A imagem mais antiga que possuo de uma criança associada à morte remonta aos meus seis ou sete anos e é das mais presentes que tenho desse aspecto da vida que mais dificuldade tenho em compreender: a morte. E esta criança, recordo-a sempre que vejo pares de cerejas. Por causa dela, tentei sempre evitar que as minhas filhas brincassem usando pares ou trios de cerejas como brincos. Uma coisa tão bonita!
Tratou-se de um miúdo do bairro. Almoçou e durante o almoço usou como costumava fazer-se então, colocar cerejas cujos pés estão unidos como se fossem brincos na orelha, contaram os vizinhos, que ouviram os pais nas suas lamentações. Depois do almoço comeu gelado. Diziam, antigamente ligava-se muito a essas coisas, que o frio do gelado lhe teria parado a digestão. Foi de urgência, em ambulância, porque nesse tempo as pessoas em geral não tinham viatura própria, para o hospital. Faleceu a seguir. Não me recordo o seu nome.
Quando eu frequentava o Liceu de Camões faleceu um aluno. Eu não o conhecia. Recordo a consternação entre todos nós, mesmo entre os que não o conheciam e a indignação da minha professora de Matemática, a Dra. Ondina de Vasconcelos, pela forma como o Reitor, o Dr. Sérvulo Correia, tratou do assunto. Ela partilhou connosco que fosse ela a mandar no liceu, teria dado a possibilidade de participar nas exéquias a todos os alunos que o desejassem, sem marcação de falta, ou que fosse enviada uma delegação representativa. Não aconteceu uma coisa nem outra. E sobre a possibilidade de os alunos faltarem, esta senhora foi minha professora durante quatro anos e faltou uma vez. Apenas uma vez. Explica a consideração em que tinha a assiduidade. Talvez o Reitor estivesse demasiado ligado ao regime para tomar iniciativas tão ousadas.
As palavras mais dolorosas desta crónica referem-se à nossa filha mais velha, com vinte e seis anos. Estava internada no Hospital Curry Cabral, nunca entendemos bem porquê, nem para quê, mas ela era diabética e os médicos convenceram-nos. Na véspera da sua partida, o médico assistente, um jovem, veio contar-me assim num canto, quase em segredo, que na ausência dos médicos da equipa, outra médica, que estava portanto apenas em substituição, deu um analgésico à minha filha diferente do que ela estava habituada a tomar e que não o devia ter feito. E ele, médico assistente, quando entrou de novo ao serviço, deu à minha filha o analgésico habitual. Acrescentou que não lhe passou pela cabeça que a outra médica lhe tivesse dado um medicamento diferente. Acontece que ambos os medicamentos agiam sobre o Sistema Nervoso Central. Mas ele não conferiu o registo diário de prescrições, porque nunca pensou que um médico que não era do serviço tivesse alterado a medicação. Uma grande conversa, quase em sussurro, sem nada de concreto e eu sem perceber, nesse dia, que ele estava tão-somente a pedir-me desculpa. A nossa filha faleceu nessa noite sozinha no hospital. A mãe nunca se perdoou não ter lá passado a noite. Como podia ela, ou eu, imaginar a realidade que ali estava a acontecer? Foi cruel ninguém ter falado connosco com clareza, explicarem-nos, terem-nos dito para ficarmos com a nossa menina nessas últimas horas. No dia seguinte, de manhã, porque nós passávamos lá os dias quase todos, ao chegarmos, em vez de nos cumprimentarem como era habitual, deparámo-nos com os funcionários todos a virarem-nos as costas, a fugirem de nós, autenticamente a fugirem, de olhos no chão, e quando entrámos no quarto, a cama da nossa menina estava… não estava lá. Não percebemos logo. Começámos a perguntar o que se passava, se tinha ido fazer algum exame. Os outros doentes calavam ou viravam as costas, e os funcionários continuavam a fugir de nós. De mim, da minha mulher e da filha que nos acompanhava. Foi um filme de terror antes de vir a dor. Os três a correr pelo hospital e a chamar pela nossa menina. Só víamos pessoas de olhos no chão e a encobrirem o rosto. Finalmente chamaram-nos ao gabinete do Director de Nefrologia, um médico que trabalhava no hospital e era também director num centro de hemodiálise, propriedade de uma empresa de venda de máquinas de hemodiálise. Um capitalista que só pensava em dinheiro e não queria saber dos doentes. Ingénuos, nunca pensámos que chegassem ao ponto de usar uma jovem como cobaia sem autorização. Quando o Director nos contou, gritámos e chorámos os três, o pai e a mãe e a irmã, gritei bem alto “assassinos” repetidas vezes enquanto chorávamos amargamente. Continuei a gritar e a acusar de “assassinos” pelos corredores do hospital, e perguntando aos gritos onde estava a nossa menina. Finalmente e para acabar com aquilo, o médico Director do Serviço, que falsificou os dados da ficha da nossa filha, mandou chamou um familiar para lhe entregar um recado para nós, uma vez que não teve a coragem de nos voltar a enfrentar, com uma ameaça. O corpo da menina seria liberto de imediato se eu me calasse, caso contrário, ficava para autópsia. Calei-me. Não queríamos aumentar a nossa dor, passando pela autópsia e esta seria facilmente falsificada. E não nos devolviam a menina.
A nossa menina está no Céu.
Neste rol de crianças e jovens, segue-se o meu primo Jorge. Foi acometido por uma doença súbita neurodegenerativa e faleceu em muito pouco tempo. Era jovem, mas deixou esposa e dois filhos. E pais órfãos.
O meu genro Miguel também foi um caso estranho. Sentiu dores no tronco, depois dores e paralisia dos membros, e em dois dias ficou tetraplégico.
Incluo como crianças e jovens mesmo os que já são mais velhos, mas da idade das minhas filhas, pois é assim que as considero e aos seus amigos.
O Miguel deixou um testemunho muito valioso para este tempo em que todos parecem obcecados pela eutanásia. Embora paraplégico, completamente paralisado do pescoço para baixo, mesmo com dificuldade para os movimentos necessários à respiração e à digestão, ele continuou a realizar o trabalho que fazia normalmente e para o qual tinha formação e a receber salário. Trabalhava em casa, usando um computador adaptado à sua situação, teclando com uma vara segura na boca. Até dava contributos para a Wikipedia.org. No seu sofrimento, físico com dificuldade em respirar por falta de força para os músculos que movem os pulmões, no sofrimento moral por se sentir 100% dependente e toda a humilhação (considera-se humilhação ou não, depende da perspectiva) dessa dependência total. Numa das crises respiratórias, foi ao hospital, lá ficou sozinho e de lá partiu para Deus.
Vem a propósito do Miguel lembrar que a eutanásia tem principalmente duas explicações. Incapacidade para motivar e apoiar o doente para continuar a viver e dar-lhe motivos de esperança e de alegria. Sim, o Miguel era alegre, dentro de tanto sofrimento. Ele queria viver, conviver, não morrer. Impaciência de quem convive com o doente, quando há quem com ele conviva, porque é fácil achar um grande incómodo cuidar de uma pessoa nestas condições. E os apoios do Estado, ou de qualquer entidade, são o que sabemos. Embora noutros países exista um incitamento à eutanásia precisamente porque é mais barato e dá menos trabalho que aturar uma pessoa em situação limite de sofrimento.
O Paulo faleceu aos quarenta e nove anos, mas como expliquei anteriormente, ele era da idade das minhas filhas, colega delas e sofri como se fosse meu. Foi um cancro. Ele estava sempre a enviar fotografias, publicava-as na Internet, com algumas graças, cheio de vontade de viver. Mas Deus chamou-o à sua presença.
Uma criança, colega de escola das minhas filhas, filho de imigrantes chineses, foi atropelada numa Estrada Nacional. Este facto foi o ponto de partida para a criação de uma Federação Concelhia de Associações de Pais. Na altura, a maior do país. Neste caso houve sensibilidade da escola para fechar e os colegas e professores, a comunidade escolar, poder participar nas exéquias.
Lembro também o Vítor Hugo. Este tem o nome afixado no mural em Belém entre os Combatentes mortos na Guerra do Ultramar. Um jovem na flor da idade que terminou num passeio de helicóptero que caiu, em Angola.
O neto do amigo José V. que andava na nossa catequese. Se me recordo bem foi um tipo de leucemia que o levou num espaço de tempo muito. Logo a seguir a um passeio da catequese a Sintra, onde ele fez uma linda composição com flores.
Muitos casais não conseguem entender uma realidade muito simples. Não entendem, desde logo porque nem admitem pensar que esta situação lhes possa acontecer. Ora, quando os filhos são apenas um, se ele morrer, os pais ficam sem filhos. Acresce que quando o casal tem apenas um filho, tende naturalmente a dar tudo a esse filho, porque é o único, porque nele está todo o sentido de vida dos pais.
Um casal passou pelo drama da morte de um filho antes de nascer. O sofrimento tirou-lhes o discernimento, cremaram o bebé e guardaram escrupulosamente as cinzas em casa no quarto de dormir com casal. Foi uma tragédia incomensurável, um choro contínuo, um desnorte, um desapego da vida. Uma dificuldade de se encararem, de falarem no assunto, de admitirem que outros casais pudessem ter bebés, depois crianças em crescimento, vivos.
Um outro casal também pais de filho único confluíam neste toda a sua esperança, a sua razão de viver. Davam-lhe tudo. Até lhe deram a mota com a qual ele se matou, numa noite em que regressava de uma festa.
Ainda outro casal com uma menina com um tumor na cabeça. Fez uma cirurgia, mas era impossível extrair a totalidade do tumor e o remanescente já se sabia que continuaria a crescer. Assim, de vez em quando, havia nova cirurgia, porque o tumor continuava a crescer e esmagaria o cérebro se não fosse cortado, uma vez que extraído não podia ser. E numa dessas cirurgias, na última, a menina já não acordou. A mãe afogou-se em lágrimas enquanto o pai se afogava em vinho. Após anos de sofrimento conseguiram recuperar, na medida em que se consegue continuar a vida numa situação destas.
Depois do breve rol de crianças em sofrimento de morte, referimos o sofrimento de três casais que ficara órfãos de filhos. Um filho que morre é um pedaço de coração que é arrancado aos corações dos pais e não existe melhor termo para explicar o seu sentimento que este.
E as crianças e jovens que morrem sem culpa ou com desculpa? Não imaginamos, eu e os que também têm a sorte de viver em lugares civilizados e preservados dos horrores da guerra, o sofrimento por que passa a flor da Humanidade por esse mundo fora. A indiferença com que os ricos e poderosos, a crueldade com que olham para estes infelizes que sofrem tanto. Porquê? Meninos que são recrutados à força para as guerras, a quem são confiadas armas que matam, meninas estupradas, e meninos, sem perceberem o que lhes está a acontecer. Crianças maltratadas dentro das famílias.
E queixamo-nos quando a vida nos corre mal. Comparemos as nossas vidas com estas poucas recordadas no texto e que são apenas estas entre os milhões de casos. E ensaiemos uma prece a Deus para que chegue o dia em que o lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitar ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarem juntos, e um menino os guiar; então pastarão juntos o urso e a vaca, e as suas crias ficarão deitadas lado a lado, e o leão comerá feno como o boi.
O bebé brincar no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiar a mão no esconderijo da serpente. E ninguém agir mal nem provocar destruição no monte santo de Deus, pois a Terra estará cheia do conhecimento do Senhor, tal como as águas enchem o mar. (Cf. Isaías 11,6-9)
Ao terminar, ocorrem-me as palavras do poema de Augusto Gil.
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.
Orlando de Carvalho
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