Filósofos e teólogos têm estabelecido dicotomias ao longo
dos tempos. É uma metodologia para aprofundar assuntos, a comparação entre um
conceito e o seu oposto, ou simplesmente o não-conceito, e quanto maior o fosso
estabelecido, mais profunda será a discussão apaixonada entre os defensores de
cada uma das perspectivas.
Universal e individual, Céu e Inferno, pessoa e sociedade,
vida e morte, racional e empírico, fé e razão, trabalho e capital.
Normalmente a metodologia escolhida está em relação com o
objectivo que o pensador quer atingir, pois raramente ele parte para esta
investigação sem levar na bagagem a meta que irá atingir. Ele identifica-se com
a meta e não pode admitir que o seu ponto de partida não conduz inexoravelmente
a ela. Quando os pitagóricos descobriram que havia números irracionais e que
toda a sua teoria assentava em pressupostos errados, não corrigiram os seus
erros, mas esconderam a realidade. A Escola de Pitágoras não é caso único na
Ciência, embora eles sejam mais comuns na política. Quem dá o braço a torcer e
pede desculpa por se ter enganado no campo da acção política?
Um dos pontos fulcrais da disputa entre protestantes e
católicos é o de se saber se a Salvação vem através da Caridade ou da Fé.
São Paulo afirma o primado da fé (Rom 1,17; Rom 3,22; Rom
3,28; Rom 4,16) mas também lhe opõe primazia da caridade (1Coríntios 13,
Cântico da Caridade). Em que ficamos então? Com São Paulo, como os
protestantes, que defendem que a salvação vem pela fé, ou também com São Paulo,
como os católicos, que afirmam que a salvação vem pela caridade? Não podemos
esquecer que muitos outros textos epistolares deste e de outros autores afirmam
uma e outra coisa.
Tal como noutros casos inicialmente apontados de dicotomias
filosóficas e teológicas, talvez não haja evidência de oposição nem
contradição. Continua São Paulo, noutro local:
- Então, pela fé anulamos a Lei? De modo nenhum! Pelo contrário,
nós confirmamo-la. (Rom 3,31)
Afirmo de modo talvez mais incisivo do que outros já o
fizeram que quem diz que tem fé, mas não respeita a Lei, entenda-se o
mandamento do amor, a caridade plena, de facto não tem fé, pois se tivesse
punha em prática aquilo em que diz acreditar. Ora, se não pratica a caridade em
plenitude, se não sente isso como uma necessidade que lhe é imposta pela fé,
então está absolutamente enganado e não tem fé, pois a fé é precisamente essa necessidade
imperiosa ditada pelo mais íntimo do ser humano de realizar-se como imagem de
Deus (Génesis 1,27) e, como Deus é Amor (1João 4,8), praticar a caridade, que é
o verdadeiro sentimento e natureza de Deus, é uma coisa divina, é experimentar
já neste mundo a felicidade da vida eterna junto de Deus, isto é, no seio do
Amor.
Que é a fé senão acreditar no que não vimos, crer em Deus (1João
4,12)? Ora, como Deus é Amor, ter fé é acreditar no Amor, que é um dos nomes da
Caridade. O objectivo da fé é precisamente a caridade e se esta não existisse,
por absurdo impossível, não haveria fé, a fé não faria sentido, pois ter fé é
acreditar na caridade que é Deus. Se não existisse a caridade, como Deus é a
Caridade, nada existia, pois tudo foi por Ele criado.
Mesmo aquele que não crê em Deus, porque não Lhe foi
anunciado ou tem coração endurecido, quando pratica a caridade exprime-se como
imagem de Deus, isto é, naquela essência divina em que foi criado.
A salvação vem pelas obras, pelo exercício da caridade, pela
realização da Lei, como afirmam os católicos. Por outro lado, como afirmam os
protestantes, a salvação vem pela fé, porque quando ela existe exprime a
configuração do homem com aquela imagem de Deus, que ele é, desde o início e
crê em Deus, professa a caridade como razão maior.
Neste contexto, a razão, tantas vezes usada para jogar com a
fé, não passa de uma ferramenta, tal como a experiência, ao serviço tanto da fé
como da caridade.
Orlando de Carvalho
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