baptista

São João Baptista seja advogado do meu avô lá no Alto.




Caravaggio - Decapitação de São João Baptista

João Baptista começou por ser um Dom de Deus a seus pais, Isabel e Zacarias um casal que há muitos anos teria ultrapassado a idade fértil para a procriação. João é a consolação e a alegria de um casal que, quando se julgava abandonado ou castigado por Deus, vê a misericórdia de Deus que lhes concede o seu maior anseio humano.

Ainda antes de nascer, João começa a realizar a sua missão: Profeta do Antigo Testamento, ele deve anunciar Jesus. Ao contrário dos seus antecessores na História da Salvação, João não vem anunciar a vinda do Messias e encorajar à espera por essa vinda, cabe-lhe a honra de anunciar:
- Eis o Messias. Já chegou. A espera de Israel terminou. A expectativa da Humanidade e de toda a Criação está a concretizar-se. A vida eterna sucede à morte. Aquele que traz o conhecimento do destino e finalidade da Criação e a chave do acesso à vida eterna e à proximidade de Deus já chegou.
É com sete ou oito meses de vida, portanto, um ou dois meses antes de nascer, que João começa a cumprir o seu desígnio profético: de dentro do útero da mãe ele consegue cumprir essa missão plenamente no que a Isabel diz respeito.

Quando Maria, mãe ainda grávida de Jesus, e Isabel grávida de João se encontram frente a frente, os seus úteros com os seus bebés frente a frente, quase se tocando, Isabel sente um movimento do seu bebé e, por meio do Espírito Santo, percebe que essa dinâmica jubilosa dentro de si significa que ela e o seu filho estão perante o Filho do Altíssimo desde há muito prometido:
- Veio a mim a Mãe do meu Senhor!

O nascimento de João que celebramos a 24 de Junho, seis meses antes da celebração do nascimento de Jesus a 25 de Dezembro, de acordo com o anúncio do anjo Gabriel, é mais um sinal do seu estatuto privilegiado 

Acerca da oração do Rosário (1)


Matthias Grünewald (provável autor da pintura)

Quando rezamos o final de cada mistério, recitamos o Glória e depois:
- Ó Maria concebida sem pecado
- Rogai por nós que recorremos a vós.
- Ó meu bom Jesus
- Perdoai-nos e livrai-nos do fogo do Inferno.
Muitas pessoas rezam desta forma, outras omitem o adjectivo ‘bom’ e dizem apenas ‘Ó meu Jesus’.
Acho que é tão bonito, tão terno, aproveitar qualquer oportunidade para ter esta intimidade com Jesus que proponho a todas as pessoas que o façam também, com amor e ternura.

Orlando de Carvalho

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

NOTA DIFÍCIL





Há anos casei. A minha mulher ficou à espera de bebé. Passados 3 meses foi informada que tinha que fazer um aborto, pois corria risco de vida. Nem admitiu. Saiu da marquesa imediatamente. Não foi fácil ver a família de relações cortadas. Todos sem excepção adoravam a Isabel, mas o egoísmo foi de tal forma que ninguém defendeu a vida do Zé Maria, nosso filho…!
Eu… passei a ser o culpado de tudo… mas a gravidez foi alegre e difícil pois repouso cuidados e muita cautela, pois a Isabel já apresentava fraqueza, anemia, etc.

O Zé Maria nasceu dia 18 de Maio.

Nesse dia, há 12 anos, a Isabel fraca, mas sorridente olhou com os olhos cheios de lágrimas… a primeira e a última vez para o nosso filho. Não houve tempo para falar, dar-lhe um beijo, pegá-lo ao colo. Morreu naquele instante, estávamos os três juntos, mas ela partiu. Salvou a vida do Zé, sorriu e partiu. Deu a VIDA por ele. Não consigo descrever mais que isto… minutos depois… o Zé Maria não estava bem. Incubadora… 

Eu, perdido, sozinho, com os pais dela a culparem-me por tudo o que acontecia… enfim… olhando para aquele ser tão pequeno, ganhei forças para tratar do enterro da minha mulher. Pedi ao Padre para que a missa fosse de Acção de Graças, pois não conheci Amor maior aqui na terra… Dar a Vida… Foi cremada. Pouca gente. Fui olhado de lado… mas cá dentro não me saía da cabeça o Zé Maria… corri para o hospital nesse mesmo dia. Diagnóstico grave. De ordem variada. Ia ficar por lá uns tempos. Não hesitei por um segundo largar tudo e passar todo o tempo possível ao seu lado. Conversei, chorei, peguei ao colo onde tantas vezes adormecia, habituou-se a tanto…tubos, imobilizadores dos membros inferiores… mas… que privilégio… o baptizado ali… o primeiro sorriso, mudar a primeira fralda com um bando de enfermagem e médicos a gozarem o prato, mas a ajudarem sempre, o primeiro biberão ou mamadeira, como se diz aqui no Brasil. O meu pequeno Zé foi crescendo, engordando, palrando, reconhecia a minha voz à distância… dobrava o riso, brincava com as minhas bochechas, estendia os braços quando me via, agarrava a minha cara, esperava brincadeiras e assobios, já dobrava o riso, gargalhávamos juntos, aninhava-se nos meus braços quando ninguém o conseguia acalmar das dores, e com um beijo uma festa, afagando suas costas, a sua mão papuda no meu queixo… e embalava no sono. Às vezes eu podia ficar até depois do jantar.

Ao fim de 9 meses fui despedido! Sem dó nem piedade. O meu filho agravara seu estado… e foi numa noite calma que entrei na unidade de cuidados intensivos pediátricos, chamado com urgência. O médico falou. Não ouvi metade… apenas percebi, que o meu Zé, companheiro da Vida, já tão cheia de tanto, estava calado… sossegado… fraco… Aproximei-me. Estava de olhos abertos. Sorriu… eu chorando sorri também. Peguei nele, ninguém me impediu. Duas enfermeiras olhavam. Em silêncio… Uma tinha um terço em suas mãos… Dei um beijo ao meu Zé, enchi as bochechas de ar, assobiei, mas ele apenas sorria… devagar… Aninhado nos meus braços, levantou os dele. Mão no meu queixo, a outra no meu rosto…, fez-me uma festa… aconchegou-se, enroscou-se, sem nunca largar o meu queixo, sem nunca tirar seus olhos dos meus, de onde caíam e escorriam lágrimas grossas… embalei o meu filho sentindo que desta vez seria para adormecer para sempre. Suspirou. Sorriu… ainda com respiração superficial mantinha olhos entreabertos nos meus, captando a minha voz que sussurrava obrigados, que gostava muito dele, que a mãe estava à sua espera e que colo não lhe ia faltar. Que eu ficava bem, e que Deus me tinha dado um anjo para a Vida… a mão caiu… sorriu mais uma vez e suspirou… partiu. Ao meu colo. O primeiro da sua vida… e o último… continuei com ele ao colo, as enfermeiras, médicos, todos os que ali estavam choravam comigo… silêncio… silêncio… vim para o Brasil sim. Com a minha família. Um sonho projecto… de vida… cumprido. Vim depositar as suas cinzas no oceano. 

Vim sepultar a minha FAMÍLIA!

Voltei a Portugal. Mal. Muito mal. Tentei o suicídio. Fui salvo pela única pessoa amiga que atenta percebeu num telefonema que eu estava triste. Não sei como meteu-se no carro e foi a minha casa. Encontrou-me inanimado. Levou-me para o hospital. Não contou a ninguém. Eu não tinha nenhuma patologia. Estava apenas triste. E uma pessoa, apenas uma, o percebeu. Devo a minha Vida à Joana Brito Fontes. Ao longo destes anos nunca me abandonou.

Ajudou. Esteve presente. Não sei como mas aparecia sempre que eu estava mais em baixo. Até em recuperação das operações aos olhos.

E voltei para aqui. Trabalho bom, gente sã, mas daí saudades muitas de tudo e tanto. E tantos. Obrigado.
Reconverti-me. Voltei à igreja e a Joana, no silêncio e testemunho, com atitude, devolveu-me a alegria de sentir que afinal a minha Vida é cheia. Válida. Com uma simples pergunta: "o que seria do mundo se não existisses?
Fiz a mesma pelo Zé, pela Isabel e por ela!
Agora até por desconhecidos! 

Fiz-lhe a mesma há uns anos. Respondeu: "acabava o amor porque não haveria uma história para contar e viver. Porque na vida, o que na verdade importa são as pessoas. E o mundo era diferente se não existíssemos. Todos diferentes, mas com a missão de Ser Humano - SER ESTAR DAR. Sozinhos, nada somos..."
E ao fim de tantos anos conheci o Papa Francisco que me deu um abraço. Fui com ele a uma favela e a um reformatório. Mais um longo abraço. Percebi que conhecia a minha história.
Assisti à missa em Copacabana da minha janela.
Vou casar outra vez.
Amo o meu trabalho. O Brasil.
Graças a uma. Apenas uma.

Lágrimas de saudades gratidão e alegria por estar a escrever e finalmente conseguir falar e sentir o Amor com que fui tocado e ajudado.
Como diz a Joana, a Vida tem que ser sempre um valente abraço.

Texto de Miguel M. S. Almeida

Publicado por Orlando de Carvalho

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pastoral das Grandes Cidades



O Patriarca de Lisboa partilhou, no primeiro dia do Conselho Presbiteral da diocese, que decorreu nos passados dias 13 e 14 de janeiro, no Seminário dos Olivais, a sua reflexão sobre o Congresso Internacional sobre a Pastoral das Grandes Cidades, onde participou, em Barcelona e em Roma, em novembro passado.
Partilho convosco os pontos mais relevantes do Congresso Internacional sobre a Pastoral das Grandes Cidades, em cuja segunda fase tive oportunidade de participar (Barcelona – Roma, 24 – 27 de novembro de 2014). Organizado pelo Cardeal Martínez Sistach, Arcebispo de Barcelona, e concluído pelo Papa Francisco, reuniu uma vintena de Bispos de vários continentes, com o apoio de reputados sociólogos e pastoralistas, tendo estes participado numa primeira fase, de estudo e preparação. O conjunto das reflexões será certamente publicado em breve e constituirá uma base sólida para o que adiante se fizer em termos de pastoral decididamente urbana e no atual contexto local e mundial: desde 2007, a maioria da população do globo vive em cidades, que irão crescer cada vez mais, com toda a novidade sociológica, cultural e religiosa que tal implicará. Aliás, perspetiva-se uma Fundação de Pastoral das Grandes Cidades que prosseguirá os trabalhos do Congresso.
Resumo em algumas alíneas as reflexões do Congresso:
a) Requer-se um “olhar contemplativo” sobre o mundo urbano, com dupla incidência: duma parte, ter o mesmo olhar de Jesus sobre a cidade; doutra, ver o próprio Jesus nos outros, em cada um dos habitantes da cidade.
b) Seguindo o modelo missionário de Jesus, o modelo da Igreja deve ser o da “saída”, não se limitando a manter o que já existe, mas comunicando o Evangelho da misericórdia nas periferias existenciais da cidade.
c) Tal “saída” há de realizar-se pelo contacto pessoal, a capilaridade e o testemunho. Trata-se de pastoral realmente personalizada, o contacto pessoa a pessoa, a conversa e a pregação informal.
d) As grandes cidades tanto requerem “igrejas domésticas”, nas famílias cristãs, como paróquias que sejam “comunidades de comunidades” e centros de atenção pastoral permanente e criativa.
e) A Igreja na cidade proporá uma cultura cristãmente inspirada, que dialogue com as outras culturas existentes; não como multiculturalidade sobreposta, mas interculturalidade de aproximação e partilha, também nas redes de comunicação social.
f) Não se trata de ser apenas Igreja “na” cidade, mas Igreja “da” cidade, compreendendo e assumindo a unidade urbana, conjugando todas as particularidades de lugares, centrais ou periféricos.
g) A formação e responsabilização do laicado, pessoal ou associado e presente nos vários setores da vida da cidade, é uma exigência básica da pastoral urbana, que não avançará doutro modo.
h) A memória pastoral da cidade, a experiência acumulada do presbitério, a exigência de ser pobre e humilde, o sonho missionário que empolga – tudo isto se requer aos pastores da cidade atual.
i) A liturgia e a comunhão prática dos crentes oferecerão à cidade a previsão atual da Jerusalém celeste, em que ela se transfigurará. É este o modelo a exercitar e a oferecer, para uma “cidade” sem excluídos sociais ou espirituais.
j) A pastoral urbana tanto requer a proximidade episcopal junto dos sacerdotes e fiéis, como a proximidade e disponibilidade das comunidades, de portas abertas a quem passa e procura.
Na audiência conclusiva, o Papa Francisco acentuou especialmente os seguintes pontos: 1) Urge mudar a nossa mentalidade pastoral, pois já não somos os únicos que produzimos cultura na cidade, nem os primeiros, nem os mais escutados. Façamos uma pastoral audaz, porque os habitantes da cidade esperam de nós a Boa Notícia de Jesus e do seu Evangelho. 2) Mantenhamos uma atitude contemplativa, que, com todas as contribuições para conhecer o fenómeno urbano, melhor descubra o fundamento das culturas, que no seu núcleo mais profundo se mantêm abertas e sedentas de Deus. 3) Descubramos na religiosidade do povo e dos pobres o seu fundo cristão e católico, enorme potencial para a evangelização das áreas urbanas. 4) Atendamos ao clamor dos pobres, dos excluídos e “descartados”, sem fazer o jogo de quem os quer fazer “invisíveis”. 5) Pensemos tudo em chave de missão, saindo ao encontro de Deus na cidade e nos pobres, e facilitando o encontro de todos com o Senhor, com igrejas abertas, atendimentos acessíveis para quem trabalha, catequeses e horários adaptados à cidade. 6) Finalmente, ligando testemunho e cultura urbana: «O testemunho concreto da misericórdia e a ternura que se faz presente nas periferias existenciais e pobres, atua diretamente sobre os imaginários sociais, criando orientações e sentido para a vida da cidade».
Estou certo que estas reflexões nos ajudarão criativamente no caminho que agora prosseguimos, rumo ao sínodo diocesano de 2016.

+ Manuel Clemente

Publicado por Orlando de Carvalho, através de Voz da Verdade

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Igreja e Islão


A Igreja está geneticamente comprometida com a paz e o sofrimento do martírio pela paz e a fé. Jesus Cristo nunca apelou à guerra, nunca pactuou com a guerra; todos os textos que nos chegaram confirmam este posicionamento.
Quem com ferros mata, com ferros morre
A quem te bater numa face, oferece também a outra
O centurião romano e Saulo, o perseguidor de cristãos, converteram-se a Cristo e à bem-aventurança da paz, mas nunca as Escrituras relatam o contrário, porque os cristãos não podiam aderir à guerra, a não ser em alternativa exclusiva à opção cristã: guerra ou Igreja.
No decorrer dos tempos, estabeleceu-se alguma confusão entre a hierarquia cristã e a hierarquia política, entre o mecanismo das estruturas próprias dos fiéis e a administração civil e militar, entre os poderes da Igreja, exercidos através dos bispos, e o Império. Até que a Igreja sofreu a contingência de tomar partido entre facções beligerantes – neste momento, a Igreja passou a ser uma das partes nas guerras que desde então ocorreram.
De facto, a tomada de posição por uma das partes em guerra, assente no pressuposto das vantagens advenientes, não foi uma contingência, mas o facto decorrente da livre opção entre Deus e o poder mundano. Já no século XX, Mahatma Gandhi prova que o mandamento da paz não é utópico, nem exclusivo da Cruz, mas possível para qualquer pessoa, não obstante os custos. A recusa do estado de guerra, da resposta à agressão sofrida, não é exclusiva da opção cristã, mas património da Humanidade, ensinada e exaltada por Jesus.
A Igreja, corporalizada pelos governos das dioceses e de diversas pessoas, associações de pessoas e institutos, tomou para si a titularidade de diverso património e lutou com armas, em lutas de morte, para o defender e para o expandir.
A Igreja em dado momento pareceu não ser mais a força do Espírito Santo entre os fiéis, mas uma corporação excelentemente organizada e em luta pelo poder e hegemonia política, sob a direcção dos príncipes que a deviam guiar.
Todavia, a natureza íntima da Igreja não foi modificada, e parece nestes últimos tempos renascer nela o papel de agente pacificador, guiada pelos seus pastores. Pastores que em muitos casos parecem as enxadas e as foices que hão-de surgir das espadas e das lanças (Is 2,4).
Geneticamente, Igreja e Islão, são bem diferentes no que à questão da paz diz respeito. O Islão nasceu pela força das armas, embora se considere a si mesmo uma religião devotada aos princípios da paz.
A História traz-nos à mente as guerras em que a Igreja e o Islão estiveram envolvidos. O Islão por natureza e a Igreja por deformação e deturpação da herança de Jesus. O passado histórico, aprendido nas escolas, faz-se muitas vezes presente e condiciona as opções. Em Portugal, essas lutas estão intimamente ligadas à nacionalidade: só depois da expulsão dos mouros foi possível fazer germinar a semente lusíada.
Quando, em meados do século XX, o Sumo Pontífice da Igreja propõe o diálogo ecuménico entre as comunhões cristãs, em vista à procura dos pontos de convergência para a Unidade, surge também o diálogo com outros credos, em especial com as religiões monoteístas. Na medida em que descaracteriza todas as confissões religiosas e procura um poder ditatorial alicerçado na pressão social e que por isso não nos parece intrinsecamente mau, instala-se também a New Age.
A Igreja dá os primeiros passos ao encontro das religiões, mas a generalidade dos fiéis não compreende. É fácil aceitar o amor ao outro, mesmo estrangeiro, de outra raça e de outra religião, em teoria. Porque os mouros e os judeus continuarão a ser mouros e judeus! A instalação de migrantes muçulmanos na Europa podia ser um factor favorável ao diálogo inter-religioso, mas a tentativa de imposição cultural das minorias aprofunda as fossas que dividem e levanta barreiras.
Muitos católicos que politicamente estão em desacordo com a evolução – retorno à origem – da orientação dos últimos papas satisfar-se-iam com a expulsão violenta dos muçulmanos da Europa. Infelizmente muitas comunidades muçulmanas apoiam, com a sua prática, estes cristãos a quem soam mais alto as antigas guerras religiosas (que renascem a leste) que os promissores caminhos definidos pelo Concílio Vaticano II e por Paulo VI e continuados pelos seus sucessores.
Recentemente fiquei em choque ao entrar num dos hospitais em que exerço o ministério de distribuir a comunhão a doentes acamados e sem possibilidade de participar na Eucaristia.
O espaço reservado ao culto, até então utilizado pela Igreja, tinha sido remodelado de modo a permitir também a instalação de fiéis muçulmanos. Nunca fui racista nem xenófobo, incluindo em termos religiosos. Não foi isso que motivou o meu choque. Foi a minha confrontação com uma situação diferente, que nunca experimentara antes e, de certo modo, sofrida em mim mesmo: aquele espaço era meu. Eu sabia que a legislação permitia e que podia acontecer em qualquer momento, mas quem pensa em morrer quando está cheio de saúde e boa disposição?
Incomodou-me também – e isso aumentou o meu choque – o modo como a administração do hospital geriu a questão religiosa, dando, em meu entender, mais atenção relativa aos novos ‘inquilinos’.
Enquanto escrevo, estou ainda a amadurecer o meu modo de encarar esta questão, sabendo que o choque será vencido e que tudo farei para me dar bem com os novos vizinhos e nada faria, nem farei, contra eles.

Publico este texto na esperança de fazer as pessoas pensarem nesta questão e na expectativa de receber comentários. Será possível a Cruz e o Qibla coexistirem? 

Orlando de Carvalho

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Onde estavam os avós de Jesus?



Sagrada Família com Santa Ana e São Joaquim, Charles LeBrun, 1655

Joaquim e Ana, figuras ausentes no nascimento

Dos avós de Jesus, apenas sabemos de dois, os maternos, e ainda assim por tradição e num evangelho apócrifo de São Tiago. Os pais de José o carpinteiro, ou já tinham morrido ou o evangelista não os considerou relevantes para o seu relato. Pelo contrário, Joaquim e Ana, são-no e muito.
Uma antiga tradição do século II atribui os nomes de Joaquim e Ana aos pais de Maria. O culto aparece para Santa Ana já no século VI e para São Joaquim depois. A devoção aos avós de Jesus é um prolongamento natural do carinho e veneração à Mãe de Deus.
Segundo a tradição, a mãe de Maria nasceu em Belém. O nome Ana significa “graça, amor, oração”. A Sagrada Escritura nada diz dela. Tudo o que sabemos está no Evangelho apócrifo de São Tiago, segundo o qual aos 24 anos, crescidita para a época - as mulheres casavam muito novas, quase adolescentes -, Ana se casou com um proprietário rural chamado Joaquim, galileu de Nazaré.  Ana, descendia da família real de David, Vejamos o papel das mulheres em toda esta história.
Os avós de Jesus viviam em Nazaré e, segundo a tradição, dividiam as suas rendas anuais desta maneira: uma parte para os gastos da família, outra para o Templo e uma terceira para os mais necessitados.
Já estavam casados há vinte anos e ainda sem filhos, ausência sem dúvida da benção divina, segundo os seus contemporâneos. Ana tinha já quarenta e quatro anos e restava-lhe pouco tempo para uma possível gravidez. No Templo, Joaquim ouvia murmurar sobre a esterilidade da família como algo que os fazia indignos de entrar na casa de Deus. Joaquim, muito desgostoso, retira-se para o deserto, para pedir a Deus um filho. Ana intensifica as suas preces. Recordou a outra Ana das Escrituras, no Livro dos Reis: tendo rezado tanto ao Senhor foi escutada, e assim chegou o seu filho Samuel, um grande profeta. Um paralelismo evidente nos nomes, e no resultado das súplicas.
Desde os primeiros tempos da Igreja, os avós de Jesus foram honrados no Oriente, depois passou a render-se-lhe culto em toda a cristandade, onde se levantaram templos com as suas invocações.
Quando se visita a Terra Santa, pode ver-se a provável casa em que Maria viveu a sua infância. Era uma menina especial e como tal foi educada, Conhecedora das Escrituras, que ensinou a seu Filho Jesus.
 E onde estavam Joaquim e Ana, os avós, no dia do Nascimento?
Estavam em Nazaré, pois Maria era de lá. Pode-se hoje também entrar na casa - uma casa de pedra de boa construção, de gente bem na vida, como a maior parte das casas de Nazaré, uma pequena mas próspera povoação - em que a jovem desposada com José, recebeu o anúncio do enviado Gabriel, e aceitou uma missão divina para a qual havia sido escolhida, não sem uma dúvida - como pode ser isso? – na confiança da Sabedoria do Pai.
Onde estavam os avós de Jesus? -Ter-lhe-á dito Maria alguma coisa, desta situação em Deus a havia metido? Se não lhes disse nada, não deixaram de rapidamente verem os efeitos da palavra divina, sempre eficaz. E num ápice teceram um círculo de amor, em volta daquela menina grávida e inexperiente.
Podemos imaginar Ana a tecer as roupitas para esse menino tão especial, o Emanuel, e filho de Maria. Seguramente José e Maria - que eram previdentes - partiram para Belém com os alforges da mula bem cheio de fraldas e roupitas forradas para o Menino, para que mesmo que nascesse pelo caminho, não passasse frio.
Naquela época, as viagens era uma aventura para a qual apenas se levava bilhete de ida: salteadores nos caminhos, uma mula que podia falhar, procurar pousada em dias de censo e sem preços fixos, os trâmites da burocracia romana podiam demorar mais do que o previsto. Podia dizer-se mesmo, ser uma aventura. A volta estava nas mãos da Providência.
Sobre o frio que Jesus passou quando nasceu, não deixa de ser bonita a consideração piedosa da devoção de Santo Afonso Maria de Ligório, no seu famoso poema “Tu desces das estrelas” (Tu scendi dalle stelle). Ligório e outros autores falam do frio e do gelo daquela noite - numa translação do clima europeu para a temperada Terra Santa, onde por muito que nos empenhemos em pôr neve nos presépios, não neva -, mas referem-se mais ao frio espiritual da indiferença e do abandono da lei do povo santo. Para temperar, ou melhor incendiar esse frio, veio Jesus.
Onde estavam os avós de Jesus na noite mais santa do ano? - Estavam nos pontos das roupinhas e nas provisões, confeccionadas por Ana. Na oração assídua pelos novos esposos, para que a viagem decorresse bem e a família pudesse regressar rapidamente e bem, a Nazaré.
No pensamento de Maria e José ao ver o rostozinho desse Menino esperado…Esperado por séculos e nações, essa alegria viajou sem palavras, à velocidade da luz, e mais ainda até ao coração de Joaquim e de Ana, que esperavam a boa notícia em Nazaré. Ninguém com certeza a afastava das caravanas que iam chegando, à espera do feliz anúncio do Nascimento, dado por alguém que se tivesse cruzado com José.
E se houve um enviado de Deus aos pastores, um sonho que pôs em marcha os sábios do Oriente, um sonho que avisou José várias vezes…não teria também havido uma mensagem divina para os felizes avós? - Seguramente que sim.
Avós afastados nestes primeiros tempos, como tantos avós que veem os seus filhos emigrar para outras terras mais acolhedoras, outras terras onde possam arranjar um futuro mais risonho para as suas famílias.
Tantos avós que esperam o regresso dos netos, que quem sabe não deixaram os sonhos enrolados entre as ondas que embatiam contra o costado de alguma embarcação cruzando o Estreito.
Quem sabe se encontrarão a paz, a justiça e a liberdade…que não tinham na sua terra…
Quem sabe se por fim poderão dirigir-se a Deus, sem ter de olhar à sua volta, não vá a sua oração ofender alguém. Quem sabe se encontrarão uma vida digna, e um meio de ganhar a vida honestamente…quem sabe…
Os avós sempre esperam. A porta da sua casa continua aberta. Podemos imaginar Joaquim e Ana esperando, e acabando por fim por conhecer o seu neto depois de voltar do longo exílio não programado - com a emigração para o Egipto, para escapar a Herodes e a sua volta directamente a Nazaré, para iludir Arquelau.
Podemos imaginá-los enchendo-O de beijos, cantando-Lhe canções para O adormecer, fazendo-Lhe brinquedos e com toda a certeza, ensinando-Lhe as orações e as palavras de Deus ao Seu Povo eleito…
Podemos imaginar Maria, indo às compras e deixando o pequeno em casa dos avós por umas horas. Por terem vivido no século I, os avós de Jesus não se livraram da alegria de ter cuidado do seu neto, o Menino Jesus…

Encuentra/primeiros cristianos/ Nieves San Martin
Tradução livre de Diácono Maximino Alves Martins
Publicado por Orlando de Carvalho