A Igreja está geneticamente comprometida com a paz e o
sofrimento do martírio pela paz e a fé. Jesus Cristo nunca apelou à guerra,
nunca pactuou com a guerra; todos os textos que nos chegaram confirmam este
posicionamento.
Quem com ferros mata, com ferros morre
A quem te bater numa face, oferece também a outra
O centurião romano e Saulo, o perseguidor de cristãos, converteram-se
a Cristo e à bem-aventurança da paz, mas nunca as Escrituras relatam o contrário,
porque os cristãos não podiam aderir à guerra, a não ser em alternativa
exclusiva à opção cristã: guerra ou Igreja.
No decorrer dos tempos, estabeleceu-se alguma confusão entre
a hierarquia cristã e a hierarquia política, entre o mecanismo das estruturas próprias
dos fiéis e a administração civil e militar, entre os poderes da Igreja,
exercidos através dos bispos, e o Império. Até que a Igreja sofreu a contingência
de tomar partido entre facções beligerantes – neste momento, a Igreja passou a
ser uma das partes nas guerras que desde então ocorreram.
De facto, a tomada de posição por uma das partes em guerra,
assente no pressuposto das vantagens advenientes, não foi uma contingência, mas
o facto decorrente da livre opção entre Deus e o poder mundano. Já no século
XX, Mahatma Gandhi prova que o mandamento da paz não é utópico, nem exclusivo
da Cruz, mas possível para qualquer pessoa, não obstante os custos. A recusa do
estado de guerra, da resposta à agressão sofrida, não é exclusiva da opção
cristã, mas património da Humanidade, ensinada e exaltada por Jesus.
A Igreja, corporalizada pelos governos das dioceses e de
diversas pessoas, associações de pessoas e institutos, tomou para si a
titularidade de diverso património e lutou com armas, em lutas de morte, para o
defender e para o expandir.
A Igreja em dado momento pareceu não ser mais a força do
Espírito Santo entre os fiéis, mas uma corporação excelentemente organizada e
em luta pelo poder e hegemonia política, sob a direcção dos príncipes que a
deviam guiar.
Todavia, a natureza íntima da Igreja não foi modificada, e
parece nestes últimos tempos renascer nela o papel de agente pacificador,
guiada pelos seus pastores. Pastores que em muitos casos parecem as enxadas e
as foices que hão-de surgir das espadas e das lanças (Is 2,4).
Geneticamente, Igreja e Islão, são bem diferentes no que à
questão da paz diz respeito. O Islão nasceu pela força das armas, embora se
considere a si mesmo uma religião devotada aos princípios da paz.
A História traz-nos à mente as guerras em que a Igreja e o
Islão estiveram envolvidos. O Islão por natureza e a Igreja por deformação e
deturpação da herança de Jesus. O passado histórico, aprendido nas escolas,
faz-se muitas vezes presente e condiciona as opções. Em Portugal, essas lutas
estão intimamente ligadas à nacionalidade: só depois da expulsão dos mouros foi
possível fazer germinar a semente lusíada.
Quando, em meados do século XX, o Sumo Pontífice da Igreja
propõe o diálogo ecuménico entre as comunhões cristãs, em vista à procura dos
pontos de convergência para a Unidade, surge também o diálogo com outros
credos, em especial com as religiões monoteístas. Na medida em que
descaracteriza todas as confissões religiosas e procura um poder ditatorial
alicerçado na pressão social e que por isso não nos parece intrinsecamente mau,
instala-se também a New Age.
A Igreja dá os primeiros passos ao encontro das religiões,
mas a generalidade dos fiéis não compreende. É fácil aceitar o amor ao outro,
mesmo estrangeiro, de outra raça e de outra religião, em teoria. Porque os
mouros e os judeus continuarão a ser mouros e judeus! A instalação de migrantes
muçulmanos na Europa podia ser um factor favorável ao diálogo inter-religioso,
mas a tentativa de imposição cultural das minorias aprofunda as fossas que
dividem e levanta barreiras.
Muitos católicos que politicamente estão em desacordo com a
evolução – retorno à origem – da orientação dos últimos papas satisfar-se-iam com
a expulsão violenta dos muçulmanos da Europa. Infelizmente muitas comunidades
muçulmanas apoiam, com a sua prática, estes cristãos a quem soam mais alto as
antigas guerras religiosas (que renascem a leste) que os promissores caminhos
definidos pelo Concílio Vaticano II e por Paulo VI e continuados pelos seus
sucessores.
Recentemente fiquei em choque ao entrar num dos hospitais em
que exerço o ministério de distribuir a comunhão a doentes acamados e sem
possibilidade de participar na Eucaristia.
O espaço reservado ao culto, até então utilizado pela
Igreja, tinha sido remodelado de modo a permitir também a instalação de fiéis
muçulmanos. Nunca fui racista nem xenófobo, incluindo em termos religiosos. Não
foi isso que motivou o meu choque. Foi a minha confrontação com uma situação
diferente, que nunca experimentara antes e, de certo modo, sofrida em mim
mesmo: aquele espaço era meu. Eu sabia que a legislação permitia e que podia
acontecer em qualquer momento, mas quem pensa em morrer quando está cheio de
saúde e boa disposição?
Incomodou-me também – e isso aumentou o meu choque – o modo
como a administração do hospital geriu a questão religiosa, dando, em meu
entender, mais atenção relativa aos novos ‘inquilinos’.
Enquanto escrevo, estou ainda a amadurecer o meu modo de
encarar esta questão, sabendo que o choque será vencido e que tudo farei para
me dar bem com os novos vizinhos e nada faria, nem farei, contra eles.
Publico este texto na esperança
de fazer as pessoas pensarem nesta questão e na expectativa de receber
comentários. Será possível a Cruz e o Qibla coexistirem?
Orlando de Carvalho
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