sábado, 6 de janeiro de 2024

 

O Papa Francisco assinou a Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé Fiducia Supplicans sobre determinadas bênçãos. Trata-se de um documento da maior importância, e não é razão de somenos o factos de alguns padres e Bispos o estarem a criticar com muita violência, enquanto a maioria do povo cristão não se tem manifestado, por concordar ou por não ter conhecimento do documento.

Ora o Vaticano publicou versões em polaco, alemão, francês, italiano, inglês e espanhol. Mas nada em português. E parece que a Conferência Episcopal Portuguesa nada comentou, que tenha chegado ao nosso conhecimento.

Por essa razão, fizemos uma tradução não oficial do documento, a partir dos textos em espanhol, francês e inglês. Que aqui e agora publicamos, para conhecimento, análise e discussão do povo de Deus.

Não traduzimos as notas de rodapé que indicam as fontes das citações e que podem ser consultadas no site do Vaticano.


DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ

Declaração

Fiducia suplicantes (A Confiança Suplicante)

sobre o significado pastoral das bênçãos

 

 

Apresentação

Esta Declaração leva em consideração diversas questões que foram apresentadas a este Dicastério, tanto nos últimos anos como mais recentemente. Para a sua redacção, como é habitual, foram consultados especialistas, foi implementado um processo de redacção adequado e o projecto foi discutido durante o Congresso da Secção Doutrinária do Dicastério. Durante este período de redacção do documento, não faltaram discussões com o Santo Padre. A Declaração foi finalmente submetida ao Santo Padre, que a aprovou com a sua assinatura.

Durante o estudo do tema deste documento, foi tornada pública a resposta do Santo Padre às Dubia de alguns Cardeais, que trouxeram esclarecimentos importantes para a reflexão aqui proposta e que representa um elemento decisivo para o trabalho do Dicastério. Dado que “a Cúria Romana é sobretudo um instrumento ao serviço do sucessor de Pedro” (Const. ap. Praedicate Evangelium, II, 1), o nosso trabalho deve promover, além da compreensão da doutrina perene da Igreja, a recepção do ensinamento do Santo Padre.

Tal como na já mencionada resposta do Santo Padre às Dubia de dois Cardeais, esta afirmação permanece firme na doutrina tradicional da Igreja a respeito do casamento, não autorizando qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa levar a confusão. O valor deste documento, porém, é que oferece uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, o que lhe permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica, intimamente ligada a uma perspectiva litúrgica. Esta reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento em relação ao que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja. Por esta razão, o texto assumiu a forma de uma “Declaração”.

E é precisamente neste contexto que podemos compreender a possibilidade de abençoar os casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu estatuto ou modificar de forma alguma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimónio.

Esta Declaração pretende também ser uma homenagem ao Povo fiel de Deus, que adora o Senhor com tantos gestos de profunda confiança na sua misericórdia e que, nesta atitude, vem constantemente pedir a bênção da Mãe Igreja.

Cartão Vítor Manuel. FERNANDEZ

Prefeito

 

 

 

 

 

Introdução

 

1. A confiança suplicante do povo fiel de Deus recebe o dom da bênção que flui do coração de Cristo através da sua Igreja. Como nos lembra insistentemente o Papa Francisco: “A grande bênção de Deus é Jesus Cristo, é o grande dom de Deus, seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção que nos salvou a todos. Ele é o Verbo eterno com o qual o Pai nos abençoou “quando ainda éramos pecadores” (Rm 5,8) diz São Paulo: Verbo feito carne e oferecido por nós na cruz”.

 

2. Apoiado por uma verdade tão grande e consoladora, este Dicastério considerou diversas questões, formais e informais, sobre a possibilidade de abençoar os casais do mesmo sexo e sobre a possibilidade de oferecer novos esclarecimentos, à luz da atitude paternal e pastoral do Papa Francisco, sobre o Responsum ad dubium formulado pela antiga Congregação para a Doutrina da Fé e publicado em 22 de Fevereiro de 2021.

 

3. O Responsum acima mencionado suscitou numerosas e diversas reacções: alguns elogiaram a clareza deste documento e a sua coerência com o ensinamento constante da Igreja; outros desaprovaram ou não consideraram suficientemente claro na sua redacção e na fundamentação apresentada na Nota Explicativa em anexo. Para responder a esta última com caridade fraterna, parece oportuno retomar o tema e oferecer uma visão que dê coerência aos aspectos doutrinais e pastorais, porque «todo o ensino da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperta a adesão do coração com proximidade, amor e testemunho”.

 

I. A bênção no sacramento do matrimónio

 

4. A recente resposta do Santo Padre Francisco à segunda das cinco questões colocadas por dois Cardeais oferece a oportunidade de aprofundar a questão, especialmente nos seus aspectos pastorais. Isto é para evitar “reconhecer como casamento aquilo que não o é”. Consequentemente, são inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que constitui o casamento, nomeadamente “uma união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta à geração de filhos”, e o que o contradiz. Esta crença é baseada na duradoura doutrina católica do casamento. É só neste contexto que as relações sexuais encontram o seu significado natural, próprio e plenamente humano. A doutrina da Igreja neste ponto permanece firme.

 

5. Esta é também a concepção do matrimónio proposta pelo Evangelho. É por isso que, no que diz respeito às bênçãos, a Igreja tem o direito e o dever de evitar qualquer tipo de rito que possa contradizer esta crença ou levar à confusão. Este é também o sentido do Responsum da antiga Congregação para a Doutrina da Fé, quando afirma que a Igreja não tem o poder de conceder bênçãos às uniões entre pessoas do mesmo sexo.

 

6. É preciso sublinhar que, precisamente no caso do rito do sacramento do matrimónio, não se trata de uma bênção qualquer, mas do gesto reservado ao ministro ordenado. Neste caso, a bênção do ministro ordenado está directamente ligada à união específica de um homem e uma mulher que, com o seu consentimento, estabelecem uma aliança exclusiva e indissolúvel. Isto permite-nos evidenciar melhor o risco de confundir uma bênção, dada a qualquer outra união, com o rito próprio do sacramento do matrimónio.

 

II. O significado de várias bênçãos

 

7. A resposta do Santo Padre acima mencionada convida-nos também a fazer um esforço para desenvolver e enriquecer o significado das bênçãos.

 

8. As bênçãos podem ser consideradas como um dos sacramentais mais difundidos e em constante evolução. Elas conduzem-nos a captar a presença de Deus em todos os acontecimentos da vida e recordam-nos que, mesmo no uso das coisas criadas, o ser humano é convidado a procurar Deus, a amá-lo e a servi-lo fielmente. É por isso que as bênçãos são dirigidas às pessoas, aos objectos de culto e devoção, às imagens sagradas, aos locais de vida, de trabalho e de sofrimento, aos frutos da terra e do trabalho humano, e a todas as realidades criadas que remetem para o Criador e que, através da sua beleza, O louvam e O bendizem.

 

O significado litúrgico dos ritos de bênção

 

9. Do ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção exige que o que é abençoado seja consistente com a vontade de Deus expressa nos ensinamentos da Igreja.

 

10. Com efeito, as bênçãos são celebradas em virtude da fé e ordenadas para o louvor de Deus e para o benefício espiritual do seu povo. Como explica o Ritual Romano, «para tornar mais evidente este fim, segundo a tradição antiga, as fórmulas de bênção destinam-se principalmente a dar glória a Deus pelos seus dons, a pedir os seus favores e a vencer o poder do maligno no mundo”. É por isso que aqueles que invocam a bênção de Deus através da Igreja são convidados a intensificar “as suas disposições, deixando-se guiar por esta fé para a qual tudo é possível” e a confiar-se “a este amor que conduz a observar os mandamentos de Deus”. Por isso, se por um lado “há sempre e em toda parte a oportunidade de louvar, de invocar e de dar graças a Deus por meio de Cristo, no Espírito Santo”, devemos zelar por outro lado “para que não se trate de coisas, lugares ou acontecimentos contrários à lei ou ao espírito do Evangelho”. Esta é uma compreensão litúrgica das bênçãos, à medida que se tornam ritos propostos oficialmente pela Igreja.

 

11. Com base nestas considerações, a Nota Explicativa do Responsum acima citada da antiga Congregação para a Doutrina da Fé recorda que, quando uma bênção é invocada sobre certas relações humanas por meio de um rito litúrgico apropriado, é necessário que o que é bem-aventurado possa corresponder aos desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo Senhor. É por isso que, dado que a Igreja sempre considerou como moralmente lícitas apenas as relações sexuais vividas no âmbito do casamento, não tem o poder de conferir a sua bênção litúrgica quando esta pode, de certa forma, oferecer uma forma de legitimidade moral a uma união que se apresente como casamento, ou prática sexual, extraconjugal. A substância desta posição foi reiterada pelo Santo Padre nas suas Respostas às Dubia de dois Cardeais.

 

12. Devemos também evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a este ponto de vista, porque isso nos levaria a exigir para uma simples bênção as mesmas condições morais que as exigidas para a recepção dos sacramentos. Este risco exige que alarguemos ainda mais esta perspectiva. Com efeito, existe o perigo de que um gesto pastoral, tão amado e tão difundido, esteja sujeito a demasiadas pré-condições morais que, sob o pretexto do controlo, poderiam obscurecer a força incondicional do amor de Deus em que se baseia o gesto da bênção.

 

13. É precisamente neste sentido que o Papa Francisco nos exortou a não “perder a caridade pastoral que deve passar por todas as nossas decisões e atitudes” e a evitar “constituir-nos como juízes que apenas recusam, rejeitam, excluem”. Portanto, respondamos à sua proposta desenvolvendo uma compreensão mais ampla das bênçãos.

 

Bênçãos nas Sagradas Escrituras

 

14. Para reflectir sobre as bênçãos, recolhendo diversos pontos de vista, devemos deixar-nos iluminar sobretudo pela voz da Sagrada Escritura.

 

15. “Que o Senhor te abençoe e te guarde. Que o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, que tenha misericórdia de ti. Que o Senhor volte para ti o seu rosto e te traga a paz” (Números 6:24-26). Esta “bênção sacerdotal” que encontramos no Antigo Testamento, mais precisamente no livro de Números, tem um carácter “descendente”, pois representa a invocação da bênção que desce de Deus sobre o homem: constitui um dos textos mais antigos da bênção divina. Depois há um segundo tipo de bênção que encontramos nas páginas bíblicas, aquela que “sobe” da terra ao céu, a Deus. A bênção equivale então a louvar, celebrar, agradecer a Deus pela sua misericórdia e pela sua fidelidade, pelas maravilhas que criou e por tudo o que aconteceu por sua vontade:

“Bendiz, ó minha alma, o Senhor,

e todo o meu ser, o seu Santo Nome” (Sl 103:1).

 

16. A Deus que abençoa, também respondemos com bênção. Melquisedeque, rei de Salém abênçoa Abraão (cf. Gn 14,19); Rebeca é abençoada pela sua família pouco antes de se tornar esposa de Isaac (cf. Gn 24,60), que por sua vez abençoa seu filho Jacob (cf. Gn 27,27). Jacob abençoou Faraó (cf. Gn 47,10), seus netos Efraim e Manassés (cf. Gn 48,20) e seus doze filhos (cf. Gn 49,28). Moisés e Aarão abençoam a comunidade (cf. Ex 39,43; Lv 9,22). Os chefes de família abençoam os filhos nos casamentos, antes de embarcarem em viagem, quando a morte se aproxima. Estas bênçãos aparecem assim como um dom superabundante e incondicional.

 

17. A bênção presente no Novo Testamento mantém essencialmente o significado do Antigo Testamento. Encontramos o dom divino que “desce”, a acção de graças do homem que “sobe” e a bênção dada pelo homem que “se estende” aos seus semelhantes. Zacarias, tendo recuperado a fala, bendisse ao Senhor pelas suas maravilhas (cf. Lc 1,64). O velho Simeão, segurando nos braços o recém-nascido Jesus, bendisse a Deus por lhe ter concedido a graça de contemplar o Messias salvador, depois abençoou também os seus pais Maria e José (cf. Lc 2,34). Jesus abençoa o Pai, no famoso hino de louvor e de júbilo que lhe é dirigido: “«Eu Te louvo, Pai, Senhor do Céu e da Terra,” (Mt 11,25).

 

18. Em continuidade com o Antigo Testamento, a bênção em Jesus não é apenas ascendente, referindo-se ao Pai, mas também descendente, derramada sobre os outros como gesto de graça, protecção e bondade. O próprio Jesus implementou e incentivou esta prática. Por exemplo, ele abençoou as crianças: “Ele beijou-as e abençoou-as, impondo-lhes as mãos” (Mc 10,16). E a vida terrena de Jesus terminará precisamente com uma bênção final reservada aos Onze, pouco antes de ascender ao Pai: “E, levantando as mãos, abençoou-os. Enquanto os abençoava, separou-se deles e eleva-Se ao Céu” (Lucas 24:50-51). A última imagem de Jesus na terra são as mãos levantadas, abençoando.

 

19. No seu mistério de amor, através de Cristo, Deus comunica à sua Igreja o poder de abençoar. Concedida por Deus aos seres humanos e por eles concedida ao próximo, a bênção transforma-se em inclusão, solidariedade e pacificação. É uma mensagem positiva de conforto, preocupação e encorajamento. A bênção expressa o abraço misericordioso de Deus e a maternidade da Igreja que convida os fiéis a terem os mesmos sentimentos de Deus para com os seus irmãos e irmãs.

 

Uma compreensão teológico-pastoral das bênçãos

 

20. Quem pede uma bênção mostra que tem necessidade da presença salvífica de Deus na sua história, e quem pede uma bênção à Igreja reconhece a Igreja como sacramento de salvação que Deus oferece. Buscar uma bênção na Igreja é admitir que a vida da Igreja brota do seio da misericórdia de Deus e nos ajuda a seguir em frente, a viver melhor, a responder à vontade do Senhor.

 

21. Para nos ajudar a compreender o valor de uma abordagem mais pastoral das bênçãos, o Papa Francisco convidou-nos a contemplar, com uma atitude de fé e de misericórdia paterna, o facto de que “quando alguém pede uma bênção, ele “é um pedido de uma ajuda dirigida a Deus, uma oração para poder viver melhor, uma confiança num Pai que nos pode ajudar a viver melhor”. Este pedido deve ser valorizado, apoiado e acolhido com gratidão. As pessoas que vêm espontaneamente pedir uma bênção demonstram através deste pedido a sua sincera abertura à transcendência, a confiança do seu coração que não depende apenas das suas próprias forças, a sua necessidade de Deus e o seu desejo de escapar da estreiteza deste mundo fechado. em si mesmo.

 

22. Como nos ensina Santa Teresinha do Menino Jesus, além desta confiança “não há outro caminho que nos conduza ao Amor que tudo dá. Através da confiança, a fonte da graça transborda em nossas vidas [...]. A atitude mais adequada é, portanto, colocar a confiança do coração fora de si mesmo, na misericórdia infinita de um Deus que ama sem limites [...]. O pecado do mundo é imenso, mas não é infinito. Por outro lado, o amor misericordioso do Redentor é infinito”.

 

23. Quando estas expressões de fé são consideradas fora do quadro litúrgico, encontramo-nos num domínio de maior espontaneidade e liberdade, mas «o carácter opcional dos exercícios piedosos não pode em caso algum significar qualquer falta de conhecimento, nem mesmo desprezo para com eles. A atitude correta que deve ser adoptada é, pelo contrário, aquela que consiste em valorizar de forma adequada e sábia as riquezas significativas da piedade popular, com o seu potencial”. As bênçãos tornam-se assim um recurso pastoral a valorizar e não um risco ou um problema.

 

24. Consideradas do ponto de vista da pastoral popular, as bênçãos devem ser avaliadas como actos de devoção que “têm um lugar próprio, à parte da celebração da Eucaristia e dos demais sacramentos [...]. A linguagem, o ritmo, a configuração, os acentos teológicos da piedade popular são claramente diferenciados dos elementos correspondentes nas acções litúrgicas”. Pela mesma razão, «devemos evitar qualificar os exercícios piedosos como “celebrações litúrgicas”, porque devem conservar o seu próprio estilo, simplicidade e linguagem particular».

 

25. Além disso, a Igreja deve evitar basear a sua prática pastoral na fixidez de certos padrões doutrinais ou disciplinares, especialmente quando dão origem a «um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os outros, e, em vez de facilitar o acesso à graça, as energias são gastas no controlo”. Portanto, quando as pessoas invocam uma bênção, a análise moral exaustiva não deve ser uma pré-condição para conceder essa bênção. Nenhuma perfeição moral prévia lhes deverá.

 

26. Nesta perspectiva, as Respostas do Santo Padre ajudam a aprofundar melhor, do ponto de vista pastoral, a posição formulada pela antiga Congregação para a Doutrina da Fé em 2021, pois de facto convidam a um discernimento sobre o possibilidade de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam uma concepção errónea do casamento” e que também levem em conta o facto de que, em situações moralmente inaceitáveis ​​​​de um ponto de vista objectivo , “a própria caridade pastoral exige que não tratemos simplesmente como “pecadores” outras pessoas cuja culpa ou responsabilidade pode ser mitigada por vários factores que influenciam a responsabilização subjectiva”.

 

27. Na catequese citada no início desta Declaração, o Papa Francisco descreveu este tipo de bênçãos que são oferecidas a todos, sem pedir nada. Vale a pena ler com o coração aberto estas palavras que nos ajudam a compreender o significado pastoral das bênçãos oferecidas incondicionalmente: “É Deus quem abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia, há uma repetição incessante de bênçãos. Deus abençoa, mas os homens também abençoam, e muito rapidamente descobrimos que a bênção tem uma força especial, que acompanha a pessoa que a recebe durante toda a sua vida, e que dispõe o coração do homem a deixar-se mudar por Deus [...]. Somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer, porque Ele é pai, Ele é mãe, Ele é puro amor, Ele abençoou-nos para sempre. E Ele nunca deixará de nos abençoar. Uma experiência poderosa é ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão ou numa comunidade de reintegração. Fazer com que estas pessoas sintam que permanecem abençoadas apesar dos seus graves erros, que o Pai celeste continua a querer o seu bem e a esperar que no final se abram ao bem. Mesmo que os seus familiares mais próximos os tenham abandonado, porque agora os julgam definitivamente irrecuperáveis, para Deus serão sempre seus filhos.»

 

28. São muitas as ocasiões em que as pessoas vêm espontaneamente pedir uma bênção, seja nas peregrinações, nos santuários, ou mesmo na rua, quando se encontram com um sacerdote. Como exemplo, podemos referir o livro litúrgico De Benedictionibus, que oferece uma série de ritos de bênção para as pessoas: idosos, doentes, participantes numa catequese ou num encontro de oração, peregrinos, pessoas que viajam, grupos e associações benévolas, etc. Estas bênçãos são para todos, ninguém deve ser excluído. Na introdução ao Rito da Bênção dos Idosos, por exemplo, afirma-se que o objectivo da bênção “é expressar aos idosos um testemunho fraterno de respeito e gratidão, e agradecer com eles ao Senhor pelos benefícios que receberam” dele e pelas boas acções que realizaram com sua ajuda”. Neste caso, o objecto da bênção é o idoso, por quem e com quem damos graças a Deus pelas boas acções que realizou e pelos benefícios que recebeu. Ninguém pode ser excluído desta acção de graças e todos, mesmo que vivam em situações que não estão de acordo com o plano do Criador, possuem elementos positivos pelos quais podem louvar ao Senhor.

 

29. Na perspectiva da dimensão ascendente, quando se percebe os dons do Senhor e o seu amor incondicional, mesmo em situações de pecado, especialmente quando uma oração é ouvida, o coração do crente eleva o seu louvor e a sua bênção a Deus. Esta forma de bênção não é proibida a ninguém. Todos – individualmente ou em união com outros – podem elevar o seu louvor e gratidão a Deus.

 

30. Mas o sentido popular de bênção também inclui o valor da bênção descendente. Se «não é oportuno que uma diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial estabeleça constante e oficialmente procedimentos ou regras para todos os tipos de assuntos», a prudência e a sabedoria pastorais podem sugerir que, para evitar formas graves de escândalo ou confusão entre os fiéis, o ministro ordenado se junte às orações de pessoas que, embora vivam uma união que não pode de forma alguma ser comparada ao casamento, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda e ser guiados para uma maior compreensão do seu desígnio de amor e verdade.

 

III. Bênção dos casais em situação irregular e dos casais do mesmo sexo

 

31. No horizonte assim traçado, é possível abençoar os casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, numa forma que não deve ser fixada ritualmente pelas autoridades eclesiais, para não criar confusão com a bênção específica do sacramento do casamento. Nestes casos, é dada uma bênção que não só tem um valor ascendente, mas que é também a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimidade do seu próprio estatuto, mas pedem que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente valioso nas suas vidas e nas suas relações seja investido, curado e elevado pela presença do Espírito Santo. Estas formas de bênção expressam uma súplica a Deus para que conceda as ajudas que vêm dos sussurros do seu Espírito – que a teologia clássica chama de “graças presentes” – para que as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se das suas imperfeições e das suas fragilidades e exprimir-se na dimensão sempre crescente do amor divino.

 

32. A graça de Deus actua de facto na vida daqueles que não se dizem justos, mas se reconhecem humildemente como pecadores como todos os outros. Ela é capaz de dirigir tudo de acordo com os planos misteriosos e imprevisíveis de Deus. É por isso que, com sabedoria e maternidade incansáveis, a Igreja acolhe todos aqueles que se aproximam de Deus com um coração humilde, acompanhando-os com aquelas ajudas espirituais que permitem a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida.

 

33. Esta bênção, embora não faça parte de um rito litúrgico, une a oração de intercessão à invocação da ajuda de Deus por parte de quem humildemente se dirige a ele. Deus nunca rejeita ninguém que se aproxima dele! Em última análise, a bênção oferece às pessoas uma maneira de aumentar a sua confiança em Deus. O pedido de bênção exprime e alimenta a abertura à transcendência, à piedade, à proximidade com Deus nas mil circunstâncias concretas da vida, e isto não é pouca coisa no mundo em que vivemos. É uma semente do Espírito Santo que deve ser nutrida e não impedida.

 

34. A própria liturgia da Igreja convida-nos a esta atitude de confiança, mesmo no meio dos nossos pecados, da nossa falta de mérito, das nossas fraquezas e das nossas confusões, como evidencia esta belíssima colecção extraída do Missal Romano:

“Deus eterno e omnipotente, que, no vosso amor infinito,

cumulais de bens os que Vos imploram

muito além dos seus méritos e desejos, pela vossa misericórdia,

libertai a nossa consciência de toda a inquietação

e dai-nos o que nem sequer ousamos pedir.” (XXVII Domingo do Tempo Comum). Quantas vezes, de facto, através de uma simples bênção do pastor, que com este gesto não pretende sancionar nem legitimar nada, as pessoas podem experimentar a proximidade do Pai, “muito além dos seus méritos e dos seus desejos”.

 

35. É por isso que a sensibilidade pastoral dos ministros ordenados também deve ser educada para realizar espontaneamente bênçãos que não se encontram no Ritual de Bênçãos.

 

36. Neste sentido, é fundamental compreender a preocupação do Papa para que estas bênçãos não ritualizadas não deixem de ser um simples gesto que constitui um meio eficaz de aumentar a confiança em Deus de quem as solicita, evitando que se tornem um acto litúrgico ou semi-litúrgico, semelhante a um sacramento. Isto constituiria um grave empobrecimento, porque submeteria um gesto de grande valor na piedade popular a um controlo excessivo, que privaria os ministros da liberdade e da espontaneidade no acompanhamento pastoral da vida das pessoas.

 

37. A este respeito, vêm à mente as seguintes palavras do Santo Padre, em parte já citadas: “As decisões que, em circunstâncias específicas, podem cair na prudência pastoral, não devem necessariamente ser convertidas em normas. Por outras palavras, não é apropriado que uma diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial estabeleça constante e oficialmente procedimentos ou regras para todos os tipos de questões [...]. O direito canónico não deve e não pode abranger tudo, e nem as Conferências Episcopais podem pretender fazê-lo com os seus vários documentos e protocolos, porque a vida da Igreja passa por muitos canais além dos canais normativos”. O Papa Francisco recordou assim que tudo “que faz parte do discernimento prático face a uma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma”, porque isso “daria origem a uma casuística insuportável”.

 

38. É por isso que não devemos promover nem proporcionar um ritual de bênção para casais em situação irregular, mas também não devemos impedir ou proibir a proximidade da Igreja a qualquer situação onde se procure ajuda de Deus por meio de uma simples bênção. Na breve oração que pode preceder esta bênção espontânea, o ministro ordenado poderá pedir paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e ajuda mútua, mas também a luz e a força de Deus para poder realizar plenamente a sua vontade.

 

39. Em todo o caso, precisamente para evitar qualquer forma de confusão ou escândalo, quando a oração de bênção, embora expressa fora dos ritos prescritos pelos livros litúrgicos, for solicitada por um casal em situação irregular, esta bênção nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos civis de união, nem mesmo em conexão com eles. Nem com roupas, gestos ou palavras próprias do casamento. O mesmo se aplica quando a bênção é solicitada por um casal do mesmo sexo.

 

40. Tal bênção pode, no entanto, encontrar o seu lugar noutros contextos, como uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em grupo ou durante uma peregrinação. Com efeito, com estas bênçãos, que não são concedidas segundo as formas rituais próprias da liturgia, mas antes como expressão do coração materno da Igreja, semelhante àquelas que brotam das profundezas da piedade popular, não queremos legitimar seja o que for, mas apenas abrir a vida a Deus, pedir a sua ajuda para viver melhor, e também invocar o Espírito Santo para que os valores do Evangelho sejam vividos com maior fidelidade.

 

41. O que é dito nesta Declaração sobre a Bênção dos Casais do Mesmo Sexo é suficiente para orientar o discernimento cuidadoso e paternal dos ministros ordenados a este respeito. Além das indicações acima, não se deve, portanto, esperar mais respostas sobre possíveis disposições para regular os detalhes ou aspectos práticos relativos a bênçãos deste tipo.

 

IV. A Igreja é o sacramento do amor infinito de Deus

 

42. A Igreja continua a elevar as orações e súplicas que o próprio Cristo, com fortes gritos e lágrimas, ofereceu durante os dias da sua vida terrena (cf. Hb 5, 7) e que, por isso mesmo, gozam de uma eficácia particular. Assim, «não é só através da caridade, do exemplo e das obras de penitência, mas também através da oração, que a comunidade eclesial exerce um verdadeiro papel maternal para com as almas, para as levar a Cristo».

 

43. A Igreja é, portanto, sacramento do amor infinito de Deus. É por isso que, mesmo quando a relação com Deus está obscurecida pelo pecado, ainda é possível pedir uma bênção, aproximando-nos dele, como fez Pedro na tempestade quando gritou a Jesus: “Senhor, salva-me!” (Mt 14:30). Desejar e receber uma bênção pode ser a coisa certa a fazer em algumas situações. O Papa Francisco recorda-nos que “um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais apreciado por Deus do que a vida exteriormente correta de quem passa os seus dias sem ter que enfrentar dificuldades significativas”. Assim «brilha a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo, morto e ressuscitado».

 

44. Cada bênção será ocasião para um novo anúncio do kerigma, um convite a aproximar-nos cada vez mais do amor de Cristo. O Papa Bento XVI ensinou: “Como Maria, a Igreja é mediadora da bênção de Deus para o mundo: recebe-a acolhendo Jesus e transmite-a carregando Jesus. Ele é a misericórdia e a paz que o mundo não pode dar a si mesmo e da qual sempre necessita, como e mais que o pão”.

 

45. Tendo em conta o que precede, e seguindo o ensinamento autorizado do Santo Padre Francisco, este Dicastério deseja finalmente recordar que “está na raiz da ternura cristã, a capacidade de se sentir abençoado e a capacidade de abençoar. [...]. Este mundo precisa de bênçãos e nós podemos dar e receber bênçãos. O Pai ama-nos. E só nos resta a alegria de O abençoar e a alegria de Lhe dar graças e de aprender com Ele não a amaldiçoar, mas a abençoar”. Assim, todos os irmãos e irmãs poderão sentir na Igreja que são sempre peregrinos, sempre mendigos, sempre amados e, apesar de tudo, sempre abençoados.

 

Vítor Manuel Cardeal FERNANDEZ

Prefeito

 

Mons. Armando Matteo

Secretário para a Secção Doutrinária

 

Da audiência em 18 de Dezembro de 2023

Francisco

 

 

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