sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Igreja e Islão


A Igreja está geneticamente comprometida com a paz e o sofrimento do martírio pela paz e a fé. Jesus Cristo nunca apelou à guerra, nunca pactuou com a guerra; todos os textos que nos chegaram confirmam este posicionamento.
Quem com ferros mata, com ferros morre
A quem te bater numa face, oferece também a outra
O centurião romano e Saulo, o perseguidor de cristãos, converteram-se a Cristo e à bem-aventurança da paz, mas nunca as Escrituras relatam o contrário, porque os cristãos não podiam aderir à guerra, a não ser em alternativa exclusiva à opção cristã: guerra ou Igreja.
No decorrer dos tempos, estabeleceu-se alguma confusão entre a hierarquia cristã e a hierarquia política, entre o mecanismo das estruturas próprias dos fiéis e a administração civil e militar, entre os poderes da Igreja, exercidos através dos bispos, e o Império. Até que a Igreja sofreu a contingência de tomar partido entre facções beligerantes – neste momento, a Igreja passou a ser uma das partes nas guerras que desde então ocorreram.
De facto, a tomada de posição por uma das partes em guerra, assente no pressuposto das vantagens advenientes, não foi uma contingência, mas o facto decorrente da livre opção entre Deus e o poder mundano. Já no século XX, Mahatma Gandhi prova que o mandamento da paz não é utópico, nem exclusivo da Cruz, mas possível para qualquer pessoa, não obstante os custos. A recusa do estado de guerra, da resposta à agressão sofrida, não é exclusiva da opção cristã, mas património da Humanidade, ensinada e exaltada por Jesus.
A Igreja, corporalizada pelos governos das dioceses e de diversas pessoas, associações de pessoas e institutos, tomou para si a titularidade de diverso património e lutou com armas, em lutas de morte, para o defender e para o expandir.
A Igreja em dado momento pareceu não ser mais a força do Espírito Santo entre os fiéis, mas uma corporação excelentemente organizada e em luta pelo poder e hegemonia política, sob a direcção dos príncipes que a deviam guiar.
Todavia, a natureza íntima da Igreja não foi modificada, e parece nestes últimos tempos renascer nela o papel de agente pacificador, guiada pelos seus pastores. Pastores que em muitos casos parecem as enxadas e as foices que hão-de surgir das espadas e das lanças (Is 2,4).
Geneticamente, Igreja e Islão, são bem diferentes no que à questão da paz diz respeito. O Islão nasceu pela força das armas, embora se considere a si mesmo uma religião devotada aos princípios da paz.
A História traz-nos à mente as guerras em que a Igreja e o Islão estiveram envolvidos. O Islão por natureza e a Igreja por deformação e deturpação da herança de Jesus. O passado histórico, aprendido nas escolas, faz-se muitas vezes presente e condiciona as opções. Em Portugal, essas lutas estão intimamente ligadas à nacionalidade: só depois da expulsão dos mouros foi possível fazer germinar a semente lusíada.
Quando, em meados do século XX, o Sumo Pontífice da Igreja propõe o diálogo ecuménico entre as comunhões cristãs, em vista à procura dos pontos de convergência para a Unidade, surge também o diálogo com outros credos, em especial com as religiões monoteístas. Na medida em que descaracteriza todas as confissões religiosas e procura um poder ditatorial alicerçado na pressão social e que por isso não nos parece intrinsecamente mau, instala-se também a New Age.
A Igreja dá os primeiros passos ao encontro das religiões, mas a generalidade dos fiéis não compreende. É fácil aceitar o amor ao outro, mesmo estrangeiro, de outra raça e de outra religião, em teoria. Porque os mouros e os judeus continuarão a ser mouros e judeus! A instalação de migrantes muçulmanos na Europa podia ser um factor favorável ao diálogo inter-religioso, mas a tentativa de imposição cultural das minorias aprofunda as fossas que dividem e levanta barreiras.
Muitos católicos que politicamente estão em desacordo com a evolução – retorno à origem – da orientação dos últimos papas satisfar-se-iam com a expulsão violenta dos muçulmanos da Europa. Infelizmente muitas comunidades muçulmanas apoiam, com a sua prática, estes cristãos a quem soam mais alto as antigas guerras religiosas (que renascem a leste) que os promissores caminhos definidos pelo Concílio Vaticano II e por Paulo VI e continuados pelos seus sucessores.
Recentemente fiquei em choque ao entrar num dos hospitais em que exerço o ministério de distribuir a comunhão a doentes acamados e sem possibilidade de participar na Eucaristia.
O espaço reservado ao culto, até então utilizado pela Igreja, tinha sido remodelado de modo a permitir também a instalação de fiéis muçulmanos. Nunca fui racista nem xenófobo, incluindo em termos religiosos. Não foi isso que motivou o meu choque. Foi a minha confrontação com uma situação diferente, que nunca experimentara antes e, de certo modo, sofrida em mim mesmo: aquele espaço era meu. Eu sabia que a legislação permitia e que podia acontecer em qualquer momento, mas quem pensa em morrer quando está cheio de saúde e boa disposição?
Incomodou-me também – e isso aumentou o meu choque – o modo como a administração do hospital geriu a questão religiosa, dando, em meu entender, mais atenção relativa aos novos ‘inquilinos’.
Enquanto escrevo, estou ainda a amadurecer o meu modo de encarar esta questão, sabendo que o choque será vencido e que tudo farei para me dar bem com os novos vizinhos e nada faria, nem farei, contra eles.

Publico este texto na esperança de fazer as pessoas pensarem nesta questão e na expectativa de receber comentários. Será possível a Cruz e o Qibla coexistirem? 

Orlando de Carvalho

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