O Alex e a Bruna tinham-se separado. Continuavam a viver
juntos e a assumir em conjunto as responsabilidades paternais, mas viviam em
casas separadas. Eu nunca soube das razões, apenas constatava a tristeza nas
caras dos dois filhos. O peso constante da incógnita sobre a casa em que iam
ficar, quem os levava no dia seguinte. Os constrangimentos profissionais dos
pais tinham-se tornado mais presentes e as limitações que impunham, por vezes,
quase inultrapassáveis. Não eram pessoas ricas, bem pelo contrário. Solidão,
tristeza, angústia e desorientação reinavam sobre aquelas quatro almas.
Um dia, eu falava com uma das crianças sobre uma actividade
que íamos desenvolver e a maneira de solucionar os inconvenientes de a família
viver em casas separadas.
O Filipe olhou-me com uns olhos cintilantes que nunca
esquecerei e disse-me com uma simplicidade que me rasgou o coração e o
impregnou de alegria:
- Já vivemos todos juntos, de novo.
- Já vivemos todos juntos, de novo.
No período da Quadra de Natal, entre o Natal e o Ano Novo, a
Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José. Talvez
sirva de pouco reservar um dia para adorar Jesus e cultuar Maria e José,
venerando a Sagrada Família em perspectivas litúrgica e de oração, se pouco ou
nada obtivermos para a realidade das nossas vidas. A Sagrada Família deve
inspirar um modelo de vida para as nossas famílias, para a minha família, nos
dias que eu vivo, no local que habito e no círculo das pessoas que me rodeiam.
As virtudes de São José são um marco fundamental para mim,
para a Igreja, para a narrativa natalícia, para a compreensão do Mistério da
Encarnação, mas recontar o mesmo vezes sem conta em vez de apontar vias para a
santificação de cada pai, é pouco, é muito pouco. Uma homilia tem que
transmitir muito mais, nomeadamente a presença e o exemplo de José nestes dias
que correm, nestes dias em que os pais trocam de casa, de esposa, de filhos. Do
desempenho de José no seio da família de Nazaré, há que transmitir para a
assembleia a força santificante a que ele se abriu, sempre que escutava o
chamamento de Deus e Lhe obedecia colocando a salvo a família, Maria e Jesus. José
não foi violento com Maria nem com Jesus, mas nunca escutei essa sua faceta
numa homilia, nem em nenhum catecismo.
Neste dia, os pais e as mães têm que ser recordados que o
seu tempo não lhes pertence em exclusivo. O marido pertence à mulher e a mulher
ao marido. Pai e mãe pertencem aos filhos. Os filhos são responsabilidade do
pai e da mãe e se seguem maus caminhos, se a imoralidade, a violência e o
desinteresse pelo estudo, o trabalho e a vida, os acometem, os pais têm que
assumir a sua quota de culpa.
Alguns instantes de prazer não podem significar a posse do
ente criado, mas determinam indubitavelmente um encargo para a vida, o encargo
de cuidar, auxiliar e amar sem restrições.
Vemos quartos de crianças e adolescentes onde milhares de
euros andam espalhados pelo chão, pelos armários, pelos cantos, em brinquedos e
jogos que rapidamente são inutilizados e substituídos por outros mais caros. Quantas
vezes são quartos em que as crianças têm tanto, mas lhes falta quem as ampare,
as guie, as oriente e as ama. Porque dar coisas compradas com dinheiro tem
quase sempre muito pouco a ver com dinheiro. Sentar ao lado de uma criança
pequena a bater ritmadamente com uma vara, uma caneta, um talher, em qualquer caixa
oca ou outro objecto, produzindo um som ritmado, pode ser muito mais valioso
que oferecer uma viatura de controlo remoto de centenas de euros. Fazer desenhos
com a criança nos vidros embaciados das janelas implica tanto amor que nenhuma
oferta de estojo completo de desenho se lhe pode comparar.
Que nenhum pai ou mãe permita que um telefone ou outro aparelho
electrónico o substitua, porque esses dispositivos não fazem parte da família e
nada existe mais importante que a família que se reúne, que dialoga, que se
centra na adoração de Deus.
O divórcio que parte do facto de que os esposos deixaram de
se amar é a constatação de que eles nunca se amaram. Amar não são beijos,
prendas, ofertas ou sexo, pode ser tudo isso, na realidade, desde que o ponto
de partida seja uma disposição para fazer o outro feliz ao ponto extremo de aceitar
sofrer pelo outro. Sofrer mesmo. Afinal, Jesus morreu na Cruz para quê? Para contarmos
lindas narrativas da Paixão? Para termos crucifixos? Por defender ideais? Morreu
para eu saber que se digo que amo alguém, ou sou mentiroso ou tenho de estar
disposto a morrer por ele numa cruz. A mãe e o pai pelo filho, o esposo pela
mulher, esta pelo marido, os filhos pelos pais e irmãos.
Casamento ou celibato nunca deveriam ser encarados como meio
para uma boa vida, mas como doação e consagração diante de Deus.
As pessoas podem não gostar de ouvir estes conteúdos, mas
pode ser pecado não lhos transmitir. Para que possam responsavelmente decidir
as suas vidas.
Amar é mais partilhar sofrimento que satisfazer caprichos. É
impossível oferecer a Lua à pessoa amada, mas é encantador olharem juntos a
Lua, mesmo que através de escuras e impenetráveis nuvens.
Deviam existir escolas de pais ou escolas de família, onde
se aprendessem estas coisas. Todavia elas existem. São as próprias famílias em
que somos criados e onde aprendemos a amar o futuro cônjuge e os filhos que
hão-de vir, através do exemplo visto e aprendido dos mais velhos.
Seria o ministério de Jesus o mesmo se Maria não fosse Maria
e se José fosse outro qualquer, mesmo sendo Jesus a Palavra de Deus encarnada,
o Filho de Deus?
Orlando de Carvalho