Quem são os pobres em espírito?
E porque são eles bem-aventurados?
Há sempre o cuidado, acerca desta expressão, de não
confundir a pobreza de espírito com ignorância ou menos inteligência. Nunca li
ou escutei qualquer reflexão a partir desta expressão que não o afirme
indiscutivelmente.
Também farei. Numa parte do desenvolvimento do problema.
Coloquemos a questão do modo mais doloroso. Podemos invocar
a novidade que Gil Vicente oferece ao indicar quem são os contemplados com a
viagem na barca para o Paraíso. Quem pensar que uma pessoa mais lenta a raciocinar
que a maioria das outras pessoas é mais infeliz que essas outras estará
provavelmente redondamente enganado. Será mais infeliz uma pessoa com uma vida
pacata, sem grandes ambições, com pouco dinheiro, que outra pessoa com uma vida
em bulício, em constante agitação, sempre a facturar, com todas as comodidades
mundanas que o dinheiro e a tecnologia podem proporcionar? Esta questão é dolorosa
precisamente porque todos queremos ser bem-aventurados pela nossa pobreza de
espírito, e aproveitar esta bênção que Jesus oferece, mas nenhum de nós quer
prescindir da sua superioridade em relação aos outros no que respeita à
inteligência, à astúcia, à esperteza. Isto reporta-nos à árvore da ciência do
bem e do mal. Aos humanos estava interdito o fruto que lhes abriria os olhos
tornando-os idênticos a Deus. Mas ninguém quer ser inferior a Deus em
conhecimentos. Por isso rejeitamos algo que nos possa fazer parecer estúpidos,
ignorantes, quase deficientes mentais, como se fôssemos capazes de nos
compararmos a Deus. Nós somos mesmo inconfundivelmente inferiores a Deus no que
a conhecimento e sabedoria concerne. Não podemos ter o espírito aguçado e
refinado de Deus, ou seríamos Deus. Somos de espírito pobre, ao lado do
infinito espírito de Deus. E quem não tiver a humildade de o admitir, incorre no
erro da segunda interpretação da pobreza de espírito. Humildemente, reconheçamos
a nossa pobreza de espírito, a nossa ignorância, a nossa incapacidade de
discernimento, a dificuldade em distinguir o bem do mal e em optar pelo bem,
quando o identificamos.
A outra pobreza de espírito é a da não aceitação da situação
peculiar de cada pessoa. Se eu sou rico, em dinheiro, devo fazer um bom uso
desse dinheiro. Não evidenciar a minha riqueza, mas usá-la discretamente de
modo solidário e fraterno. Posso ser rico, mas agir como um pobre, com
humildade e em prol dos necessitados. Posso ser rico e viver e morrer como um
pobre, um pobre em espírito, se reservo para esbanjamento pessoal ou
futilidades o que possuo, como se nada mais importante existisse que eu. Se ao
discursar eu amesquinho o que tem menos dotes oratórios, ou menos inteligência,
ou menos estudos que lhe permitam exprimir-se, eu ponho em evidência a minha
superioridade, o meu superior espírito, a minha riqueza de espírito sobre o meu
irmão que me escuta.
A pobreza de espírito pode ser uma menor dotação inata ou
adquirida relacionada com as capacidades intelectuais. Pode ser também o modo
como uso os meus dons ou dotes, humildemente e ao serviço dos outros ou
escalando a vida à custa dos outros, sempre acima das minhas reais
possibilidades.
Bem-aventurados os que não têm capacidades para gerar
riqueza que os faça perderem-se. Bem-aventurados os que aceitam as suas
limitações e utilizam os seus dons em prole do Bem o do próximo.
Orlando de Carvalho
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