quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Todos somos netos

Comemora-se a 26 de Julho Santa Ana e São Joaquim, o casal que gerou Maria, a mãe de Jesus e, por isso, titulada Mãe de Deus. Este gesto de ternura para com os avós de Jesus é antiquíssimo na Igreja. Por extensão, esta data passou a ser comum à comemoração de todos os avós.
É uma oportunidade para eu pensar nos meus e nesta função patriarcal de ser pai e mãe dos pais e das mães.
Não conheci a minha avó materna e o meu avô materno, com quem tinha uma relação distante, faleceu quando eu tinha uns sete anos. A oração é o nosso principal ponto de encontro.
Fui criado quase em comum pelos meus pais e avós paternos, com quem aprendi muito. Essa experiência leva-me hoje a lamentar todos os que não podem desfrutar desse convívio com os anciãos que partilham o mesmo sangue, os mesmos genes, o mesmo ADN, a mesma carga tradicional e familiar.
A minha avó, analfabeta, era senhora de uma sabedoria enorme, feita de anos e de sofrimento, e dela aprendi provérbios, ditos, histórias, lendas, e a dinâmica da vida, a resiliência.
O meu avô ensinou-me a jogar, às cartas e não só. A bisca foi óptima para aprender a fazer contas rapidamente e ganhar desembaraço manual.
Com ambos aprendi lengalengas e jogos tradicionais, pico, pico, maçarico, cama de gato, etc.
Estive perto e vivi intensamente a partida, primeiro da minha avó, depois do meu avô.
 
Na véspera do falecimento, percebi que era a última vez que o via e despedi-me com carinho, mas sem mencionar a minha intuição, e ele nem estava assim tão mal. Também nada disse ao meu pai. Mas ficou tanto por fazer, tanto por falar. Queria que o meu avô me ensinasse a podar oliveiras e outras coisas que não cheguei a aprender, outras que ficaram por dizer.
Todos sofremos desta incapacidade de gerir o tempo e vivemos ignorando que qualquer dia pode ser o último.
Hoje tenta ignorar-se a morte e desbaratamos o tempo, escasseia a consideração e cuidado que os avós merecem e de que necessitam, pois cada um de nós começa por ser uma extensão dos avós. Somo-lo geneticamente, mas nem sempre o assumimos no contexto de tradições.
E se for necessário alterar os nossos conceitos sociais e familiares para voltarmos a ter avós, com tempo e paciência para os netos, e netos, com mais atenção aos avós que à electrónica, pois que assim seja.
Orlando de Carvalho
 

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Entender a fé e a caridade



Filósofos e teólogos têm estabelecido dicotomias ao longo dos tempos. É uma metodologia para aprofundar assuntos, a comparação entre um conceito e o seu oposto, ou simplesmente o não-conceito, e quanto maior o fosso estabelecido, mais profunda será a discussão apaixonada entre os defensores de cada uma das perspectivas.
Universal e individual, Céu e Inferno, pessoa e sociedade, vida e morte, racional e empírico, fé e razão, trabalho e capital.
Normalmente a metodologia escolhida está em relação com o objectivo que o pensador quer atingir, pois raramente ele parte para esta investigação sem levar na bagagem a meta que irá atingir. Ele identifica-se com a meta e não pode admitir que o seu ponto de partida não conduz inexoravelmente a ela. Quando os pitagóricos descobriram que havia números irracionais e que toda a sua teoria assentava em pressupostos errados, não corrigiram os seus erros, mas esconderam a realidade. A Escola de Pitágoras não é caso único na Ciência, embora eles sejam mais comuns na política. Quem dá o braço a torcer e pede desculpa por se ter enganado no campo da acção política?
Um dos pontos fulcrais da disputa entre protestantes e católicos é o de se saber se a Salvação vem através da Caridade ou da Fé.
São Paulo afirma o primado da fé (Rom 1,17; Rom 3,22; Rom 3,28; Rom 4,16) mas também lhe opõe primazia da caridade (1Coríntios 13, Cântico da Caridade). Em que ficamos então? Com São Paulo, como os protestantes, que defendem que a salvação vem pela fé, ou também com São Paulo, como os católicos, que afirmam que a salvação vem pela caridade? Não podemos esquecer que muitos outros textos epistolares deste e de outros autores afirmam uma e outra coisa.
Tal como noutros casos inicialmente apontados de dicotomias filosóficas e teológicas, talvez não haja evidência de oposição nem contradição. Continua São Paulo, noutro local:
- Então, pela fé anulamos a Lei? De modo nenhum! Pelo contrário, nós confirmamo-la. (Rom 3,31)
Afirmo de modo talvez mais incisivo do que outros já o fizeram que quem diz que tem fé, mas não respeita a Lei, entenda-se o mandamento do amor, a caridade plena, de facto não tem fé, pois se tivesse punha em prática aquilo em que diz acreditar. Ora, se não pratica a caridade em plenitude, se não sente isso como uma necessidade que lhe é imposta pela fé, então está absolutamente enganado e não tem fé, pois a fé é precisamente essa necessidade imperiosa ditada pelo mais íntimo do ser humano de realizar-se como imagem de Deus (Génesis 1,27) e, como Deus é Amor (1João 4,8), praticar a caridade, que é o verdadeiro sentimento e natureza de Deus, é uma coisa divina, é experimentar já neste mundo a felicidade da vida eterna junto de Deus, isto é, no seio do Amor.
Que é a fé senão acreditar no que não vimos, crer em Deus (1João 4,12)? Ora, como Deus é Amor, ter fé é acreditar no Amor, que é um dos nomes da Caridade. O objectivo da fé é precisamente a caridade e se esta não existisse, por absurdo impossível, não haveria fé, a fé não faria sentido, pois ter fé é acreditar na caridade que é Deus. Se não existisse a caridade, como Deus é a Caridade, nada existia, pois tudo foi por Ele criado.
Mesmo aquele que não crê em Deus, porque não Lhe foi anunciado ou tem coração endurecido, quando pratica a caridade exprime-se como imagem de Deus, isto é, naquela essência divina em que foi criado.
A salvação vem pelas obras, pelo exercício da caridade, pela realização da Lei, como afirmam os católicos. Por outro lado, como afirmam os protestantes, a salvação vem pela fé, porque quando ela existe exprime a configuração do homem com aquela imagem de Deus, que ele é, desde o início e crê em Deus, professa a caridade como razão maior.
Neste contexto, a razão, tantas vezes usada para jogar com a fé, não passa de uma ferramenta, tal como a experiência, ao serviço tanto da fé como da caridade.

Orlando de Carvalho