quinta-feira, 27 de julho de 2023

Jornadas Mundiais da Juventude Lisboa 2023

JMJ2023: Já foi divulgado o logótipo da Jornada Mundial da Juventude em  Portugal - Atualidade - SAPO 24 

 

Jornadas Mundiais da Juventude Lisboa 2023

Unidade Universal

 

A esmagadora maioria do país prepara-se para acolher as Jornadas Mundiais da Juventude e o Papa Francisco. Como sempre acontece as Jornadas não agradam a todos e alguns contestam-nas ostensivamente, inventando as mais bárbaras objecções.

Os “ataques às JMJ” começaram com a inoportunidade com que foi convocado o “Grande Plenário Judicial” para apreciar os “milhares” de crimes de pedofilia e abusos sexuais cometidos por ministros e agentes da Igreja Católica. Esta inoportunidade é da própria CEP! E a montanha pariu um rato!

Criaram-se os mais variados casos que foram títulos e cabeça de cartaz na comunicação social, contestando: os locais escolhidos, os custos do evento, tudo afinal, culminando na polémica que envolveu o altar do Parque das Nações, como cereja no topo do bolo.

Em 13 de Maio de 2017, o Papa Francisco criticou o clericalismo como uma peste que assola a Igreja. Tudo tranquilo.

Salvo erro em 10 de Julho de 2023, D. Américo Aguiar diz que não quer converter jovens. Caiu o Carmo e a Trindade.

Vejamos como a Igreja tem enfrentado

os reveses

os mal-entendidos

as alucinações de alguns não cristãos que contestam as JMJ e o fazem discutindo a Teologia que desconhecem

as lamentações sobre inconvenientes deste evento para a população portuguesa, perturbando o seu dia-a-dia, a mobilidade, etc.

a dimensão dos custos para o erário público?

A Igreja vem repetindo o erro de São Paulo em Atenas e defende-se tentando demonstrar que este gesto de comunhão e evangelização dá lucro.

Isso!

Que dá lucro e por isso se deve realizar.

Mas a JMJ é para dar lucro? A missa é para dar lucro? Ficam os objectores com autoridade para limitar ou cortar a liberdade religiosa?

Aparentemente ainda faltam uns dias para as JMJ, mas de facto já começaram há muito. Todos nos apercebemos, nas ruas, por todo o país, nos trabalhos preparatórios das Jornadas com a participação de milhares de jovens, de todos os países do mundo que vieram mais cedo. Vieram conviver com outros jovens, ver como vai ser, em comunhão na procura de Jesus. Há pouco na televisão, uma jovem da República Checa estava eufórica: participava nos trabalhos preparatórios e queria ver o mar, no país dela não há mar e ela nunca viu o mar.

Quanta riqueza nestas JMJ Lisboa 2023!

Alguns devem achar que seria preferível ver os jovens e os menos jovens que estão envolvidos nestes trabalhos preparatórios que decorrem há algum tempo, a passar o tempo com ocupações digitais, redes, jogos, pornografia? Vê-los por aí sem fazer nada ou a beber álcool e outros aditivos?

Perdia-se o intercâmbio entre jovens de todos os países do mundo? Intercâmbio tão defendido pelos responsáveis educativos. Não é preferível estar na JMJ que numa visita de estudo ou de fim de ano nos bares do sul de Espanha a virar litros de álcool?

E estamos a ver o Bispo Américo Aguiar ir a países de onde há  jovens que queriam vir a Portugal, não podem vir e ele leva-lhes um cheirinho de JMJ aos seus países.

Esta comunhão de fiéis é prescindível? Não!

Nós católicos, e outros cristãos, quem sabe se também outros gente ainda à procura de orientação, temos o direito legal de nos reunirmos. E o Estado que recebe os nossos impostos tem o dever de ajudar, se a ajuda for solicitada.

 

Fala-se de um milhão de peregrinos para as JMJ.

Como correu a EXPO 98? E até deu muito lucro em variadíssimos aspectos, embora isso não entre nestas contas.

Como foi com a organização do Euro 2004?

E Portugal não está a preparar uma candidatura com a Espanha para um próximo Campeonato do Mundo de Futebol?

Afinal é bom ou mau termos milhões de estrangeiros a visitar o nosso país e partilharmos com eles as nossas belezas nacionais? Quando o mundo enfrenta tantas guerras, Portugal abre-se ao acolhimento de todos os estrangeiros que venham por bem.

Não têm sido habituais nas anteriores JMJ distúrbios e desacatos, guerras de bêbedos e de vândalos, prisões de desordeiros. Mas é isso que acontece quando há em Portugal um jogo de futebol em que Benfica, Sporting ou Porto recebem fãs do clube adversário, e, no meio deles, vândalos denominados hooligans.

Um amigo meu insiste em afirmar em tom sarcástico que isto são as Jornadas Mundiais da Igreja. E então, pergunto eu? Milhões de pessoas peregrinam anualmente a Fátima. Somos um país já preparado para grandes aglomerados de pessoas com finalidade espiritual.

Por fim, analisemos a questão quanto aos lucros verdadeiros: a alegria que se vê no rosto de tantos jovens (de todas as idades), que já enchem todos os distritos do país, o empenho que nestes tempos está a ocupar tantas pessoas que fazem gosto em partilhar o seu tempo para ajudar. Comungarem o mesmo Evangelho nas diferentes línguas e segundo diferentes culturas. Anunciando o Evangelho como Jesus ensinou: pelo testemunho.

Os portugueses estão felizes por esta oportunidade de celebrar a sua fé.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Frei Bartolomeu dos Mártires


 

“O Bispo deve constantemente confrontar a sua vida com o ideal que assumiu, porque a vida convence e atrai mais do que as palavras; só a fraternidade vivida com os seus presbíteros poderá impedir que o Bispo viva «só» no meio das multidões e no meio dos problemas; uma vida pastoral que pretenda responder às diversas inquietações de hoje deverá conciliar a contemplação com a encarnação no mundo; esta pressupõe a humildade que leva o pastor a acolher a verdade que brota tanto do interior da Igreja como de fora dela – um acolhimento com traços maternais, para manifestar «o rosto materno de
Deus»” – do livro Stimulus Pastorum, da autoria de Frei Bartolomeu dos Mártires, citado por Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga, na 8ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, em 5 de Outubro de 2001, no Vaticano.
Bartolomeu do Vale nasceu em Lisboa nos princípios de Maio de 1514, filho de Maria Correia e Domingos Fernandes. Os pais chamaram-lhe Bartolomeu e baptizaram-no na Igreja Paroquial dos Mártires, devido à grande devoção que tinham por Nossa Senhora dos Mártires.
Em 1528 juntou-se aos dominicanos, que muito gostava de ouvir pregar e acrescenta ao seu nome “dos Mártires”, pela mesma devoção dos pais a Nossa Senhora dos Mártires. Distingue-se em gramática, artes e teologia, mas em tudo mostrando sempre grande inteligência. Foi eleito prior do Convento de São Domingos de Benfica, em Lisboa. Em 1558 foi nomeado Arcebispo de Braga, título que aceitou apenas por obediência. Até chegar a bula papal com a sua nomeação, enclausurou-se no convento de
Azeitão. A 4 de Outubro de 1559 entrava em Braga e tomava posse da cátedra arquiepiscopal. Exerceu o múnus episcopal com grande zelo e caridade. Mandou retirar do Paço tudo o que era luxo mundano e futilidade, vivendo com grande modéstia e simplicidade. O zelo evangélico e pastoral em relação ao rebanho que lhe tinha sido confiado é bem esclarecido por Frei Luís de Sousa:
“Era fim de Janeiro, tempo ventoso e frigidíssimo. Deixou o abrigo e chaminés dos seus paços, foi-se experimentar os maus caminhos e piores gasalhados das aldeias... Mas queixavam--se os seus que não podiam aturar a continuação do trabalho, dos caminhos, das invernadas; ele só, com trabalhar mais que
todos; sofria desassombradamente todas as incomodidades; e nos caminhos, por fragosos e ásperos que fossem, era o primeiro que os acometia, pondo-se na dianteira.
Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na maior parte da jornada; e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava.
Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo seu costume, que era caminhar quase sempre só pera se ocupar com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus.
Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho: e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o, e disse-lhe que se descesse abaixo pera a lapa e fugisse
da chuva, pois não tinha roupa bastante pera a esperar.
– Isso não! – respondeu o pastorinho, – que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mama-me o cordeiro!
– E que vai nisso? – disse o Arcebispo.
– A mi me vai muito – tornou ele, – que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva...
Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrescentou:
– Este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que, se este, com tão pouco remédio pera as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais que o descanso,
que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desemparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?” – em Vida e Obra de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de Sousa.

Convocado o terceiro Concílio de Trento pelo Papa Pio IV, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires viajou incógnito, disfarçado de simples padre, para evitar as honras que lhe eram devidas. Chegou a Trento a 18 de Maio de 1561.
Durante o Concílio foi-lhe confiada a revisão dos livros que deviam ser proibidos. Notabilizou-se pelas suas intervenções, muito claras, falando principalmente sobre a reforma dos costumes eclesiásticos. Apresentou duzentas e sessenta e oito petições ao longo dos trabalhos conciliares. Duas frases atestam
bem o seu pensamento sobre o assunto e a frontalidade da sua atitude: “Vossas senhorias são as fontes donde todos os prelados bebem; necessário é portanto que a água seja limpa e pura”. Ou: “Os ilustríssimos e reverendíssimos cardeais precisam duma ilustríssima e reverendíssima reforma”.
Num concílio suscitado em grande parte pelas reformas protestantes, o arcebispo de Braga afirmou que “A Igreja está mais precisada de reformas que de dogmas”.
De volta à sua arquidiocese continuou a governar ainda com mais zelo, depois das propostas e dos reparos que fizera em Trento. Esta situação levantou contra si alguns protestos e inimizades. Perante a ignorância com que se deparava, tanto entre o povo como entre os padres, organizou escolas para formação do clero e mandou ler textos seus ao povo sobre doutrina – o Catecismo ou Doutrina Cristã e
Práticas Espirituais. Escreveu trinta e dois livros, um dos quais, O Estímulo dos Pastores, já atrás citado, foi oferecido a todos os participantes no Concílio Vaticano I, em 1870 e novamente no Concílio Vaticano II, em 1962!
Para dar concretização a uma das recomendações do Concílio de Trento, fundou o Seminário de Braga, que é considerado a primeira casa de formação de sacerdotes em todo o mundo.
Em relação à jurisdição eclesiástica e regalias do clero era intransigente, entrando em conflito mesmo com o rei. Em 1582, estando Portugal ocupado pelos castelhanos, Frei Bartolomeu dos Mártires renunciou ao cargo, retirando-se para o Convento de São Domingos que fundara em Viana do Castelo. 

Partiu para junto de Deus a 16 de Julho de 1590.
Sua Santidade João Paulo II beatificou Frei Bartolomeu dos Mártires a 4 de Novembro de 2001.
Ficam ainda as palavras indignadas de Frei Bartolomeu dos Mártires, no Concílio de Trento, contra a ignorância:


“Não temos quem ensine, quem confesse, nem quem pregue frutuosamente. Por isso ninguém estuda, ninguém trabalha por saber e geralmente se tem por erro gastar tempo, vida e fazenda nas Universidades: quando basta servir ociosamente ao bispo; ou a seu parente sem mais cansar, nem saber, para gozar rendas de grandes benefícios: quando vale mais a ignorância com poucas onças de favor, que a ciência e boas letras com grandes pesos de merecimento”.

Já depois da publicação deste capítulo na obra "Os Santos de João Paulo II", em 2004, o Papa Francisco canonizou Frei Bartolomeu dos Mártires em Roma, no dia 10 de Novembro de 2019.

A Igreja comemora São Bartolomeu dos Mártires a 18 de Julho.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Por que morrem as crianças?

 

A imagem mais antiga que possuo de uma criança associada à morte remonta aos meus seis ou sete anos e é das mais presentes que tenho desse aspecto da vida que mais dificuldade tenho em compreender: a morte. E esta criança, recordo-a sempre que vejo pares de cerejas. Por causa dela, tentei sempre evitar que as minhas filhas brincassem usando pares ou trios de cerejas como brincos. Uma coisa tão bonita!

Tratou-se de um miúdo do bairro. Almoçou e durante o almoço usou como costumava fazer-se então, colocar cerejas cujos pés estão unidos como se fossem brincos na orelha, contaram os vizinhos, que ouviram os pais nas suas lamentações. Depois do almoço comeu gelado. Diziam, antigamente ligava-se muito a essas coisas, que o frio do gelado lhe teria parado a digestão. Foi de urgência, em ambulância, porque nesse tempo as pessoas em geral não tinham viatura própria, para o hospital. Faleceu a seguir. Não me recordo o seu nome.

 

Quando eu frequentava o Liceu de Camões faleceu um aluno. Eu não o conhecia. Recordo a consternação entre todos nós, mesmo entre os que não o conheciam e a indignação da minha professora de Matemática, a Dra. Ondina de Vasconcelos, pela forma como o Reitor, o Dr. Sérvulo Correia, tratou do assunto. Ela partilhou connosco que fosse ela a mandar no liceu, teria dado a possibilidade de participar nas exéquias a todos os alunos que o desejassem, sem marcação de falta, ou que fosse enviada uma delegação representativa. Não aconteceu uma coisa nem outra. E sobre a possibilidade de os alunos faltarem, esta senhora foi minha professora durante quatro anos e faltou uma vez. Apenas uma vez. Explica a consideração em que tinha a assiduidade. Talvez o Reitor estivesse demasiado ligado ao regime para tomar iniciativas tão ousadas.

 

As palavras mais dolorosas desta crónica referem-se à nossa filha mais velha, com vinte e seis anos. Estava internada no Hospital Curry Cabral, nunca entendemos bem porquê, nem para quê, mas ela era diabética e os médicos convenceram-nos. Na véspera da sua partida, o médico assistente, um jovem, veio contar-me assim num canto, quase em segredo, que na ausência dos médicos da equipa, outra médica, que estava portanto apenas em substituição, deu um analgésico à minha filha diferente do que ela estava habituada a tomar e que não o devia ter feito. E ele, médico assistente, quando entrou de novo ao serviço, deu à minha filha o analgésico habitual. Acrescentou que não lhe passou pela cabeça que a outra médica lhe tivesse dado um medicamento diferente. Acontece que ambos os medicamentos agiam sobre o Sistema Nervoso Central. Mas ele não conferiu o registo diário de prescrições, porque nunca pensou que um médico que não era do serviço tivesse alterado a medicação. Uma grande conversa, quase em sussurro, sem nada de concreto e eu sem perceber, nesse dia, que ele estava tão-somente a pedir-me desculpa. A nossa filha faleceu nessa noite sozinha no hospital. A mãe nunca se perdoou não ter lá passado a noite. Como podia ela, ou eu, imaginar a realidade que ali estava a acontecer? Foi cruel ninguém ter falado connosco com clareza, explicarem-nos, terem-nos dito para ficarmos com a nossa menina nessas últimas horas. No dia seguinte, de manhã, porque nós passávamos lá os dias quase todos, ao chegarmos, em vez de nos cumprimentarem como era habitual, deparámo-nos com os funcionários todos a virarem-nos as costas, a fugirem de nós, autenticamente a fugirem, de olhos no chão, e quando entrámos no quarto, a cama da nossa menina estava… não estava lá. Não percebemos logo. Começámos a perguntar o que se passava, se tinha ido fazer algum exame. Os outros doentes calavam ou viravam as costas, e os funcionários continuavam a fugir de nós. De mim, da minha mulher e da filha que nos acompanhava. Foi um filme de terror antes de vir a dor. Os três a correr pelo hospital e a chamar pela nossa menina. Só víamos pessoas de olhos no chão e a encobrirem o rosto. Finalmente chamaram-nos ao gabinete do Director de Nefrologia, um médico que trabalhava no hospital e era também director num centro de hemodiálise, propriedade de uma empresa de venda de máquinas de hemodiálise. Um capitalista que só pensava em dinheiro e não queria saber dos doentes. Ingénuos, nunca pensámos que chegassem ao ponto de usar uma jovem como cobaia sem autorização. Quando o Director nos contou, gritámos e chorámos os três, o pai e a mãe e a irmã, gritei bem alto “assassinos” repetidas vezes enquanto chorávamos amargamente. Continuei a gritar e a acusar de “assassinos” pelos corredores do hospital, e perguntando aos gritos onde estava a nossa menina. Finalmente e para acabar com aquilo, o médico Director do Serviço, que falsificou os dados da ficha da nossa filha, mandou chamou um familiar para lhe entregar um recado para nós, uma vez que não teve a coragem de nos voltar a enfrentar, com uma ameaça. O corpo da menina seria liberto de imediato se eu me calasse, caso contrário, ficava para autópsia. Calei-me. Não queríamos aumentar a nossa dor, passando pela autópsia e esta seria facilmente falsificada. E não nos devolviam a menina.

A nossa menina está no Céu.

 

Neste rol de crianças e jovens, segue-se o meu primo Jorge. Foi acometido por uma doença súbita neurodegenerativa e faleceu em muito pouco tempo. Era jovem, mas deixou esposa e dois filhos. E pais órfãos.

 

O meu genro Miguel também foi um caso estranho. Sentiu dores no tronco, depois dores e paralisia dos membros, e em dois dias ficou tetraplégico.

Incluo como crianças e jovens mesmo os que já são mais velhos, mas da idade das minhas filhas, pois é assim que as considero e aos seus amigos.

O Miguel deixou um testemunho muito valioso para este tempo em que todos parecem obcecados pela eutanásia. Embora paraplégico, completamente paralisado do pescoço para baixo, mesmo com dificuldade para os movimentos necessários à respiração e à digestão, ele continuou a realizar o trabalho que fazia normalmente e para o qual tinha formação e a receber salário. Trabalhava em casa, usando um computador adaptado à sua situação, teclando com uma vara segura na boca. Até dava contributos para a Wikipedia.org. No seu sofrimento, físico com dificuldade em respirar por falta de força para os músculos que movem os pulmões, no sofrimento moral por se sentir 100% dependente e toda a humilhação (considera-se humilhação ou não, depende da perspectiva) dessa dependência total. Numa das crises respiratórias, foi ao hospital, lá ficou sozinho e de lá partiu para Deus.

Vem a propósito do Miguel lembrar que a eutanásia tem principalmente duas explicações. Incapacidade para motivar e apoiar o doente para continuar a viver e dar-lhe motivos de esperança e de alegria. Sim, o Miguel era alegre, dentro de tanto sofrimento. Ele queria viver, conviver, não morrer. Impaciência de quem convive com o doente, quando há quem com ele conviva, porque é fácil achar um grande incómodo cuidar de uma pessoa nestas condições. E os apoios do Estado, ou de qualquer entidade, são o que sabemos. Embora noutros países exista um incitamento à eutanásia precisamente porque é mais barato e dá menos trabalho que aturar uma pessoa em situação limite de sofrimento.

 

O Paulo faleceu aos quarenta e nove anos, mas como expliquei anteriormente, ele era da idade das minhas filhas, colega delas e sofri como se fosse meu. Foi um cancro. Ele estava sempre a enviar fotografias, publicava-as na Internet, com algumas graças, cheio de vontade de viver. Mas Deus chamou-o à sua presença.

 

Uma criança, colega de escola das minhas filhas, filho de imigrantes chineses, foi atropelada numa Estrada Nacional. Este facto foi o ponto de partida para a criação de uma Federação Concelhia de Associações de Pais. Na altura, a maior do país. Neste caso houve sensibilidade da escola para fechar e os colegas e professores, a comunidade escolar, poder participar nas exéquias.

 

Lembro também o Vítor Hugo. Este tem o nome afixado no mural em Belém entre os Combatentes mortos na Guerra do Ultramar. Um jovem na flor da idade que terminou num passeio de helicóptero que caiu, em Angola.

 

O neto do amigo José V. que andava na nossa catequese. Se me recordo bem foi um tipo de leucemia que o levou num espaço de tempo muito. Logo a seguir a um passeio da catequese a Sintra, onde ele fez uma linda composição com flores.

 

Muitos casais não conseguem entender uma realidade muito simples. Não entendem, desde logo porque nem admitem pensar que esta situação lhes possa acontecer. Ora, quando os filhos são apenas um, se ele morrer, os pais ficam sem filhos. Acresce que quando o casal tem apenas um filho, tende naturalmente a dar tudo a esse filho, porque é o único, porque nele está todo o sentido de vida dos pais.

 

Um casal passou pelo drama da morte de um filho antes de nascer. O sofrimento tirou-lhes o discernimento, cremaram o bebé e guardaram escrupulosamente as cinzas em casa no quarto de dormir com casal. Foi uma tragédia incomensurável, um choro contínuo, um desnorte, um desapego da vida. Uma dificuldade de se encararem, de falarem no assunto, de admitirem que outros casais pudessem ter bebés, depois crianças em crescimento, vivos.

Um outro casal também pais de filho único confluíam neste toda a sua esperança, a sua razão de viver. Davam-lhe tudo. Até lhe deram a mota com a qual ele se matou, numa noite em que regressava de uma festa.

Ainda outro casal com uma menina com um tumor na cabeça. Fez uma cirurgia, mas era impossível extrair a totalidade do tumor e o remanescente já se sabia que continuaria a crescer. Assim, de vez em quando, havia nova cirurgia, porque o tumor continuava a crescer e esmagaria o cérebro se não fosse cortado, uma vez que extraído não podia ser. E numa dessas cirurgias, na última, a menina já não acordou. A mãe afogou-se em lágrimas enquanto o pai se afogava em vinho. Após anos de sofrimento conseguiram recuperar, na medida em que se consegue continuar a vida numa situação destas.

Depois do breve rol de crianças em sofrimento de morte, referimos o sofrimento de três casais que ficara órfãos de filhos. Um filho que morre é um pedaço de coração que é arrancado aos corações dos pais e não existe melhor termo para explicar o seu sentimento que este.

 

E as crianças e jovens que morrem sem culpa ou com desculpa? Não imaginamos, eu e os que também têm a sorte de viver em lugares civilizados e preservados dos horrores da guerra, o sofrimento por que passa a flor da Humanidade por esse mundo fora. A indiferença com que os ricos e poderosos, a crueldade com que olham para estes infelizes que sofrem tanto. Porquê? Meninos que são recrutados à força para as guerras, a quem são confiadas armas que matam, meninas estupradas, e meninos, sem perceberem o que lhes está a acontecer. Crianças maltratadas dentro das famílias.

E queixamo-nos quando a vida nos corre mal. Comparemos as nossas vidas com estas poucas recordadas no texto e que são apenas estas entre os milhões de casos. E ensaiemos uma prece a Deus para que chegue o dia em que o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitar ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarem juntos, e um menino os guiar; então pastarão juntos o urso e a vaca, e as suas crias ficarão deitadas lado a lado, e o leão comerá feno como o boi.

O bebé brincar no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiar a mão no esconderijo da serpente. E ninguém agir mal nem provocar destruição no monte santo de Deus, pois a Terra estará cheia do conhecimento do Senhor, tal como as águas enchem o mar. (Cf. Isaías 11,6-9)

 

Ao terminar, ocorrem-me as palavras do poema de Augusto Gil.

 

Que quem já é pecador

sofra tormentos, enfim!

Mas as crianças, Senhor,

porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...

 

E uma infinita tristeza,

uma funda turbação

entra em mim, fica em mim presa.

Cai neve na Natureza

- e cai no meu coração.

 

Orlando de Carvalho