quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

CARTA DO SANTO PADRE FRANCISCO AOS BISPOS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


 

Caros Irmãos no Episcopado,

Escrevo-vos hoje para vos dirigir algumas palavras neste momento delicado que estão a viver como Pastores do Povo de Deus que caminham juntos nos Estados Unidos da América.

 

1. O caminho percorrido pelo Povo de Israel da escravidão à liberdade, narrado no Livro do Êxodo, convida-nos a olhar para a realidade do nosso tempo, tão claramente marcada pelo fenómeno das migrações, como um momento decisivo da história para reafirmar não só a nossa fé num Deus sempre próximo, encarnado, migrante e refugiado, mas também a dignidade infinita e transcendente de cada pessoa humana.

 

2. Estas palavras com que começo não são uma construção artificial. Mesmo um exame superficial da doutrina social da Igreja mostra enfaticamente que Jesus Cristo é o verdadeiro Emanuel (cf. Mt 1, 23); não viveu separado da difícil experiência de ser expulso da sua própria terra por causa de um risco iminente de vida, e da experiência de ter de se refugiar numa sociedade e numa cultura estranhas às suas. O Filho de Deus, ao fazer-se homem, escolheu também viver o drama da imigração. Gosto de recordar, entre outras coisas, as palavras com que o Papa Pio XII iniciou a sua Constituição Apostólica sobre o Cuidado dos Migrantes, que é considerada a “Magna Carta” do pensamento da Igreja sobre as migrações:

“A família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egipto e refugiados ali para escapar à ira de um rei ímpio, são o modelo, o exemplo e a consolação dos emigrantes e peregrinos de todas as idades e países, de todos os refugiados de todas as condições que, acossados ​​pela perseguição ou pela necessidade, são forçados a deixar a sua terra natal, a sua amada família e os seus queridos amigos para terras estrangeiras.”

 

3. De igual modo, Jesus Cristo, amando a todos com um amor universal, educa-nos no reconhecimento permanente da dignidade de cada ser humano, sem excepção. De facto, quando falamos de “dignidade infinita e transcendente”, queremos realçar que o valor mais decisivo possuído pela pessoa humana supera e sustenta qualquer outra consideração jurídica que se possa fazer para regular a vida em sociedade. Assim, todos os fiéis cristãos e as pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e das políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e dos seus direitos fundamentais, e não o contrário.

 

4. Tenho acompanhado de perto a grande crise que está a ocorrer nos Estados Unidos com o início de um programa de deportações em massa. A consciência correctamente formada não pode deixar de fazer um juízo crítico e de manifestar a sua discordância com qualquer medida que identifique tácita ou explicitamente o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer o direito de uma nação a defender-se e a manter as comunidades seguras daqueles que cometeram crimes violentos ou graves enquanto estiveram no país ou antes da chegada. Posto isto, o acto de deportar pessoas que, em muitos casos, abandonaram as suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do ambiente, fere a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade e indefesa.

 

5. Esta não é uma questão menor: um autêntico Estado de Direito verifica-se precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem, sobretudo as mais pobres e marginalizadas. O verdadeiro bem comum é promovido quando a sociedade e o governo, com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos — como já afirmei em inúmeras ocasiões — acolhem, protegem, promovem e integram os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis. Isto não impede o desenvolvimento de uma política que regule a migração ordenada e legal. Contudo, este desenvolvimento não pode acontecer através do privilégio de uns e do sacrifício de outros. O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de todo o ser humano, começa mal e acabará mal.

 

6. Os cristãos sabem muito bem que é somente afirmando a dignidade infinita de tudo que a nossa própria identidade como pessoas e como comunidades atinge a sua maturidade. O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos. Por outras palavras: a pessoa humana não é um mero indivíduo, relativamente expansivo, com alguns sentimentos filantrópicos! A pessoa humana é um sujeito digno que, através da relação constitutiva com todos, sobretudo com os mais pobres, pode amadurecer gradualmente na sua identidade e vocação. O verdadeiro ordo amoris que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do “Bom Samaritano” (cf. Lc 10, 25-37), isto é, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem excepção.

 

7. Mas preocupar-se com a identidade pessoal, comunitária ou nacional, para além destas considerações, introduz facilmente um critério ideológico que distorce a vida social e impõe a vontade do mais forte como critério de verdade.

 

 

8. Reconheço os vossos valiosos esforços, queridos irmãos bispos dos Estados Unidos, ao trabalharem em estreita colaboração com os migrantes e refugiados, proclamando Jesus Cristo e promovendo os direitos humanos fundamentais. Deus recompensará ricamente tudo o que fizerem pela protecção e defesa daqueles que são considerados menos valiosos, menos importantes ou menos humanos!

 

9. Exorto todos os fiéis da Igreja Católica e todos os homens e mulheres de boa vontade a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. Com caridade e clareza, todos somos chamados a viver em solidariedade e fraternidade, a construir pontes que nos aproximem cada vez mais, a evitar muros de ignomínia e a aprender a dar a nossa vida como Jesus Cristo deu a sua pela salvação de todos.

 

10. Peçamos a Nossa Senhora de Guadalupe que proteja os indivíduos e as famílias que vivem com medo ou dor devido à migração e/ou deportação. Que a “Virgem morena”, que soube reconciliar os povos quando estavam em inimizade, nos conceda a todos o reencontro como irmãos, no seu abraço, e assim dar um passo em frente na construção de uma sociedade mais fraterna, inclusiva e respeitadora da dignidade de todos.

 

Fraternalmente,

Francisco

 

Vaticano, 10 de Fevereiro de 2025                  

 

 

Não havendo no sítio do Vaticano versão portuguesa, realizei esta tradução.

Orlando de Carvalho

 

 

                                                                              

 

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