quarta-feira, 6 de junho de 2018

Os reis são santos



Imagem: São Maltrapilho
Quando escrevi a obra épica Os Santos de João Paulo II[1], lançada em 2005, perguntei-me várias vezes a razão da escolha dos fiéis que alcançam a canonização. Eu fora muito motivado para estudar e sintetizar as histórias de tantos santos elevados aos altares por São João Paulo II, num virar de página muito significativo. Notei que surgia uma abrangência em crescendo em relação à origem e inserção social das pessoas canonizadas, não obstante alguns casos ainda me terem chocado.

A canonização deve ser realizada como uma acção evangelizadora na medida em que expõe a vida, incluindo a privada, de pessoas que de algum modo se entregaram ao serviço do Evangelho e cuja vida pode ser exemplo edificante para aqueles que vêm a conhecê-la. Mas a maior virtude das canonizações, e refiro-me especialmente às do pontificado de São João Paulo II, foi a afirmação de que a santidade é possível, mais ainda, é real e existe nos nossos dias. Ser santo não tem que ser a excepção, nem o deve ser, como enfatizou o Papa das Canonizações. Os santos não são umas pessoas que existiam antigamente e que viviam de forma mais ou menos abstracta, como que eleitos por Deus. Tal eleição é extensiva a todas as pessoas humanas, visivelmente nos baptizados. Estende-se a belos e feios, a delicados e a brutos, aos que nascem em ambiente piedoso e aos que vivem na promiscuidade. Relativamente a esta última situação, podemos tranquilizar os mais susceptíveis recordando como viveram São Francisco de Assis e Santo Agostinho. Se não tivessem tido a ventura das suas mães intercessoras e da conversão publicamente visível, estariam condenados ao fogo eterno? Quantos Zaqueus se cruzam nas nossas vidas sem darmos por eles? Armamos em piedosos, mas esquecemos dar atenção a quem sobe à árvore na busca da Verdade, não os mandamos descer nem nos convidamos para visitar as suas casas.



Retrospectivamente tem pleno sentido questionarmo-nos:

- Por que há tantos reis e rainhas canonizados? E padres e religiosos e religiosas? Os outros, de um modo geral não vão para o Céu?

Trata-se de uma dúvida semelhante à que se coloca em relação à anulação de casamentos que, até ao gesto corajoso do Papa Francisco, foi relativamente acessível à nobreza e a famílias reais, mas inatingível para a maioria da Cristandade. E foi causa de guerras e guerrinhas, na Europa e pelo mundo cristianizado.



Percebemos que a Reforma Litúrgica de Pio XII, a Nova Evangelização de São João Paulo II e a opção pelos mais frágeis do Papa Francisco são ferramentas indispensáveis à Igreja, de modo a que esta seja de facto Corpo de Cristo. Seguramente, Cristo não é rei deste mundo, não nasceu em berço de ouro, nem aceitou mordomias, não viveu em palácio, nem à custa de taxas cobradas a súbditos. Ao contrário do que acontece com os grandes deste mundo, e a Igreja moldou-se paulatinamente em peça da engrenagem que governa o mundo, que tudo regem em modo de corrupção, vitimando tanta e tanta casta Susana, como outrora os juízes injustos.



Não passaria pela cabeça de nenhum Papa, menos ainda da Cúria, elevar aos altares qualquer dos Apóstolos. Eles são aceites simplesmente porque não os conhecemos pessoalmente e porque fazem parte do grupo restrito que seguia Jesus.

Gente do povo, rudes, pescadores, pecadores, colaboradores com o invasor, isto é, traidores à Pátria…

Quando voltou a ser venerada pela Igreja uma mulher que tenha desdenhado o recato sexual, depois de Madalena, da Samaritana, da que foi salva da morte enquanto o Senhor escrevia na areia? Que rei ou rainha privou com Jesus?



Nada entendem os que ainda acreditam que Deus se congratula com Ofícios em Latim, com Canto Gregoriano, com Pias Beatices e desdenham a humildade, que se afastam dos irmãos que cheiram mal, que se amofinam com o ruído das crianças nas missas, que ignoram a corrupção que acontece ao seu lado, enfim, que se consideram importantes neste mundo e, ao mesmo tempo que proclamam a modéstia de Nosso Senhor, que continuam a pintar Cristo, seja em quadros ou dentro das suas cabeças, cruzando caminhos, aldeias e cidades em Israel, a anunciar o Reino de Deus, mas vestido com imponência, como se fosse um qualquer príncipe do mundo.

Temos dificuldade em reverenciar um maltrapilho, roto, que nem faz questão de lavar as mãos quando se senta à mesa. Quanto mais adorá-lO. Quantas vezes espreitamos a cerimónia do lava-pés como quem assiste numa poltrona a um espectáculo do La Féria, e não nos oferecemos para levar o saco das compras da vizinha que mal pode andar!



Quantas vezes antipatizamos, desdenhamos ou pensamos tão mal de um santo com quem contactamos neste mundo e que um dia talvez encontraremos no Reino de Deus. E nesse dia que se passará nas nossas cabeças? Quanta angústia e frustração por termos deixado de ser simpáticos para Jesus encarnado naquele irmão, Ele que então estará a fixar em nós os seus olhos, os mesmos que encararam Judas e Pedro.



Um professor universitário disse-me certa vez que, no primeiro dia de aulas olhava para cada aluno como um inimigo. E que esse sentimento só se desvanecia se, e quando, o aluno lhe desse provas em contrário. Não sejamos nós assim, mas precisamente ao contrário. Olhemos para cada pessoa como um irmão, uma habitação de Deus, um santo em embrião. E ajudemo-la.



Orlando de Carvalho.






[1] Orlando de Carvalho, Os Santos de João Paulo II, Lusodidacta, Loures, 2005

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