Imagem: São Maltrapilho
Quando escrevi a obra épica Os Santos de João Paulo II[1], lançada
em 2005, perguntei-me várias vezes a razão da escolha dos fiéis que alcançam a
canonização. Eu fora muito motivado para estudar e sintetizar as histórias de
tantos santos elevados aos altares por São João Paulo II, num virar de página muito
significativo. Notei que surgia uma abrangência em crescendo em relação à
origem e inserção social das pessoas canonizadas, não obstante alguns casos ainda
me terem chocado.
A canonização deve ser realizada como uma acção
evangelizadora na medida em que expõe a vida, incluindo a privada, de pessoas
que de algum modo se entregaram ao serviço do Evangelho e cuja vida pode ser
exemplo edificante para aqueles que vêm a conhecê-la. Mas a maior virtude das
canonizações, e refiro-me especialmente às do pontificado de São João Paulo II,
foi a afirmação de que a santidade é possível, mais ainda, é real e existe nos
nossos dias. Ser santo não tem que ser a excepção, nem o deve ser, como
enfatizou o Papa das Canonizações. Os santos não são umas pessoas que existiam
antigamente e que viviam de forma mais ou menos abstracta, como que eleitos por
Deus. Tal eleição é extensiva a todas as pessoas humanas, visivelmente nos
baptizados. Estende-se a belos e feios, a delicados e a brutos, aos que nascem
em ambiente piedoso e aos que vivem na promiscuidade. Relativamente a esta
última situação, podemos tranquilizar os mais susceptíveis recordando como viveram
São Francisco de Assis e Santo Agostinho. Se não tivessem tido a ventura das
suas mães intercessoras e da conversão publicamente visível, estariam
condenados ao fogo eterno? Quantos Zaqueus se cruzam nas nossas vidas sem
darmos por eles? Armamos em piedosos, mas esquecemos dar atenção a quem sobe à
árvore na busca da Verdade, não os mandamos descer nem nos convidamos para
visitar as suas casas.
Retrospectivamente tem pleno sentido questionarmo-nos:
- Por que há tantos reis e rainhas canonizados? E padres e
religiosos e religiosas? Os outros, de um modo geral não vão para o Céu?
Trata-se de uma dúvida semelhante à que se coloca em relação
à anulação de casamentos que, até ao gesto corajoso do Papa Francisco, foi
relativamente acessível à nobreza e a famílias reais, mas inatingível para a
maioria da Cristandade. E foi causa de guerras e guerrinhas, na Europa e pelo
mundo cristianizado.
Percebemos que a Reforma Litúrgica de Pio XII, a Nova
Evangelização de São João Paulo II e a opção pelos mais frágeis do Papa
Francisco são ferramentas indispensáveis à Igreja, de modo a que esta seja de
facto Corpo de Cristo. Seguramente, Cristo não é rei deste mundo, não nasceu em
berço de ouro, nem aceitou mordomias, não viveu em palácio, nem à custa de
taxas cobradas a súbditos. Ao contrário do que acontece com os grandes deste
mundo, e a Igreja moldou-se paulatinamente em peça da engrenagem que governa o mundo,
que tudo regem em modo de corrupção, vitimando tanta e tanta casta Susana, como
outrora os juízes injustos.
Não passaria pela cabeça de nenhum Papa, menos ainda da
Cúria, elevar aos altares qualquer dos Apóstolos. Eles são aceites simplesmente
porque não os conhecemos pessoalmente e porque fazem parte do grupo restrito
que seguia Jesus.
Gente do povo, rudes, pescadores, pecadores, colaboradores
com o invasor, isto é, traidores à Pátria…
Quando voltou a ser venerada pela Igreja uma mulher que
tenha desdenhado o recato sexual, depois de Madalena, da Samaritana, da que foi
salva da morte enquanto o Senhor escrevia na areia? Que rei ou rainha privou
com Jesus?
Nada entendem os que ainda acreditam que Deus se congratula
com Ofícios em Latim, com Canto Gregoriano, com Pias Beatices e desdenham a
humildade, que se afastam dos irmãos que cheiram mal, que se amofinam com o
ruído das crianças nas missas, que ignoram a corrupção que acontece ao seu
lado, enfim, que se consideram importantes neste mundo e, ao mesmo tempo que
proclamam a modéstia de Nosso Senhor, que continuam a pintar Cristo, seja em
quadros ou dentro das suas cabeças, cruzando caminhos, aldeias e cidades em
Israel, a anunciar o Reino de Deus, mas vestido com imponência, como se fosse
um qualquer príncipe do mundo.
Temos dificuldade em reverenciar um maltrapilho, roto, que
nem faz questão de lavar as mãos quando se senta à mesa. Quanto mais adorá-lO. Quantas
vezes espreitamos a cerimónia do lava-pés como quem assiste numa poltrona a um
espectáculo do La Féria, e não nos oferecemos para levar o saco das compras da
vizinha que mal pode andar!
Quantas vezes antipatizamos, desdenhamos ou pensamos tão mal
de um santo com quem contactamos neste mundo e que um dia talvez encontraremos
no Reino de Deus. E nesse dia que se passará nas nossas cabeças? Quanta
angústia e frustração por termos deixado de ser simpáticos para Jesus encarnado
naquele irmão, Ele que então estará a fixar em nós os seus olhos, os mesmos que
encararam Judas e Pedro.
Um professor universitário disse-me certa vez que, no
primeiro dia de aulas olhava para cada aluno como um inimigo. E que esse
sentimento só se desvanecia se, e quando, o aluno lhe desse provas em
contrário. Não sejamos nós assim, mas precisamente ao contrário. Olhemos para
cada pessoa como um irmão, uma habitação de Deus, um santo em embrião. E
ajudemo-la.
Orlando de Carvalho.
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