Em 1998, na sequência do referendo sobre o aborto, enviei esta carta ao senhor Patriarca de Lisboa.
Reverendíssimo Senhor
D.
José Policarpo
Patriarca
de Lisboa
Campo
Mártires da Pátria
1150
Lisboa
P.L. 98.10.13
Sou
catequista em São Domingos de Benfica.
Estive de
algum modo envolvido na fase final da discussão/campanha para o referendo à
liberalização do aborto.
Dentro do
centro paroquial, num debate esclarecimento promovido pelos jovens e aberto à
comunidade.
Na rua,
coordenando uma equipa de adolescentes e jovens, fazendo campanha dentro da
cidade de Loures. Estes adolescentes e jovens, uns foram convidados, outros
apareceram-me; uns trabalham nas paróquias de Loures ou de São Domingos de
Benfica outros, nada disso.
É a propósito
desta experiência que me dirijo a Vossa Reverência.
Numa fase
inicial, os jovens sentiram alguma frustração. A indiferença generalizada de
quase todas as pessoas; numa feira, dentro da população cigana, que se mostrava
favorável ao NÃO, os homens apressavam-se a tirar a propaganda das mãos das
mulheres, porque elas não teriam direito a votar; para cúmulo, colegas de
escola e amigos pensavam que a campanha era pelo sim, uma vez que as pessoas
envolvidas eram jovens normais, bons alunos, enfim, “malta fixe”, que deveria
estar a fazer campanha pelo outro lado, porque um azar acontece a qualquer uma. Diversos jovens que eram a favor do
NÃO e que estava previsto participarem, tinham, desistido no próprio dia, sem
explicação ou com explicações estranhas.
Eu próprio,
perguntava-me o que estava ali a fazer, pois mesmo a parte didáctica, em
relação aos que comigo colaboravam, a participação nos mecanismos democráticos
da sociedade, pela defesa dos princípios em si, estava bastante prejudicada
pelos acontecimentos.
Numa fase
posterior, tudo, ou quase tudo se modificou.
Jovens e adultos tiveram frases de incitamento à nossa acção e
apareceram pessoas a pedir material de propaganda.
A parte mais
compensadora, contudo foi a do diálogo que foi possível estabelecer com as
pessoas que passavam. Estas, começaram a perguntar, porque não tinham a mínima
ideia do que se discutia em concreto. Muitas pessoas verdadeiramente indecisas,
poderão ter sido influenciadas pelo diálogo que foi estabelecido. Pessoas
favoráveis ao aborto, mostraram respeito pela posição dos jovens em campanha.
Fiquei feliz, por aqueles a quem levantámos um problema que se lhes não punha e
por aqueles que eventualmente tenham passado a optar pela vida. Essencialmente
fiquei muito contente pelos jovens que estiveram comigo, tanto pela capacidade
que mostraram no diálogo estabelecido, como pela satisfação que tiveram em
“convencer as pessoas”.
A razão desta
carta, senhor Patriarca, é uma reflexão sobre o que esteve para trás e o que
virá a passar-se. Afirmei, antes do referendo, que se ganhasse o SIM, dentro de
algum tempo estaria a ser proposta uma liberalização ainda mais ampla para o
aborto, que se ganhasse o NÃO, dentro do mesmo algum tempo, estaria a ser
proposto o mesmo, com outra redacção, e sê-lo-ia, indefinidamente, até eles conseguirem os seus objectivos.
Mantenho plenamente o meu pensamento de então.
Quero com
esta carta disponibilizar-me para participar, a qualquer nível nas acções que
penso que nós, Igreja, vamos desenvolver inevitavelmente. Talvez internamente,
repensar a mensagem a transmitir nas aulas de Moral e Religião e nos encontros
de Catequese a propósito da vida e pôr os diversos grupos de cristãos a
reflectir sobre essa mesma vida. Externamente, vimos, por exemplo, a
publicidade promíscua e mesmo ordinária, que a propósito da Sida é desenvolvida
e, como quem cala consente, parece que todos concordamos, uma vez que nem a
Igreja como entidade, nem muitos de nós como cidadão, têm tomado posição
inequívoca.
Mais uma vez
transmito a minha disponibilidade para trabalhar, tanto a coordenar, como a
executar seja o que for. A minha posição, como tentei evidenciar, não é de
crítica, mas de incentivo ao desenvolvimento de actividades.
Subscrevo-me,
saudando Vossa Reverência no Senhor que dá a Vida, rogando-Lhe que o abençoe e
ilumine.
Atentamente,
Orlando de Carvalho
Recebi a simpática resposta, que reproduzo porque não me foi pedida confidencialidade e porque é um assunto da maior importância para a Igreja. O Evangelho ensina que a verdade não se esconde.
Passados mais de quinze anos, tudo se passou como, em devido tempo, expliquei ao senhor Patriarca que ia acontecer.
Passados mais de quinze anos, a minha colaboração não foi necessária. Como não foi a de muitos outros, que parece ter sido preferível afastar do caminho. Entendo, as circunstâncias ainda não devem ter sugerido a necessidade de o Patriarcado fazer alguma coisa.
Orlando de Carvalho
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