CARTA ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM
LAUDATO SI’
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM
1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor»,
cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos
que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem
partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus
braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que
nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e
verduras».[1]
2. Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso
irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a
pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a
saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado,
vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e
nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e
maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e
sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,
7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar
permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.
Nada deste mundo nos é indiferente
3. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João XXIII
escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas
quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a
todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa
vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero
dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii gaudium,
escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo
de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo
especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum.
4. Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI
referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é
«consequência dramática» da actividade descontrolada do ser humano:
«Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano]
começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima
dessa degradação».[2]
E, dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade duma «catástrofe
ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial»,
sublinhando a «necessidade urgente duma mudança radical no comportamento
da humanidade», porque «os progressos científicos mais extraordinários,
as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento económico
mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral,
voltam-se necessariamente contra o homem».[3]
5. São João Paulo II
debruçou-se, com interesse sempre maior, sobre este tema. Na sua
primeira encíclica, advertiu que o ser humano parece «não dar-se conta
de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que
servem somente para os fins de um uso ou consumo imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversão ecológica global.[5] Entretanto fazia notar o pouco empenho que se põe em «salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana».[6]
A destruição do ambiente humano é um facto muito grave, porque, por um
lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida
humana é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação.
Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas
«nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas
estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7]
O progresso humano autêntico possui um carácter moral e pressupõe o
pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao
mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações
mútuas entre todos, num sistema ordenado».[8]
Assim, a capacidade do ser humano transformar a realidade deve
desenvolver-se com base na doação originária das coisas por parte de
Deus.[9]
6. O meu predecessor, Bento XVI,
renovou o convite a «eliminar as causas estruturais das disfunções da
economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem
incapazes de garantir o respeito do meio ambiente».[10]
Lembrou que o mundo não pode ser analisado concentrando-se apenas sobre
um dos seus aspectos, porque «o livro da natureza é uno e indivisível»,
incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a vida, a sexualidade, a
família, as relações sociais. É que «a degradação da natureza está
estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana».[11] O Papa Bento XVI
propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas
causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio ambiente
social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas se ficam a
dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades
indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem
limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma liberdade que se cria
por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e
vontade, mas é também natureza».[12]
Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta
comprometida «onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto
é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós
mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos
qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos».[13]
Unidos por uma preocupação comum
7. Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de inúmeros
cientistas, filósofos, teólogos e organizações sociais que enriqueceram o
pensamento da Igreja sobre estas questões. Mas não podemos ignorar que,
também fora da Igreja Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs –
bem como noutras religiões – se tem desenvolvido uma profunda
preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas que a todos nos
estão a peito. Apenas para dar um exemplo particularmente significativo,
quero retomar brevemente parte da contribuição do amado Patriarca
Ecuménico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança da plena comunhão
eclesial.
8. O Patriarca Bartolomeu tem-se referido particularmente à
necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o
planeta, porque «todos, na medida em que causamos pequenos danos
ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição – pequena
ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14]
Sobre este ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira firme e
encorajadora, convidando-nos a reconhecer os pecados contra a criação:
«Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus;
quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem
para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais
ou destruindo as suas zonas húmidas; quando os seres humanos contaminam
as águas, o solo, o ar... tudo isso é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus».[16]
9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a atenção para as raízes éticas e
espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a encontrar
soluções não só na técnica mas também numa mudança do ser humano; caso
contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos passar
do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à
capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não
simplesmente renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do
que eu quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação do
medo, da avidez, da dependência».[17]
Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como
sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo
numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano
se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus,
mesmo no último grão de poeira do nosso planeta».[18]
São Francisco de Assis
10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e
motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha
eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por
excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral,
vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que
estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que
não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus
e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a
sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um
peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com
Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até
que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para
com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.
11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral
requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências
exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser
humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a
reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos
animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas.
Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às
flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da
razão».[19]
A sua reacção ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou
um cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã,
unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar
de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele,
«enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as
coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem
– o doce nome de irmãos e irmãs».[20]
Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional,
pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos
aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a
admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e
da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão
as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos
naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo
contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe,
então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza
e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo
exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um
mero objecto de uso e domínio.
12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura,
propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde Deus nos
fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza e na beleza
das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13,
5) e «o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e divindade –
tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas
obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se
deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as
ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu
pensamento a Deus, autor de tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.
O meu apelo
13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a
preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento
sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O
Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se
arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de
colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar
e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da actividade
humana, estão a trabalhar para garantir a protecção da casa que
partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com
vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental
na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança;
interrogam-se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem
pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira
como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate
que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas
raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento
ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado
numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização.
Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a
crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa
dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que
dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da
negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança
cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal.
Como disseram os bispos da África do Sul, «são necessários os talentos e
o envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus».[22]
Todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da
criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e
capacidades.
15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério
social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a
beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro lugar, farei uma
breve resenha dos vários aspectos da actual crise ecológica, com o
objectivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica
actualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar
uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A partir desta
panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição
judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o
meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação actual, de
modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas
mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias
dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste
mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta
reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes
linhas de diálogo e de acção que envolvem seja cada um de nós seja a
política internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que
toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo,
proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da
experiência espiritual cristã.
16. Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e uma
metodologia específica, o sucessivo retoma por sua vez, a partir duma
nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos
anteriores. Isto diz respeito especialmente a alguns eixos que
atravessam a encíclica inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os
pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está
estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das
formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras
maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada
criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates
sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e
local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida.
Estes temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas são
constantemente retomados e enriquecidos.
CAPÍTULO I
O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da
humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se
não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o contexto
actual no que este tem de inédito para a história da humanidade. Por
isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências
face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos
brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta
junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que
alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora a mudança faça
parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe
impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução
biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta
mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o
bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A
mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma
em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da
humanidade.
19. Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas
capacidades humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de
maior consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade
relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma
sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer ao nosso
planeta. Façamos uma resenha, certamente incompleta, das questões que
hoje nos causam inquietação e já não se podem esconder debaixo do
tapete. O objectivo não é recolher informações ou satisfazer a nossa
curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar transformar em
sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim, reconhecer a
contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do descarte
20. Existem formas de poluição que afectam diariamente as pessoas. A
exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos
sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provocam milhões de
mortes prematuras. Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de
elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis utilizados
para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que afecta a
todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas
descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da
água, pelos fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e
agro-tóxicos em geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança,
pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério
das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às
vezes resolve um problema criando outros.
21. Devemos considerar também a poluição produzida pelos resíduos,
incluindo os perigosos presentes em variados ambientes. Produzem-se
anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles
não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de
demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioactivos. A terra, nossa casa, parece
transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em muitos
lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de
outrora, que agora vêem submersas de lixo. Tanto os resíduos industriais
como os produtos químicos utilizados nas cidades e nos campos podem
produzir um efeito de bioacumulação nos organismos dos moradores nas
áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o nível de
presença dum elemento tóxico num lugar. Muitas vezes só se adoptam
medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das
pessoas.
22. Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte,
que afecta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se
convertem rapidamente em lixo. Note-se, por exemplo, como a maior parte
do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado. Custa-nos a
reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é exemplar: as
plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os herbívoros;
estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas
quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de
vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de
produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e
reutilizar resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adoptar um modelo
circular de produção que assegure recursos para todos e para as
gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos
recursos não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a
eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A
resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do
descarte que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota-se que os
progressos neste sentido são ainda muito escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível
global, é um sistema complexo, que tem a ver com muitas condições
essenciais para a vida humana. Há um consenso científico muito
consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do
sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi
acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil
não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos
extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente
determinada a cada fenómeno particular. A humanidade é chamada a tomar
consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e
de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas
humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros factores
(tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o
ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior
parte do aquecimento global das últimas décadas é devida à alta
concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbónico, metano,
óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da actividade
humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios
solares reflectidos pela terra se dilua no espaço. Isto é
particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso
intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema
energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a
utilização do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade
agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria
um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a
disponibilidade de recursos essenciais como a água potável, a energia e
a produção agrícola das áreas mais quentes e provocará a extinção de
parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das calotas polares e
dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de alto
risco, de gás metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada
poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbónico. Entretanto a
perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a
mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido
carbónico aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar
marinha. Se a tendência actual se mantiver, este século poderá ser
testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem
precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós.
Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de extrema
gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à
beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão
situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são um problema global com graves
implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas,
constituindo actualmente um dos principais desafios para a humanidade.
Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas,
sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afectados por fenómenos relacionados com o
aquecimento, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das
reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema como a
agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem outras
disponibilidades económicas nem outros recursos que lhes permitam
adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas,
e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de protecção. Por
exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e
vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez,
afecta os recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a
emigrar com grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus
filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada
pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como refugiados
nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada
sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma indiferença
geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em
diferentes partes do mundo. A falta de reacções diante destes dramas dos
nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de
responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a
sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou
político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou
ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos
negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais
efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos
actuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o
desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos
anos, a emissão de anidrido carbónico e outros gases altamente poluentes
se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis
fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o
nível de acesso a energias limpas e renováveis. Mas ainda é necessário
desenvolver adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns
países, registaram-se avanços que começam a ser significativos, embora
estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve também alguns
investimentos em modalidades de produção e transporte que consomem menos
energia exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como em
modalidades de construção ou restruturação de edifícios para se melhorar
a sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe
de se tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da situação actual têm a ver com o
esgotamento dos recursos naturais. É bem conhecida a impossibilidade de
sustentar o nível actual de consumo dos países mais desenvolvidos e dos
sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de desperdiçar e jogar
fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos limites máximos
de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da pobreza.
28. A água potável e limpa constitui uma questão de primordial
importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar
os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce fornecem
os sectores sanitários, agro-pecuários e industriais. A disponibilidade
de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas
agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com
graves consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que
dependem de importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência
do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se administra com uma
gestão adequada e com imparcialidade. A pobreza da água pública
verifica-se especialmente na África, onde grandes sectores da população
não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil
a produção de alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de
água, enquanto outras sofrem de grave escassez.
29. Um problema particularmente sério é o da qualidade da água
disponível para os pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os
pobres, são frequentes as doenças relacionadas com a água, incluindo as
causadas por microorganismos e substâncias químicas. A diarreia e a
cólera, devidas a serviços de higiene e reservas de água inadequados,
constituem um factor significativo de sofrimento e mortalidade infantil.
Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição
produzida por algumas actividades extractivas, agrícolas e industriais,
sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles
suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das
fábricas; os detergentes e produtos químicos que a população utiliza em
muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e
mares.
30. Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em
alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso
escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na
realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos
humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável.
Esta dívida é parcialmente saldada com maiores contribuições económicas
para prover de água limpa e saneamento as populações mais pobres.
Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países
desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que
possuem grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em
parte, uma questão educativa e cultural, porque não há consciência da
gravidade destes comportamentos num contexto de grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água provocará o aumento do custo dos
alimentos e de vários produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos
assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de água dentro de
poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os impactos
ambientais poderiam afectar milhares de milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se
transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de
formas imediatistas de entender a economia e a actividade comercial e
produtiva. A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a
perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos
extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a
cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes
que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma
necessidade humana ou regular algum problema ambiental.
33. Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como
eventuais «recursos» exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si
mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais,
que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver,
perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que
têm a ver com alguma actividade humana. Por nossa causa, milhares de
espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão
comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer.
34. Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou
duma ave, pela sua maior visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos
ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os
pequenos insectos, os répteis e a variedade inumerável de
microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos
passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para
estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve
intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de
intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal,
que os desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova
intervenção dele de modo que a actividade humana torna-se omnipresente,
com todos os riscos que isto implica. Normalmente cria-se um círculo
vicioso, no qual a intervenção humana, para resolver uma dificuldade,
muitas vezes ainda agrava mais a situação. Por exemplo, muitos pássaros e
insectos, que desaparecem por causa dos agro-tóxicos criados pela
tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu
desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica
que possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às
vezes, admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar
solução aos problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o
mundo, damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas
vezes ao serviço da finança e do consumismo, faz com que esta terra onde
vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e
cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das
ofertas de consumo continua a avançar sem limites. Assim, parece que nos
iludimos de poder substituir uma beleza insuprível e irrecuperável por
outra criada por nós.
35. Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa
económica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no
ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na
biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais
ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os novos
cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando
posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as
populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo
que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem alternativas
que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de
corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este
cuidado e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies,
nem sempre se estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua
diminuição excessiva e consequente desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda
para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho
económico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua
preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência egoísta é
muitíssimo maior do que o benefício económico que se possa obter. No
caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que
excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas
de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios
significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura,
os altíssimos custos da degradação ambiental.
37. Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos
lugares e áreas – na terra e nos oceanos –, proibindo aí toda a
intervenção humana que possa modificar a sua fisionomia ou alterar a sua
constituição original. No cuidado da biodiversidade, os especialistas
insistem na necessidade de prestar uma especial atenção às áreas mais
ricas em variedade de espécies, em espécies endémicas, raras ou com
menor grau de efectiva protecção. Há lugares que requerem um cuidado
particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial, ou
que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras
formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de
biodiversidade que são a Amazónia e a bacia fluvial do Congo, ou os
grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares
para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode
ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma
biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer
completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas
para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies,
ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre
estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível
ignorar também os enormes interesses económicos internacionais que, a
pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais.
Com efeito, há «propostas de internacionalização da Amazónia que só
servem aos interesses económicos das corporações internacionais».[24]
É louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da
sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma
crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que
cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio
ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios
interesses locais ou internacionais.
39. Habitualmente também não se faz objecto de adequada análise a
substituição da flora silvestre por áreas florestais com árvores, que
geralmente são monoculturas. É que pode afectar gravemente uma
biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se
implantam. Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos
agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante,
nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas
constituídos por manguezais.
40. Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas
também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles
ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas causas. Além
disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte
da população mundial, é afectada pela extracção descontrolada dos
recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições dalgumas espécies. E
no entanto continuam a desenvolver-se modalidades selectivas de pesca,
que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente
ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como
certas formas de plâncton que constituem um componente muito importante
da cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância,
espécies que se utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares tropicais e subtropicais, encontramos os
recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra firme,
porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes,
caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos
recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado
contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25]
Este fenómeno deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar
resultante do desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das
descargas industriais e de métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os
que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo aumento da temperatura
dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a compreender como qualquer acção
sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à primeira
vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa
duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42. É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender
melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as
diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do
meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser
reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós,
seres criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém uma
parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo que deve fazer
um inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de desenvolver
programas e estratégias de protecção, cuidando com particular solicitude
das espécies em vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade de vida humana e degradação social
43. Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste
mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma
dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da
degradação ambiental, do modelo actual de desenvolvimento e da cultura
do descarte sobre a vida das pessoas.
44. Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e
descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para
viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas mas
também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e
acústica. Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam,
gastando energia e água em excesso. Há bairros que, embora construídos
recentemente, apresentam-se congestionados e desordenados, sem espaços
verdes suficientes. Não é conveniente para os habitantes deste planeta
viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto, vidro e metais,
privados do contacto físico com a natureza.
45. Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços
tornou difícil o acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza;
noutros, criaram-se áreas residenciais «ecológicas» postas à disposição
só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a perturbar uma
tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade bela e
cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não
em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.
46. Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os
efeitos laborais dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a
desigualdade no fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a
fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas
formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de
drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São alguns sinais,
entre outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois séculos
não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso
integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais são
ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma
silenciosa ruptura dos vínculos de integração e comunhão social.
47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo
digital, que, quando se tornam omnipresentes, não favorecem o
desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em
profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios
do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do
ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que
esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade,
e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira
sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as
pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa
espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo
tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os
desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet.
Isto permite seleccionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e,
deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais,
que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a
natureza. Os meios actuais permitem-nos comunicar e partilhar
conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar
contacto directo com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a
complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria
surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes produtos,
ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações
interpessoais ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e
não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não
prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e
social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da sociedade
afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a
experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica
demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais
recaem sobre as pessoas mais pobres».[26]
Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas prejudica
especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem
qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afecta
particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar
água engarrafada, e a elevação do nível do mar afecta principalmente as
populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O
impacto dos desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte
prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos
e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas
mundiais.[27]
49. Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência
clara dos problemas que afectam particularmente os excluídos. Estes são a
maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são
mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com
frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice,
como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou
perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com
efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no
último lugar. Isto deve-se, em parte, ao facto de que muitos
profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de
poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter
contacto directo com os seus problemas. Vivem e reflectem a partir da
comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao
alcance da maioria da população mundial. Esta falta de contacto físico e
de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades,
ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da realidade em
análises tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso «verde».
Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo
diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não
faltam pressões internacionais sobre os países em vias de
desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas
políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual
distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao
desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que
o crescimento demográfico é plenamente compatível com um
desenvolvimento integral e solidário».[28]
Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e
selectivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas.
Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo actual, no qual uma
minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria
impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os
resíduos de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça
aproximadamente um terço dos alimentos produzidos, e «a comida que se
desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre».[29]
Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao desequilíbrio
na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional
como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações
regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição
ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de
recursos, à qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta apenas os indivíduos mas países
inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com
efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o
Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no
âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais
efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas
matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado
produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio
na extracção minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre.
De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta
usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo
de dois séculos e criaram uma situação que agora afecta todos os países
do mundo. O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países
ricos tem repercussões nos lugares mais pobres da terra, especialmente
na África, onde o aumento da temperatura, juntamente com a seca, tem
efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto acrescentam-se
os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos
tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade
poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que
não podem fazer nos países que lhes dão o capital: «Constatamos
frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais,
que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do
chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas actividades e
se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o
desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas naturais,
desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local,
crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que
já não se pode sustentar».[30]
52. A dívida externa dos países pobres transformou-se num
instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica.
De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde se
encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a
alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do
seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o
acesso à propriedade de bens e recursos para satisfazerem as suas
carências vitais é-lhes vedado por um sistema de relações comerciais e
de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os países
desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando
significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo
recursos aos países mais necessitados para promover políticas e
programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais
pobres têm menos possibilidade de adoptar novos modelos de redução do
impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os
processos necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se
manter claramente a consciência de que a mudança climática tem responsabilidades diversificadas e,
como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se
«especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis,
num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos».[31]
É preciso revigorar a consciência de que somos uma única família
humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que
permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a
globalização da indiferença.
6. A fraqueza das reacções
53. Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem
aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós
outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos
últimos dois séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de
Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e
corresponda ao seu projecto de paz, beleza e plenitude. O problema é que
não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há
necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar
resposta às necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem
prejudicar as gerações futuras. Torna-se indispensável criar um sistema
normativo que inclua limites invioláveis e assegure a protecção dos
ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma
tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também
com a liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da reacção política internacional. A
submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência
das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses
particulares e, com muita facilidade, o interesse económico chega a
prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver
afectados os seus projectos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede
que, «nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os
interesses de grupos económicos que arrasam irracionalmente as fontes da
vida».[32]
A aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o
que não faz parte dos seus interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á
esperar apenas algumas proclamações superficiais, acções filantrópicas
isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para com o meio
ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações
sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado
por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar.
55. Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos
significativos, o desenvolvimento de controles mais eficientes e uma
luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica
das populações, mas é ainda insuficiente para mudar os hábitos nocivos
de consumo, que não parecem diminuir; antes, expandem-se e
desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples – com o
crescente aumento do uso e intensidade dos condicionadores de ar: os
mercados, apostando num ganho imediato, estimulam ainda mais a procura.
Se alguém observasse de fora a sociedade planetária, maravilhar-se-ia
com tal comportamento que às vezes parece suicida.
56. Entretanto os poderes económicos continuam a justificar o
sistema mundial actual, onde predomina uma especulação e uma busca de
receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos
sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta
como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação
humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar acções
imorais, porque a constante distracção nos tira a coragem de advertir a
realidade dum mundo limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer
realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos
interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se
vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob
nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio
ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando
se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não
obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química,
bacteriológica e biológica, subsiste o facto de continuarem nos
laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas
ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais».[34]
Exige-se da política uma maior atenção para prevenir e resolver as
causas que podem dar origem a novos conflitos. Entretanto o poder,
ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal esforço, e os
projectos políticos carecem muitas vezes de amplitude de horizonte. Para
que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua
incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria
do ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos
durante muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o
embelezamento de paisagens com obras de saneamento ambiental, projectos
de edifícios de grande valor estético, progressos na produção de energia
limpa, na melhoria dos transportes públicos. Estas acções não resolvem
os problemas globais, mas confirmam que o ser humano ainda é capaz de
intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio dos seus
limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade e
desvelo.
59. Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que
consolida um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como
frequentemente acontece em épocas de crises profundas, que exigem
decisões corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que está a
acontecer não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de
alguns sinais visíveis de poluição e degradação, parece que as coisas
não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por
muito tempo nas condições actuais. Este comportamento evasivo serve-nos
para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a
forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios
autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as
decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60. Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis
soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de
pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do
progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão
simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem
mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano,
com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o
ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e
impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes extremos, a
reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não
existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade
de contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a
respostas abrangentes.
61. Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para
propor uma palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o
debate honesto entre os cientistas, respeitando a diversidade de
opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para ver que
há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos a
reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo,
sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia
parece notar-se sintomas dum ponto de ruptura, por causa da alta
velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em
catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo
financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem
explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão
catastrófica, o certo é que o actual sistema mundial é insustentável a
partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas
finalidades da acção humana: «Se o olhar percorre as regiões do nosso
planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a
expectativa divina».[35]
CAPÍTULO II
O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62. Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as
pessoas de boa vontade, um capítulo referido às convicções de fé? Não
ignoro que alguns, no campo da política e do pensamento, rejeitam
decididamente a ideia de um Criador ou consideram-na irrelevante,
chegando ao ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza que as
religiões possam oferecer para uma ecologia integral e o pleno
desenvolvimento do género humano; outras vezes, supõe-se que elas
constituam uma subcultura, que se deve simplesmente tolerar. Todavia a
ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade,
podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63. Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas
múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir
duma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É
necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à
arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de
verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos
destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria
pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua
linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo
com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses
entre fé e razão. No que diz respeito às questões sociais, pode-se
constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja,
chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios.
64. Por outro lado, embora esta encíclica se abra a um diálogo com
todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero mostrar
desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em
parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar da
natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples facto de ser
humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem
parte, «os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio
da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem
parte da sua fé».[36]
Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes,
conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas
convicções.
2. A sabedoria das narrações bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a teologia da Criação, queremos saber o
que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre a relação do ser
humano com o mundo. Na primeira narração da obra criadora, no livro do
Génesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da
criação do homem e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra,
considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,
26). Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa
humana, que «não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se
conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com
outras pessoas».[37] São João Paulo II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano «confere-lhe uma dignidade infinita».[38]
Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas
podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal
compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa
não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou
por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de
nós: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1,
5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o
fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de
nós é amado, cada um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no livro do Génesis contêm, na sua
linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos profundos sobre a
existência humana e a sua realidade histórica. Estas narrações sugerem
que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais
intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra.
Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só
exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A
harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída
por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos
como criaturas limitadas. Este facto distorceu também a natureza do
mandato de «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3,
17-19). Por isso, é significativo que a harmonia vivida por São
Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido interpretada como
uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que, através da
reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de
alguma forma ao estado de inocência original.[40]
Longe deste modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de
destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no
abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza.
67. Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto
permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento
judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a
«dominar» a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração
selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como
dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correcta da
Bíblia, como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas
vezes interpretámos de forma incorrecta as Escrituras, hoje devemos
decididamente rejeitar que, do facto de ser criados à imagem de Deus e
do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as
outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto,
com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar e
guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto «cultivar»
quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar» significa proteger,
cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade
responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar
da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência,
mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua
fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor
pertence a terra» (Sl 24/23, 1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10,
14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta:
«Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me,
e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23).
68. Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica
que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e
os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo, porque «Ele deu
uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e
estabeleceu leis a que não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6).
Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a propor ao ser humano
várias normas relativas não só às outras pessoas, mas também aos
restantes seres vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi
caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se.
(...) Se encontrares no caminho, em cima de uma árvore ou no chão, um
ninho de pássaros com filhotes, ou ovos cobertos pela mãe, não apanharás
a mãe com a ninhada» (Dt 22, 4.6). Nesta linha, o descanso do
sétimo dia não é proposto só para o ser humano, mas «para que descansem o
teu boi e o teu jumento» (Ex 23, 12). Assim nos damos conta de
que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se
desinteressa das outras criaturas.
69. Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas,
somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor
próprio diante de Deus e, «pelo simples facto de existirem, eles O
bendizem e Lhe dão glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas obras» (Sl 104/103,
31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado de
inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas
leis internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3,
19). Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras
criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se
não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa
vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas
outras criaturas, «se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis».[42] O Catecismo põe
em questão, de forma muito directa e insistente, um antropocentrismo
desordenado: «Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias.
(...) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, reflectem,
cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas
de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada
criatura, para evitar o uso desordenado das coisas».[43]
70. Na narração de Caim e Abel, vemos que a inveja levou Caim a
cometer a injustiça extrema contra o seu irmão. Isto, por sua vez,
provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus e entre Caim e a
terra, da qual foi exilado. Esta passagem aparece sintetizada no
dramático colóquio de Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu
irmão Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus insiste com ele: «Que
fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro,
serás amaldiçoado pela terra (…). Serás vagabundo e fugitivo sobre a
terra» (Gn 4, 9-12). O descuido no compromisso de cultivar e
manter um correcto relacionamento com o próximo, relativamente a quem
sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento
interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando
todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de
habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim
no-lo ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar com a
humanidade pela sua persistente incapacidade de viver à altura das
exigências da justiça e da paz: «O fim de toda a humanidade chegou
diante de Mim, pois ela encheu a terra de violência» (Gn 6, 13).
Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava
contida a convicção actual de que tudo está inter-relacionado e o
cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a
natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos
outros.
71. Embora Deus reconhecesse que «a maldade dos homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se de ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6,
6), Ele decidiu abrir um caminho de salvação através de Noé, que ainda
se mantinha íntegro e justo. Assim deu à humanidade a possibilidade de
um novo início. Basta um homem bom para haver esperança! A tradição
bíblica estabelece claramente que esta reabilitação implica a
redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do
Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No
sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a Israel
que cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2, 2-3; Ex 16, 23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também um ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25,
1-4), durante o qual se dava descanso completo à terra, não se semeava e
só se colhia o indispensável para sobreviver e oferecer hospitalidade
(cf. Lv 25, 4-6). Por fim, passadas sete semanas de anos, ou seja
quarenta e nove anos, celebrava-se o jubileu, um ano de perdão
universal, «proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a
habitam» (Lv 25, 10). O desenvolvimento desta legislação procurou
assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os
outros e com a terra onde vivia e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era
um reconhecimento de que a dádiva da terra com os seus frutos pertence a
todo o povo. Aqueles que cultivavam e guardavam o território deviam
partilhar os seus frutos, especialmente com os pobres, as viúvas, os
órfãos e os estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das vossas terras,
não ceifarás as espigas até à extremidade do campo, e não apanharás as
espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os
bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19, 9-10).
72. Os Salmos convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus
criador: «Estendeu a terra sobre as águas, porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135,
6). E convidam também as outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e
lua; louvai-O, estrelas luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas
que estais acima dos céus! Louvem todos o nome do Senhor, porque Ele deu
uma ordem e tudo foi criado» (Sl 148, 3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e companhia. Por isso O adoramos.
73. Os escritos dos profetas convidam a recuperar forças, nos
momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que criou o universo. O
poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua ternura paterna,
porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda a sã
espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar,
com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que
liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de
agir divino estão íntima e inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus,
foste Tu que fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu
braço estendido! Para Ti, nada é impossível! (...) Tu fizeste sair do
Egipto o teu povo, Israel, com prodígios e milagres» (Jr 32,
17.21). «O Senhor é um Deus eterno, que criou os confins da terra. Não
se cansa nem perde as forças. É insondável a sua sabedoria. Ele dá
forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40, 28b-29).
74. A experiência do cativeiro em Babilónia gerou uma crise
espiritual que levou a um aprofundamento da fé em Deus, explicitando a
sua omnipotência criadora, para animar o povo a recuperar a esperança no
meio da sua situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento de
prova e perseguição, quando o Império Romano procurou impor um domínio
absoluto, os fiéis voltaram a encontrar consolação e esperança
aumentando a sua confiança em Deus omnipotente, e cantavam: «Grandes e
admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e
verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15, 3). Se Deus pôde criar
o universo a partir do nada, também pode intervir neste mundo e vencer
qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não é invencível.
75. Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus
todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros
poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à
pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor
maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua
pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura
de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano
tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e
interesses.
3. O mistério do universo
76. Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer
natureza, porque tem a ver com um projecto do amor de Deus, onde cada
criatura tem um valor e um significado. A natureza entende-se
habitualmente como um sistema que se analisa, compreende e gere, mas a
criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai
de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma
comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou os céus» (Sl 33/32, 6). Deste
modo indica-se que o mundo procede, não do caos nem do acaso, mas duma
decisão, o que o exalta ainda mais. Há uma opção livre, expressa na
palavra criadora. O universo não apareceu como resultado duma
omnipotência arbitrária, duma demonstração de força ou dum desejo de
auto-afirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a
razão fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não
detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a
terias criado» (Sab 11, 24). Então cada criatura é objecto da
ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efémera do
ser mais insignificante é objecto do seu amor e, naqueles poucos
segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho. Dizia São
Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do «amor que move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso, das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa misericórdia».[46]
78. Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão desmitificou a
natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu esplendor e imensidão, já não
lhe atribui um carácter divino. Deste modo, ressalta ainda mais o nosso
compromisso para com ela. Um regresso à natureza não pode ser feito à
custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do
mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e
desenvolver as suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a
fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador
nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso
material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus
confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para
reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder.
79. Neste universo, composto por sistemas abertos que entram em
comunicação uns com os outros, podemos descobrir inumeráveis formas de
relação e participação. Isto leva-nos também a pensar o todo como aberto
à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé
permite-nos interpretar o significado e a beleza misteriosa do que
acontece. A liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente
para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males,
novas causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à
apaixonante e dramática história humana, capaz de transformar-se num
desabrochamento de libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou,
pelo contrário, num percurso de declínio e mútua destruição. Por isso a
Igreja, com a sua acção, procura não só lembrar o dever de cuidar da
natureza, mas também e «sobretudo proteger o homem da destruição de si
mesmo».[47]
80. Apesar disso, Deus, que deseja actuar connosco e contar com a
nossa cooperação, é capaz também de tirar algo de bom dos males que
praticamos, porque «o Espírito Santo possui uma inventiva infinita,
própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das
vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».[48]
De certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo
necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos
males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das
dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.[49]
Ele está presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a
autonomia da sua criatura, e isto dá lugar também à legítima autonomia
das realidades terrenas.[50] Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da acção criadora».[51]
O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem
que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: «A
natureza nada mais é do que a razão de certa arte – concretamente a arte
divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias coisas se movem
para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios pudesse
conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a
forma da nave».[52]
81. Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica
uma novidade que não se explica cabalmente pela evolução doutros
sistemas abertos. Cada um de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz
de entrar em diálogo com os outros e com o próprio Deus. A capacidade
de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação, a elaboração
artística e outras capacidades originais manifestam uma singularidade
que transcende o âmbito físico e biológico. A novidade qualitativa,
implicada no aparecimento dum ser pessoal dentro do universo material,
pressupõe uma acção directa de Deus, uma chamada peculiar à vida e à
relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos bíblicos,
consideramos o ser humano como sujeito, que nunca pode ser reduzido à
categoria de objecto.
82. Mas seria errado também pensar que os outros seres vivos devam
ser considerados como meros objectos submetidos ao domínio arbitrário do
ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como
objecto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também
para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais forte
favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior
parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do
primeiro que chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O
ideal de harmonia, justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe situa-se
nos antípodas de tal modelo, como Ele mesmo Se expressou ao compará-lo
com os poderes do seu tempo: «Sabeis que os chefes das nações as
governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu
poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser
fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 25-26).
83. A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que
já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação
universal.[53]
E assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer
domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras
criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas
avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é
Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça
e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e
atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as
criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura na harmonia de toda a criação
84. O facto de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de
Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e
nenhuma é supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de
Deus, do seu carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas:
tudo é carícia de Deus. A história da própria amizade com Deus
desenrola-se sempre num espaço geográfico que se torna um sinal muito
pessoal, e cada um de nós guarda na memória lugares cuja lembrança nos
faz muito bem. Quem cresceu no meio de montes, quem na infância se
sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu
bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a recuperar a sua
própria identidade.
85. Deus escreveu um livro estupendo, «cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo».[54]
E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma criatura fica
fora desta manifestação de Deus: «Desde os panoramas mais amplos às
formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de
encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino».[55]Os
bispos do Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo: «Sentir
cada criatura que canta o hino da sua existência é viver jubilosamente
no amor de Deus e na esperança».[56]
Esta contemplação da criação permite-nos descobrir qualquer ensinamento
que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, «para o
crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem,
ouvir uma voz paradoxal e silenciosa».[57]
Podemos afirmar que, «ao lado da revelação propriamente dita, contida
nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol e
no cair da noite».[58]
Prestando atenção a esta manifestação, o ser humano aprende a
reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras criaturas: «Eu
expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade decifrando a
do mundo».[59]
86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra
melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino sublinhava,
sabiamente, que a multiplicidade e a variedade «provêm da intenção do
primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada coisa, para
representar a bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois a sua bondade «não pode ser convenientemente representada por uma só criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações.[62]
Assim, compreende-se melhor a importância e o significado de qualquer
criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus. Tal é o
ensinamento do Catecismo: «A interdependência das criaturas é
querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o
pardal: o espectáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades
significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na
dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no serviço
umas das outras».[63]
87. Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o que existe, o
coração experimenta o desejo de adorar o Senhor por todas as suas
criaturas e juntamente com elas, como se vê neste gracioso cântico de
São Francisco de Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil sublinharam que toda a natureza, além de
manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada criatura, habita o seu
Espírito vivificante, que nos chama a um relacionamento com Ele.[65] A descoberta desta presença estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes ecológicas».[66]
Mas, quando dizemos isto, não esqueçamos que há também uma distância
infinita, pois as coisas deste mundo não possuem a plenitude de Deus.
Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às criaturas, porque não
reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio, acabando por lhes
exigir indevidamente aquilo que, na sua pequenez, não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo não podem ser consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a vida» (Sab 11,
26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do universo,
sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e
formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos
impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que «Deus
uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a
desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos
lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao ser
humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma
tremenda responsabilidade. Também não requer uma divinização da terra,
que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua
fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos desequilíbrios,
na tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68]
Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa
humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê
na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos. Devemos,
certamente, ter a preocupação de que os outros seres vivos não sejam
tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo as
enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a
tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de
notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades
reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que
têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de
si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem
destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se
sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores
direitos.
91. Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os
outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração
ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a
incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de
extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de
pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano
de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente.
Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas
criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por
aqueles que perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso,
exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos
seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da
sociedade.
92. Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma
comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade.
Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade com as
outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por
repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O
coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não
tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o
encarniçamento contra qualquer criatura «é contrário à dignidade
humana».[69]
Não podemos considerar-nos grandes amantes da realidade, se excluímos
dos nossos interesses alguma parte dela: «Paz, justiça e conservação da
criação são três questões absolutamente ligadas, que não se poderão
separar, tratando-as individualmente sob pena de cair novamente no
reducionismo».[70]
Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos
como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo
amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também,
com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e não-crentes estão de acordo que a terra é,
essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a
todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao
Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a
abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em
conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da
subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e,
consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro»
do comportamento social e o «primeiro princípio de toda a ordem
ético-social».[71]
A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito
à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de
propriedade privada. São João Paulo II
lembrou esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra
a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[72]
São palavras densas e fortes. Insistiu que «não seria verdadeiramente
digno do homem, um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e
promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e
políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[73]Com
grande clareza, explicou que «a Igreja defende, sim, o legítimo direito
à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza, que sobre
toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para que
os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu».[74]
Por isso, afirma que «não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom
de modo tal que os seus benefícios aproveitem só a alguns poucos».[75] Isto põe seriamente em discussão os hábitos injustos duma parte da humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o pequeno e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5,
45). Isto tem consequências práticas, como explicitaram os bispos do
Paraguai: «Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável
de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a
subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este
direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja
ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o
camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros
e acesso ao mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem colectivo, património de toda a
humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas
para a administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos
na consciência o peso de negar a existência aos outros. Por isso, os
bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o
mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da população
mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e
às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11,
25). Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a
reconhecer a relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e
recordava-lhes, com comovente ternura, como cada uma delas era
importante aos olhos d’Ele: «Não se vendem cinco pássaros por duas
pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de
Deus» (Lc 12, 6). «Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os outros a estar atentos à beleza que
existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contacto permanente com a
natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando
percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a
beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas
coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os campos que
estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é
semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu
campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a
maior planta do horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande
maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e o mar
obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta separado
do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo,
declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um
glutão e bebedor de vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se longe das
filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste
mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram
notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o
Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em
contacto com matéria criada por Deus para a moldar com a sua capacidade
de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua existência terrena
tenha sido consagrada a esta tarefa, levando uma vida simples que não
despertava maravilha alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho de
Maria?» (Mc 6, 3). Assim santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso amadurecimento. São João Paulo II
ensinava que, «suportando o que há de penoso no trabalho em união com
Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de alguma forma, com o
Filho de Deus na redenção da humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da criação
inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a
origem: «Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18) mostra a actividade criadora de Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1,
14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado,
partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo,
mas de modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera
veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso afectar a
sua autonomia.
100. O Novo Testamento não nos fala só de Jesus terreno e da sua
relação tão concreta e amorosa com o mundo; mostra-no-Lo também como
ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação com o seu domínio
universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude
e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que
estão na terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19-20). Isto
lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as
coisas «a fim de que Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28).
Assim, as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade
meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e
guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves
que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão
cheias da sua presença luminosa.
CAPÍTULO III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
101. Para nada serviria descrever os sintomas, se não
reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado
de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade
até ao ponto de a arruinar. Não poderemos deter-nos a pensar nisto
mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático
dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua acção no mundo.
1. A tecnologia: criatividade e poder
102. A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia
nos põe diante duma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de
ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a
electricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina
moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a
robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos
alegremos com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas
possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque «a
ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana
que Deus nos deu».[81]
A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do
género humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica «exprime a
tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos
condicionamentos materiais».[82]
A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o
ser humano. Não podemos deixar de apreciar e agradecer os progressos
alcançados especialmente na medicina, engenharia e comunicações. Como
não havemos de reconhecer todos os esforços de tantos cientistas e
técnicos que elaboraram alternativas para um desenvolvimento
sustentável?
103. A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente
valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os
objectos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes,
edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e
fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o
âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns
arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor, obtidas com o
recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de beleza do
artífice e em quem contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa
plenitude propriamente humana.
104. Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a
biotecnologia, a informática, o conhecimento do nosso próprio DNA e
outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo. Ou
melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder
económico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto
do género humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder
sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se
considera a maneira como o está a fazer. Basta lembrar as bombas
atómicas lançadas em pleno século XX, bem como a grande exibição de
tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros regimes
totalitários e que serviu para o extermínio de milhões de pessoas, sem
esquecer que hoje a guerra dispõe de instrumentos cada vez mais
mortíferos. Nas mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É
tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda a aquisição de poder seja
simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de
bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83],
como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente
do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem
moderno não foi educado para o recto uso do poder»,[84]
porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um
desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à
consciência. Cada época tende a desenvolver uma reduzida autoconsciência
dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a humanidade não se
dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e «cresce
continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder»
quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas
necessidades de utilidade e segurança».[85]
O ser humano não é plenamente autónomo. A sua liberdade adoece, quando
se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas,
do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto
frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os
instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos
superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma
cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o
contenham dentro dum lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma tecnocrático
106. Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o
modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu
desenvolvimento juntamente com um paradigma homogéneo e unidimensional.
Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que
progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se
apropria do objecto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se
ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é
explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o
sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível
para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano
sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de
acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas;
tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como
que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo
possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou
esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser
humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se
contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito
ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da
finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade
infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e
para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma
quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a
sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das
manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos».[86]
107. Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do
mundo actual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de
elaborar a metodologia e os objectivos da tecnociência segundo um
paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o
funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda a
realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio
ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afecta a vida
humana e a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer
que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que
acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades
sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas
opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções
sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver.
108. Não se consegue pensar que seja possível sustentar outro
paradigma cultural e servir-se da técnica como mero instrumento, porque
hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito
difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os
seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural
a escolha dum estilo de vida, cujos objectivos possam ser, pelo menos
em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder
globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer
com que nada fique fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu
protagonista sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem
de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da palavra».[87] Por isso, «procura controlar os elementos da natureza e, conjuntamente, os da existência humana».[88] Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também
sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento
tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais
consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia
real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito
lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns
círculos, defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão
todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com
linguagens não académicas, que os problemas da fome e da miséria no
mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Não é
uma questão de teorias económicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a
defender, mas da sua instalação no desenvolvimento concreto da
economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os
factos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção,
uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio
ambiente ou os direitos das gerações futuras. Com os seus
comportamentos, afirmam que é suficiente o objectivo da maximização dos
ganhos. Mas o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento
humano integral nem a inclusão social.[89]
Entretanto temos um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que
contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria
desumanizadora»,[90]
mas não se criam, de forma suficientemente rápida, instituições
económicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem
regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente
consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios
actuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o
contexto social do crescimento tecnológico e económico.
110. A especialização própria da tecnologia comporta grande
dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A fragmentação do
saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas,
mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações
que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se
torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para
resolver os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo os do
meio ambiente e dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma
única perspectiva nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que
pretenda oferecer soluções para os grandes problemas, deveria
necessariamente ter em conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras
áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social. Mas este é
actualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso também não se
consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência. A vida
passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica,
entendida como o recurso principal para interpretar a existência. Na
realidade concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que
mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda
do sentido da vida e da convivência social. Assim se demonstra uma vez
mais que «a realidade é superior à ideia».[91]
111. A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de
respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta
da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da
poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política,
um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário,
até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na
mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada
problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão
interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do
sistema mundial.
112. Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade
humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço
doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais
integral. De facto verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático
nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos
produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um
modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a
técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos
dos outros, com o compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade e
menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do belo e a sua
contemplação conseguem superar o poder objectivador numa espécie de
salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A
humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no
meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a
neblina que filtra por baixo da porta fechada. Será uma promessa
permanente que, apesar de tudo, desbrocha como uma obstinada resistência
daquilo que é autêntico?
113. Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro
feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das condições
actuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o
progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da
humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para
um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se imaginam
renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia. A humanidade
mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra
uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direcção.
Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida. Se a
arquitectura reflecte o espírito duma época, as mega-estruturas e as
casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a
permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos
resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido
de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e
precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio.
114. O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar
numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são
neutrais, mas podem, desde o início até ao fim dum processo, envolver
diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias
maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável
abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os
avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e
os grandes objectivos arrasados por um desenfreamento megalómano.
3. Crise do antropocentrismo moderno e suas consequências
115. O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a
razão técnica acima da realidade, porque este ser humano «já não sente a
natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr
qualquer hipótese, vê-a, objectivamente, como espaço e matéria onde
realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o
que possa suceder a ela».[92]
Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não
redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba
por contradizer a sua própria realidade. «Não só a terra foi dada por
Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem,
segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por
Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral de que foi
dotado».[93]
116. Nos tempos modernos, verificou-se um notável excesso
antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem, continua a minar toda a
referência a algo de comum e qualquer tentativa de reforçar os laços
sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção à
realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez,
constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais
saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã
acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o
mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre
o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse
actividade de fracos. Mas a interpretação correcta do conceito de ser
humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador
responsável.[94]
117. A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o
impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do
desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas
suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece
a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com
deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá
escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser
humano se declara autónomo da realidade e se constitui dominador
absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque «em vez
de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o
homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da
natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a uma esquizofrenia permanente, que se
estende da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos outros seres um
valor próprio, até à reacção de negar qualquer valor peculiar ao ser
humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma
nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia sem
uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas
mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum
determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a
noção da responsabilidade».[96]
Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser
substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um
novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas
acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso
para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as
suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e
responsabilidade.
119. A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria deixar em
segundo plano também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise
ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética,
cultural e espiritual da modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a
nossa relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as
relações humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão reivindica,
para o ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas, suscita
a valorização de cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento
do outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e dialogar
continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma
relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a
dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua
abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o
ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus.
Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um
confinamento asfixiante na imanência.
120. Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a
defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um
percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que,
às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá protecção a um
embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e
dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao
acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento
úteis à vida social».[97]
121. Espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese, que
ultrapasse as falsas dialécticas dos últimos séculos. O próprio
cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade
que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em
diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a
sua eterna novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal».[99]
Quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar prioridade
absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna
relativo. Por isso, não deveria surpreender que, juntamente com a
omnipresença do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem
limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual tudo o
que não serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante.
Nisto, há uma lógica que permite compreender como se alimentam
mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação
ambiental e a degradação social.
123. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma
pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto,
obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa
duma dívida. É a mesma lógica que leva à exploração sexual das crianças,
ou ao abandono dos idosos que não servem os interesses próprios. É
também a lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças
invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a
sociedade e a natureza são danos inevitáveis». Se não há verdades
objectivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações
próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o
tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o
comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de
extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de
órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para
experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao
desejo de seus pais? É a mesma lógica do «usa e joga fora» que produz
tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que
realmente se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os
comportamentos que afectam o meio ambiente, porque, quando é a cultura
que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objectiva ou
quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão
entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.
A necessidade de defender o trabalho
124. Em qualquer abordagem de ecologia integral que não exclua o ser
humano, é indispensável incluir o valor do trabalho, tão sabiamente
desenvolvido por São João Paulo II na sua encíclica Laborem excercens. Recordemos que, segundo a narração bíblica da criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn2,
15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para
trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os
operários e os artesãos «asseguram uma criação perpétua» (Sir 38,
34). Na realidade, a intervenção humana que favorece o desenvolvimento
prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela, porque
implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer
desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O
Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não os
desprezará» (Sir 38, 4).
125. Se procurarmos pensar quais possam ser as relações adequadas do
ser humano com o mundo que o rodeia, surge a necessidade duma concepção
correcta do trabalho, porque, falando da relação do ser humano com as
coisas, impõe-se-nos a questão relativa ao sentido e finalidade da acção
humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho manual ou do
trabalho da terra, mas de qualquer actividade que implique alguma
transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao
projecto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho
pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve
estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a
par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São
Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do
trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos
de Foucauld e seus discípulos.
126. Algo se pode recolher também da longa tradição monástica. Nos
primórdios, esta favorecia de certo modo a fuga do mundo, procurando
afastar-se da decadência urbana. Por isso, os monges buscavam o deserto,
convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer a presença de
Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges vivessem
em comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual («Ora et labora»).
Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual
revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a
santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta
maneira de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e
respeito pelo meio ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa
relação com o mundo.
127. Afirmamos que «o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social».[100]
Apesar disso, quando no ser humano se deteriora a capacidade de
contemplar e respeitar, criam-se as condições para se desfigurar o
sentido do trabalho.[101]
Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio,
ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e
desenvolvimento espiritual».[102]
O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme desenvolvimento
pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a criatividade, a
projectação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação
dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por
isso, a realidade social do munda actual exige que, acima dos limitados
interesses das empresas e duma discutível racionalidade económica, «se
continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos».[103]
128. Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Não se deve
procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho
humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O
trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é
caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal. Neste
sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio
provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria
ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a
orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja
finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos
postos de trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo
de como a acção do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição
dos postos de trabalho «tem também um impacto negativo no plano
económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é,
daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito
das regras, indispensável em qualquer convivência civil».[104] Em suma, «os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade.
129. Para se conseguir continuar a dar emprego, é indispensável
promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a
criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de
sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a
maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de
terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas
agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres, quer
na pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no
sector agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as
suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas
feitas por alguns deles no sentido de desenvolverem outras formas de
produção, mais diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade
de ter acesso aos mercados regionais e globais, ou porque a
infra-estrutura de venda e transporte está ao serviço das grandes
empresas. As autoridades têm o direito e a responsabilidade de adoptar
medidas de apoio claro e firme aos pequenos produtores e à
diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma liberdade
económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr
limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples
proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reaisimpedem
que muitos possam efectivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se
reduz o acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que
desonra a política. A actividade empresarial, que é uma nobre vocação
orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser
uma maneira muito fecunda de promover a região onde instala os seus
empreendimentos, sobretudo se pensa que a criação de postos de trabalho é
parte imprescindível do seu serviço ao bem comum.
A inovação biológica a partir da pesquisa
130. Na visão filosófica e teológica do ser humano e da criação que
procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade
da sua razão e da sua sabedoria, não é um factor externo que deva ser
totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no
mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua
vida, o Catecismo ensina
que as experimentações sobre os animais só são legítimas «desde que não
ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar
vidas humanas».[106]
Recorda, com firmeza, que o poder humano tem limites e que «é contrário
à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor
indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o uso e experimentação «exige um respeito religioso pela integridade da criação».[108]
131. Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II,
pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e
tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a vocação do homem para
participar de modo responsável na acção criadora de Deus», mas ao mesmo
tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa área determinada
do ecossistema não pode prescindir da consideração das suas
consequências noutras áreas».[109]
Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição «do estudo e das
aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como
a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na
indústria»,[110] embora dissesse também que isto não deve levar a uma «indiscriminada manipulação genética»[111]
que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível
frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a um artista que
exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem
possui dons especiais para o progresso científico e tecnológico, cujas
capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo
tempo, não se pode deixar de considerar os objectivos, os efeitos, o
contexto e os limites éticos de tal actividade humana que é uma forma de
poder com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria situar-se toda e qualquer reflexão acerca
da intervenção humana sobre o mundo vegetal e animal que implique hoje
mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim de aproveitar as
possibilidades presentes na realidade material. O respeito da fé pela
razão pede para se prestar atenção àquilo que a própria ciência
biológica, desenvolvida independentemente dos interesses económicos,
possa ensinar a propósito das estruturas biológicas e das suas
possibilidades e mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção
que actue sobre a natureza «para a ajudar a desenvolver-se na sua
própria linha, a da criação, querida por Deus».[112]
133. É difícil emitir um juízo geral sobre o desenvolvimento de
organismos modificados geneticamente (OMG), vegetais ou animais, para
fins medicinais ou agro-pecuários, porque podem ser muito diferentes
entre si e requerer distintas considerações. Além disso, os riscos nem
sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação
inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações
genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E
mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenómeno moderno. A
domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras práticas
antigas e universalmente seguidas podem incluir-se nestas considerações.
É oportuno recordar que o início dos progressos científicos sobre
cereais transgénicos foi a observação de bactérias que, de forma natural
e espontânea, produziam uma modificação no genoma dum vegetal. Mas, na
natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se compara com a
velocidade imposta pelos avanços tecnológicos actuais, mesmo quando
estes avanços se baseiam num desenvolvimento científico de vários
séculos.
134. Embora não disponhamos de provas definitivas acerca do dano que
poderiam causar os cereais transgénicos aos seres humanos e apesar de,
nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido um crescimento
económico que contribuiu para resolver determinados problemas, há
dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos
lugares, na sequência da introdução destas culturas, constata-se uma
concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao
«progressivo desaparecimento de pequenos produtores, que, em
consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a
retirar-se da produção directa».[113]
Os mais frágeis deles tornam-se trabalhadores precários, e muitos
assalariados agrícolas acabam por emigrar para miseráveis aglomerados
das cidades. A expansão destas culturas destrói a complexa trama dos
ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afecta o presente ou o
futuro das economias regionais. Em vários países, nota-se uma tendência
para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes e outros
produtos necessários para o cultivo, e a dependência agrava-se quando se
pensa na produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os
agricultores a comprá-las às empresas produtoras.
135. Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante, que tenha em
consideração todos os aspectos éticos implicados. Para isso, é preciso
assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo,
capaz de considerar toda a informação disponível e chamar as coisas pelo
seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa,
mas é seleccionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles
políticos, económicos ou ideológicos. Isto torna difícil elaborar um
juízo equilibrado e prudente sobre as várias questões, tendo presente
todas as variáveis em jogo. É necessário dispor de espaços de debate,
onde todos aqueles que poderiam de algum modo ver-se, directa ou
indirectamente, afectados (agricultores, consumidores, autoridades,
cientistas, produtores de sementes, populações vizinhas dos campos
tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas
ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adoptar decisões
tendentes ao bem comum presente e futuro. A questão dos OMG é uma
questão de carácter complexo, que requer ser abordada com um olhar
abrangente de todos os aspectos; isto exigiria pelo menos um maior
esforço para financiar distintas linhas de pesquisa autónoma e
interdisciplinar que possam trazer nova luz.
136. Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos
ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão,
reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas
não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes
justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz
experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor
inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento.
Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por
considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a
técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu
poder.
CAPÍTULO IV
UMA ECOLOGIA INTEGRAL
137. Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas
actuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise
mundial, proponho que nos detenhamos agora a reflectir sobre os
diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais.
1. Ecologia ambiental, económica e social
138. A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o
meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e
discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade,
com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento,
produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O
tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios átomos
ou as partículas subatómicas se podem considerar separadamente. Assim
como os vários componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos –
estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma
trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. Boa parte da
nossa informação genética é partilhada com muitos seres vivos. Por isso,
os conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de
ignorância, quando resistem a integrar-se numa visão mais ampla da
realidade.
139. Quando falamos de «meio ambiente», fazemos referência também a
uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a
habita. Isto impede-nos de considerar a natureza como algo separado de
nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos nela,
somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se
contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua
economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a
realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar
uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É
fundamental buscar soluções integrais que considerem as interacções dos
sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises
separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise
sócio-ambiental. As directrizes para a solução requerem uma abordagem
integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e,
simultaneamente, cuidar da natureza.
140. Devido à quantidade e variedade de elementos a ter em conta na
hora de determinar o impacto ambiental dum empreendimento concreto,
torna-se indispensável dar aos pesquisadores um papel preponderante e
facilitar a sua interacção com uma ampla liberdade académica. Esta
pesquisa constante deveria permitir reconhecer também como as diferentes
criaturas se relacionam, formando aquelas unidades maiores que hoje
chamamos «ecossistemas». Temo-los em conta não só para determinar qual é
o seu uso razoável, mas também porque possuem um valor intrínseco,
independente de tal uso. Assim como cada organismo é bom e admirável em
si mesmo pelo facto de ser uma criatura de Deus, o mesmo se pode dizer
do conjunto harmónico de organismos num determinado espaço, funcionando
como um sistema. Embora não tenhamos consciência disso, dependemos desse
conjunto para a nossa própria existência. Convém recordar que os
ecossistemas intervêm na retenção do anidrido carbónico, na purificação
da água, na contraposição a doenças e pragas, na composição do solo, na
decomposição dos resíduos, e muitíssimos outros serviços que esquecemos
ou ignoramos. Quando se dão conta disto, muitas pessoas voltam a tomar
consciência de que vivemos e agimos a partir duma realidade que nos foi
previamente dada, que é anterior às nossas capacidades e à nossa
existência. Por isso, quando se fala de «uso sustentável», é preciso
incluir sempre uma consideração sobre a capacidade regenerativa de cada
ecossistema nos seus diversos sectores e aspectos.
141. Além disso, o crescimento económico tende a gerar automatismos e
a homogeneizar, a fim de simplificar os processos e reduzir os custos.
Por isso, é necessária uma ecologia económica, capaz de induzir a
considerar a realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a protecção do
meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de
desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente».[114]
Mas, ao mesmo tempo, torna-se actual a necessidade imperiosa do
humanismo, que faz apelo aos distintos saberes, incluindo o económico,
para uma visão mais integral e integradora. Hoje, a análise dos
problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos,
familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo
mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o
meio ambiente. Há uma interacção entre os ecossistemas e entre os
diferentes mundos de referência social e, assim, se demonstra mais uma
vez que «o todo é superior à parte».[115]
142. Se tudo está relacionado, também o estado de saúde das
instituições duma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade
de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica
provoca danos ambientais».[116]
Neste sentido, a ecologia social é necessariamente institucional e
progressivamente alcança as diferentes dimensões, que vão desde o grupo
social primário, a família, até à vida internacional, passando pela
comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos níveis sociais e entre
eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as relações humanas.
Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda da
liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por
um sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para
benefício daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da
administração do Estado, como nas diferentes expressões da sociedade
civil, ou nas relações dos habitantes entre si, registam-se, com
demasiada frequência, comportamentos ilegais. As leis podem estar
redigidas de forma correcta, mas muitas vezes permanecem letra morta.
Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as normativas relativas ao
meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por exemplo, que
países dotados duma legislação clara sobre a protecção das florestas
continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além disso,
o que acontece numa região influi, directa ou indirectamente, nas
outras regiões. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades
opulentas provoca uma constante ou crescente procura de produtos que
provêm de regiões empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se
destroem vidas e se acaba por degradar o meio ambiente.
2. Ecologia cultural
143. A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um
património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade
comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável.
Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais
ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a
história, a cultura e a arquitectura dum lugar, salvaguardando a sua
identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das
riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais
directamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando se
analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a
linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura –
entendida não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu
sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na
hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente.
144. A visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos
da economia globalizada actual, tende a homogeneizar as culturas e a
debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade.
Por isso, pretender resolver todas as dificuldades através de normativas
uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a
complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação
activa dos habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre se
podem integrar dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de
ser provenientes da própria cultura local. Assim como a vida e o mundo
são dinâmicos, assim também o cuidado do mundo deve ser flexível e
dinâmico. As soluções meramente técnicas correm o risco de tomar em
consideração sintomas que não correspondem às problemáticas mais
profundas. É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das
culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum
grupo social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural
e requer constantemente o protagonismo dos actores sociais locais a partir da sua própria cultura.
Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser
entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo
humano.
145. Muitas formas de intensa exploração e degradação do meio
ambiente podem esgotar não só os meios locais de subsistência, mas
também os recursos sociais que consentiram um modo de viver que
sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural e um sentido da
existência e da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode
ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou
vegetal. A imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de
produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
146. Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às
comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas
uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais
interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projectos que
afectam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem
económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela
descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para
manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos
seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo,
porém, são objecto de pressões para que abandonem suas terras e as
deixem livres para projectos extractivos e agro-pecuários que não
prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.
3. Ecologia da vida quotidiana
147. Para se poder falar de autêntico progresso, será preciso
verificar que se produza uma melhoria global na qualidade de vida
humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas transcorrem a sua
existência. Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa maneira de
ver a vida, sentir e agir. Ao mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa
casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente
para exprimir a nossa identidade. Esforçamo-nos por nos adaptar ao
ambiente e, quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de
poluição visiva e acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas
tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz.
148. Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e grupos
que são capazes de dar a volta às limitações do ambiente, modificando os
efeitos adversos dos condicionalismos e aprendendo a orientar a sua
existência no meio da desordem e precariedade. Por exemplo, nalguns
lugares onde as fachadas dos edifícios estão muito deterioradas, há
pessoas que cuidam com muita dignidade o interior das suas habitações,
ou que se sentem bem pela cordialidade e amizade das pessoas. A vida
social positiva e benfazeja dos habitantes enche de luz um ambiente à
primeira vista inabitável. É louvável a ecologia humana que os pobres
conseguem desenvolver, no meio de tantas limitações. A sensação de
sufocamento, produzida pelos aglomerados residenciais e pelos espaços
com alta densidade populacional, é contrastada se se desenvolvem
calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam comunidades, se as
limitações ambientais são compensadas na interioridade de cada pessoa
que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste modo,
qualquer lugar deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida
digna.
149. Inversamente está provado que a penúria extrema vivida nalguns
ambientes privados de harmonia, magnanimidade e possibilidade de
integração, facilita o aparecimento de comportamentos desumanos e a
manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para os habitantes
de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de passar
da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades,
pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece
comportamentos anti-sociais e violência. Todavia tenho a peito reiterar
que o amor é mais forte. Muitas pessoas, nestas condições, são capazes
de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação
numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam
as barreiras do egoísmo. Esta experiência de salvação comunitária é o
que muitas vezes suscita reacções criativas para melhorar um edifício ou
um bairro.[117]
150. Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento
humano, aqueles que projectam edifícios, bairros, espaços públicos e
cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem
compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas.
Não é suficiente a busca da beleza no projecto, porque tem ainda mais
valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a
sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. Por isso também, é
tão importante que o ponto de vista dos habitantes do lugar contribua
sempre para a análise da planificação urbanista.
151. É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das
estruturas urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa
sensação de enraizamento, o nosso sentimento de «estar em casa» dentro
da cidade que nos envolve e une. É importante que as diferentes partes
duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam ter uma
visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a
viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros.
Toda a intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os
diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes
como um contexto coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os
outros deixam de ser estranhos e podemos senti-los como parte de um
«nós» que construímos juntos. Pela mesma razão, tanto no meio urbano
como no rural, convém preservar alguns espaços onde se evitem
intervenções humanas que os alterem constantemente.
152. A falta de habitação é grave em muitas partes do mundo, tanto
nas áreas rurais como nas grandes cidades, nomeadamente porque os
orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma pequena parte da procura.
E não só os pobres, mas uma grande parte da sociedade encontra sérias
dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da casa tem muita
importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das
famílias. Trata-se duma questão central da ecologia humana. Se num lugar
concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias,
trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e
expulsar os habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios
poluídos ou aglomerados perigosos, «no caso de ter de se proceder à sua
deslocação, para não acrescentar mais sofrimento ao que já padecem, é
necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação, oferecer-lhes
alternativas de alojamentos dignos e envolver directamente os
interessados».[118]
Ao mesmo tempo, a criatividade deveria levar à integração dos bairros
precários numa cidade acolhedora: «Como são belas as cidades que superam
a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta
integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as cidades
que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que
unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!»[119]
153. Nas cidades, a qualidade de vida está largamente relacionada
com os transportes, que muitas vezes são causa de grandes tribulações
para os habitantes. Nelas, circulam muitos carros utilizados por uma ou
duas pessoas, pelo que o tráfico torna-se intenso, eleva-se o nível de
poluição, consomem-se enormes quantidades de energia não-renovável e
torna-se necessário a construção de mais estradas e parques de
estacionamento que prejudicam o tecido urbano. Muitos especialistas
estão de acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao transporte
público. Mas é difícil que algumas medidas consideradas necessárias
sejam pacificamente acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria
substancial do referido transporte, que, em muitas cidades, comporta um
tratamento indigno das pessoas devido à superlotação, ao desconforto, ou
à reduzida frequência dos serviços e à insegurança.
154. O reconhecimento da dignidade peculiar do ser humano contrasta
frequentemente com a vida caótica que têm de fazer as pessoas nas nossas
cidades. Mas isto não deveria levar a esquecer o estado de abandono e
desleixo que sofrem também alguns habitantes das áreas rurais, onde não
chegam os serviços essenciais e há trabalhadores reduzidos a situações
de escravidão, sem direitos nem expectativas duma vida mais
dignificante.
155. A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é
indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a
relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua
própria natureza. Bento XVI
dizia que existe uma «ecologia do homem», porque «também o homem possui
uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe
apetece».[120]
Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação
directa com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do
próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o
mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica
de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes
subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a
cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma
verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio
corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a
si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível
aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus
criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um
comportamento que pretenda «cancelar a diferença sexual, porque já não
sabe confrontar-se com ela».[121]
4. O princípio do bem comum
156. A ecologia humana é inseparável da noção de bem comum,
princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética
social. É «o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto
aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a
própria perfeição».[122]
157. O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto
tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu
desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e
segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios,
aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se
de forma especial a família enquanto célula basilar da sociedade. Por
fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a
segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção
particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência.
Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de
defender e promover o bem comum.
158. Nas condições actuais da sociedade mundial, onde há tantas
desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas,
privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum
torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à
solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção
implica tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas –
como procurei mostrar na exortação apostólica Evangelii gaudium [123]
– exige acima de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das
mais profundas convicções de fé. Basta observar a realidade para
compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para
a efectiva realização do bem comum.
5. A justiça intergeneracional
159. A noção de bem comum engloba também as gerações futuras. As
crises económicas internacionais mostraram, de forma atroz, os efeitos
nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino comum, do qual
não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não se pode
falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade
intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta
às gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que
recebemos e comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar
apenas a partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade
para lucro individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas
duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence
também àqueles que hão-de vir. Os bispos de Portugal exortaram a assumir
este dever de justiça: «O ambiente situa-se na lógica da recepção. É um
empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração
seguinte».[124] Uma ecologia integral possui esta perspectiva ampla.
160. Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às
crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio
ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma
fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos
deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido,
aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio
que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos
importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos
inexoravelmente a outras questões muito directas: Com que finalidade
passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que
trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso,
já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as gerações futuras;
exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em
jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável
para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós
mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por
esta terra.
161. As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e
ironia. Às próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas,
desertos e lixo. O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio
ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o
estilo de vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em
catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias
regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio actual depende do que
fizermos agora, sobretudo se pensarmos na responsabilidade que nos
atribuirão aqueles que deverão suportar as piores consequências.
162. A dificuldade em levar a sério este desafio tem a ver com uma
deterioração ética e cultural, que acompanha a deterioração ecológica. O
homem e a mulher deste mundo pós-moderno correm o risco permanente de
se tornar profundamente individualistas, e muitos problemas sociais de
hoje estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação imediata,
com as crises dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em
reconhecer o outro. Muitas vezes há um consumo excessivo e míope dos
pais que prejudica os próprios filhos, que sentem cada vez mais
dificuldade em comprar casa própria e fundar uma família. Além disso
esta falta de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações
está ligada com a nossa incapacidade de alargar o horizonte das nossas
preocupações e pensar naqueles que permanecem excluídos do
desenvolvimento. Não percamos tempo a imaginar os pobres do futuro, é
suficiente que recordemos os pobres de hoje, que poucos anos têm para
viver nesta terra e não podem continuar a esperar. Por isso, «para além
de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente
necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da
mesma geração».[125]
CAPÍTULO V
ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E ACÇÃO
163. Procurei examinar a situação actual da humanidade, tanto nas
brechas do planeta que habitamos, como nas causas mais profundamente
humanas da degradação ambiental. Embora esta contemplação da realidade
em si mesma já nos indique a necessidade duma mudança de rumo e sugira
algumas acções, procuremos agora delinear grandes percursos de diálogo
que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos a
afundar.
1. O diálogo sobre o meio ambiente na política internacional
164. Desde meados do século passado e superando muitas dificuldades,
foi-se consolidando a tendência de conceber o planeta como pátria e a
humanidade como povo que habita uma casa comum. Um mundo interdependente
não significa unicamente compreender que as consequências danosas dos
estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas principalmente
procurar que as soluções sejam propostas a partir duma perspectiva
global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A
interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum.
Mas, a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme
desenvolvimento tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de
gestão internacional para resolver as graves dificuldades ambientais e
sociais. Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem resolver
com acções de países isolados, torna-se indispensável um consenso
mundial que leve, por exemplo, a programar uma agricultura sustentável e
diversificada, desenvolver formas de energia renováveis e pouco
poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma
gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a
todos o acesso à água potável.
165. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis –
altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em
menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora,
substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das
energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo
mal menor ou recorrer a soluções transitórias. Todavia, na comunidade
internacional, não se consegue suficiente acordo sobre a
responsabilidade de quem deve suportar os maiores custos da transição
energética. Nas últimas décadas, as questões ambientais deram origem a
um amplo debate público, que fez crescer na sociedade civil espaços de
notável compromisso e generosa dedicação. A política e a indústria
reagem com lentidão, longe de estar à altura dos desafios mundiais.
Neste sentido, pode-se dizer que, enquanto a humanidade do período
pós-industrial talvez fique recordada como uma das mais irresponsáveis
da história, espera-se que a humanidade dos inícios do século XXI possa
ser lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves
responsabilidades.
166. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo caminho,
enriquecido pelo esforço de muitas organizações da sociedade civil. Não
seria possível mencioná-las todas aqui, nem repassar a história das suas
contribuições. Mas, graças a tanta dedicação, as questões ambientais
têm estado cada vez mais presentes na agenda pública e tornaram-se um
convite permanente a pensar a longo prazo. Apesar disso, as cimeiras
mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às
expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política,
acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes.
167. Dentre elas, há que recordar a Cimeira da Terra, celebrada em
1992 no Rio de Janeiro. Lá se proclamou que «os seres humanos constituem
o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento
sustentável».[126]
Retomando alguns conteúdos da Declaração de Estocolmo (1972),
sancionou, entre outras coisas, a cooperação internacional no cuidado do
ecossistema de toda a terra, a obrigação de quem contaminar assumir
economicamente os custos derivados, o dever de avaliar o impacto
ambiental de toda e qualquer obra ou projecto. Propôs o objectivo de
estabilizar as concentrações de gases com efeito de estufa na atmosfera
para inverter a tendência do aquecimento global. Também elaborou uma
agenda com um programa de acção e uma convenção sobre biodiversidade,
declarou princípios em matéria florestal. Embora tal cimeira marcasse um
passo em frente e fosse verdadeiramente profética para a sua época, os
acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se
estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e
sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a requerer
caminhos eficazes e ágeis de realização prática.
168. Como experiências positivas, pode-se mencionar, por exemplo, a
Convenção de Basileia sobre os resíduos perigosos, com um sistema de
notificação, níveis estipulados e controles, e também a Convenção
vinculante sobre o comércio internacional das espécies da fauna e da
flora selvagens ameaçadas de extinção, que prevê missões de verificação
do seu efectivo cumprimento. Graças à Convenção de Viena para a
protecção da camada de ozono e a respectiva implementação através do
Protocolo de Montreal e as suas emendas, o problema da diminuição da
referida camada parece ter entrado numa fase de solução.
169. No cuidado da biodiversidade e no contraste à desertificação,
os avanços foram muito menos significativos. Relativamente às mudanças
climáticas, os progressos são, infelizmente, muito escassos. A redução
de gases com efeito de estufa requer honestidade, coragem e
responsabilidade, sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes. A
Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,
chamada Rio+20 (Rio de Janeiro 2012), emitiu uma Declaração Final
extensa mas ineficaz. As negociações internacionais não podem avançar
significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os
seus interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles que hão-de
sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta
de consciência e de responsabilidade. Durante o período de elaboração
desta encíclica, o debate adquiriu particular intensidade. Nós, crentes,
não podemos deixar de rezar a Deus pela evolução positiva nos debates
actuais, para que as gerações futuras não sofram as consequências de
demoras imprudentes.
170. Algumas das estratégias para a baixa emissão de gases poluentes
apostam na internacionalização dos custos ambientais, com o perigo de
impor aos países de menores recursos pesados compromissos de redução de
emissões comparáveis aos dos países mais industrializados. A imposição
destas medidas penaliza os países mais necessitados de desenvolvimento.
Assim, acrescenta-se uma nova injustiça sob a capa do cuidado do meio
ambiente. Como sempre, a corda quebra pelo ponto mais fraco. Uma vez que
os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir durante muito tempo,
mesmo que agora sejam tomadas medidas rigorosas, alguns países com
escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já
estão a produzir-se e afectam as suas economias. É verdade que há
responsabilidades comuns, mas diferenciadas, pelo simples motivo – como
disseram os bispos da Bolívia – que «os países que foram beneficiados
por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão de
gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir
para a solução dos problemas que causaram».[127]
171. A estratégia de compra-venda de «créditos de emissão» pode
levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a
emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução
rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio
ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à
altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo
que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e sectores.
172. Para os países pobres, as prioridades devem ser a erradicação
da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes; ao mesmo
tempo devem examinar o nível escandaloso de consumo de alguns sectores
privilegiados da sua população e contrastar melhor a corrupção. Sem
dúvida, devem também desenvolver formas menos poluentes de produção de
energia, mas para isso precisam de contar com a ajuda dos países que
cresceram muito à custa da actual poluição do planeta. O aproveitamento
directo da energia solar, tão abundante, exige que se estabeleçam
mecanismos e subsídios tais, que os países em vias de desenvolvimento
possam ter acesso à transferência de tecnologias, assistência técnica e
recursos financeiros, mas sempre prestando atenção às condições
concretas, pois «nem sempre se avalia adequadamente a compatibilidade
dos sistemas com o contexto para o qual são projectados».[128]
Os custos seriam baixos se comparados com os riscos das mudanças
climáticas. Em todo o caso, trata-se primariamente duma decisão ética,
fundada na solidariedade de todos os povos.
173. Urgem acordos internacionais que se cumpram, dada a escassa
capacidade das instâncias locais para intervirem de maneira eficaz. As
relações entre os Estados devem salvaguardar a soberania de cada um, mas
também estabelecer caminhos consensuais para evitar catástrofes locais
que acabariam por danificar a todos. São necessários padrões reguladores
globais que imponham obrigações e impeçam acções inaceitáveis, como o
facto de países poderosos descarregarem, sobre outros países, resíduos e
indústrias altamente poluentes.
174. Mencionemos também o sistema de governança dos oceanos. Com
efeito, embora tenha havido várias convenções internacionais e
regionais, a fragmentação e a falta de severos mecanismos de
regulamentação, controle e sanção acabam por minar todos os esforços. O
problema crescente dos resíduos marinhos e da protecção das áreas
marinhas para além das fronteiras nacionais continua a representar um
desafio especial. Em definitivo, precisamos de um acordo sobre os
regimes de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais.
175. A lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas para
inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma que não permite
cumprir o objectivo de erradicar a pobreza. Precisamos duma reacção
global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente, a
redução da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O
século XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas
passadas, assiste a uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo
porque a dimensão económico-financeira, de carácter transnacional, tende
a prevalecer sobre a política. Neste contexto, torna-se indispensável a
maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente
organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de
acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar.
Com afirmou Bento XVI,
na linha desenvolvida até agora pela doutrina social da Igreja, «para o
governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela
crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e consequentes maiores
desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a
segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e
para regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma
verdadeira Autoridade política mundial, delineada já pelo meu
predecessor, [São] João XXIII».[129]
Nesta perspectiva, a diplomacia adquire uma importância inédita,
chamada a promover estratégias internacionais para prevenir os problemas
mais graves que acabam por afectar a todos.
2. O diálogo para novas políticas nacionais e locais
176. Há vencedores e vencidos não só entre os países, mas também
dentro dos países pobres, onde se devem identificar as diferentes
responsabilidades. Por isso, as questões relacionadas com o meio
ambiente e com o desenvolvimento económico já não se podem olhar apenas a
partir das diferenças entre os países, mas exigem que se preste atenção
às políticas nacionais e locais.
177. Perante a possibilidade duma utilização irresponsável das
capacidades humanas, são funções inadiáveis de cada Estado planificar,
coordenar, vigiar e sancionar dentro do respectivo território. Como pode
a sociedade organizar e salvaguardar o seu futuro num contexto de
constantes inovações tecnológicas? Um factor que actua como moderador
efectivo é o direito, que estabelece as regras para as condutas
permitidas à luz do bem comum. Os limites que uma sociedade sã, madura e
soberana deve impor têm a ver com previsão e precaução, regulamentações
adequadas, vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da
corrupção, acções de controle operacional sobre o aparecimento de
efeitos não desejados dos processos de produção, e oportuna intervenção
perante riscos incertos ou potenciais. Existe uma crescente
jurisprudência que visa reduzir os efeitos poluentes dos
empreendimentos. Mas a estrutura política e institucional não existe
apenas para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas,
estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as
iniciativas pessoais e colectivas.
178. O drama duma política focalizada nos resultados imediatos,
apoiada também por populações consumistas, torna necessário produzir
crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses eleitorais, os
governos não se aventuram facilmente a irritar a população com medidas
que possam afectar o nível de consumo ou pôr em risco investimentos
estrangeiros. A construção míope do poder frena a inserção duma agenda
ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos. Esquece-se,
assim, que «o tempo é superior ao espaço»[130]
e que sempre somos mais fecundos quando temos maior preocupação por
gerar processos do que por dominar espaços de poder. A grandeza política
mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes
princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem
muita dificuldade em assumir este dever num projecto de nação.
179. Nalguns lugares, estão a desenvolver-se cooperativas para a
exploração de energias renováveis, que consentem o auto-abastecimento
local e até mesmo a venda da produção em excesso. Este exemplo simples
indica que, enquanto a ordem mundial existente se revela impotente para
assumir responsabilidades, a instância local pode fazer a diferença. Com
efeito, aqui é possível gerar uma maior responsabilidade, um forte
sentido de comunidade, uma especial capacidade de solicitude e uma
criatividade mais generosa, um amor apaixonado pela própria terra, tal
como se pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes valores têm
um enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o
direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se
uma decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de
organismos não-governamentais e associações intermédias, deve forçar os
governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais
rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder político – nacional,
regional e municipal –, também não é possível combater os danos
ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser mais
eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem
as mesmas políticas ambientais.
180. Não se pode pensar em receitas uniformes, porque há problemas e
limites específicos de cada país ou região. Também é verdade que o
realismo político pode exigir medidas e tecnologias de transição, desde
que estejam acompanhadas pelo projecto e a aceitação de compromissos
graduais vinculativos. Ao mesmo tempo, porém, a nível nacional e local,
há sempre muito que fazer, como, por exemplo, promover formas de
poupança energética. Isto implica favorecer modalidades de produção
industrial com a máxima eficiência energética e menor utilização de
matérias-primas, retirando do mercado os produtos pouco eficazes do
ponto de vista energético ou mais poluentes. Podemos mencionar também
uma boa gestão dos transportes ou técnicas de construção e restruturação
de edifícios que reduzam o seu consumo energético e o seu nível de
poluição. Além disso, a acção política local pode orientar-se para a
alteração do consumo, o desenvolvimento duma economia de resíduos e
reciclagem, a protecção de determinadas espécies e a programação duma
agricultura diversificada com a rotação de culturas. É possível
favorecer a melhoria agrícola de regiões pobres, através de
investimentos em infra-estruturas rurais, na organização do mercado
local ou nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de
técnicas agrícolas sustentáveis. Podem-se facilitar formas de cooperação
ou de organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos
produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais. É tanto o
que se pode fazer!
181. Indispensável é a continuidade, porque não se podem modificar
as políticas relativas às alterações climáticas e à protecção ambiental
todas as vezes que muda um governo. Os resultados requerem muito tempo e
comportam custos imediatos com efeitos que não poderão ser exibidos no
período de vida dum governo. Por isso, sem a pressão da população e das
instituições, haverá sempre relutância a intervir, e mais ainda quando
houver urgências a resolver. Para um político, assumir estas
responsabilidades com os custos que implicam não corresponde à lógica
eficientista e imediatista actual da economia e da política, mas, se ele
tiver a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a dignidade que
Deus lhe deu como pessoa e deixará, depois da sua passagem por esta
história, um testemunho de generosa responsabilidade. Importa dar um
lugar preponderante a uma política salutar, capaz de reformar as
instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que
permitam superar pressões e inércias viciosas. Todavia é preciso
acrescentar que os melhores dispositivos acabam por sucumbir, quando
faltam as grandes metas, os valores, uma compreensão humanista e rica de
significado, capazes de conferir a cada sociedade uma orientação nobre e
generosa.
3. Diálogo e transparência nos processos decisórios
182. A previsão do impacto ambiental dos empreendimentos e projectos
requer processos políticos transparentes e sujeitos a diálogo, enquanto
a corrupção, que esconde o verdadeiro impacto ambiental dum projecto em
troca de favores, frequentemente leva a acordos ambíguos que fogem ao
dever de informar e a um debate profundo.
183. Um estudo de impacto ambiental não deveria ser posterior à
elaboração dum projecto produtivo ou de qualquer política, plano ou
programa. Há-de inserir-se desde o princípio e elaborar-se de forma
interdisciplinar, transparente e independente de qualquer pressão
económica ou política. Deve aparecer unido à análise das condições de
trabalho e dos possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas,
na economia local, na segurança. Assim os resultados económicos
poder-se-ão prever de forma mais realista, tendo em conta os cenários
possíveis e, eventualmente, antecipando a necessidade dum investimento
maior para resolver efeitos indesejáveis que possam ser corrigidos. É
sempre necessário alcançar consenso entre os vários actores sociais, que
podem trazer diferentes perspectivas, soluções e alternativas. Mas, no
debate, devem ter um lugar privilegiado os moradores locais, aqueles
mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus
filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o
interesse económico imediato. É preciso abandonar a ideia de
«intervenções» sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas
pensadas e debatidas por todas as partes interessadas. A participação
requer que todos sejam adequadamente informados sobre os vários aspectos
e os diferentes riscos e possibilidades, e não se reduza à decisão
inicial sobre um projecto, mas implique também acções de controle ou
monitoramento constante. É necessário haver sinceridade e verdade nas
discussões científicas e políticas, sem se limitar a considerar o que é
permitido ou não pela legislação.
184. Quando surgem eventuais riscos para o meio ambiente que afectam
o bem comum presente e futuro, esta situação exige «que as decisões
sejam baseadas num confronto entre riscos e benefícios previsíveis para
cada opção alternativa possível».[131]
Isto vale sobretudo quando um projecto pode causar um incremento na
exploração dos recursos naturais, nas emissões ou descargas, na produção
de resíduos, ou então uma mudança significativa na paisagem, no habitat
de espécies protegidas ou num espaço público. Alguns projectos, não
apoiados por uma análise bem cuidada, podem afectar profundamente a
qualidade de vida dum lugar, devido a questões muito diferentes entre
si, como, por exemplo, uma poluição acústica não prevista, a redução do
horizonte visual, a perda de valores culturais, os efeitos do uso da
energia nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao curto prazo e
aos interesses privados, pode favorecer análises demasiado rápidas ou
consentir a ocultação de informação.
185. Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr
uma série de perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um
desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo?
Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que
preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há questões que
devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso
escasso e indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o
exercício doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda
a análise de impacto ambiental duma região.
186. Na Declaração do Rio, de 1992, afirma-se que, «quando existem
ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de certezas
científicas absolutas não poderá constituir um motivo para adiar a
adopção de medidas eficazes»[132]
que impeçam a degradação do meio ambiente. Este princípio de precaução
permite a protecção dos mais fracos, que dispõem de poucos meios para se
defender e fornecer provas irrefutáveis. Se a informação objectiva leva
a prever um dano grave e irreversível, mesmo que não haja uma
comprovação indiscutível, seja o projecto que for deverá suspender-se ou
modificar-se. Assim, inverte-se o ónus da prova, já que, nestes casos, é
preciso fornecer uma demonstração objectiva e contundente de que a
actividade proposta não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às
pessoas que nele habitam.
187. Isto não implica opor-se a toda e qualquer inovação tecnológica
que permita melhorar a qualidade de vida duma população. Mas, em todo o
caso, deve permanecer de pé que a rentabilidade não pode ser o único
critério a ter em conta e, na hora em que aparecessem novos elementos de
juízo a partir de ulteriores dados informativos, deveria haver uma nova
avaliação com a participação de todas as partes interessadas. O
resultado do debate pode ser a decisão de não avançar num projecto, mas
poderia ser também a sua modificação ou a elaboração de propostas
alternativas.
188. Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é
difícil chegar a um consenso. Repito uma vez mais que a Igreja não
pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política,
mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades
particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.
4. Política e economia em diálogo para a plenitude humana
189. A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve
submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia.
Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a
economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida,
especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo,
fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e
reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que
não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa
e aparente cura. A crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião
para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios
éticos e para uma nova regulamentação da actividade financeira
especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reacção que fizesse
repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. A
produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis
económicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu
valor real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas
mercadorias, com um impacto ambiental desnecessário, que simultaneamente
danifica muitas economias regionais.[133]
Habitualmente, a bolha financeira é também uma bolha produtiva. Em
suma, o que não se enfrenta com energia é o problema da economia real,
aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a
produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e
médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho.
190. Neste contexto, sempre se deve recordar que «a protecção
ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro
de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de
mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente».[134]
Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado,
que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento
dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que
quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar
os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? Dentro do
esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos
seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos
ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção humana.
Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo pensa-se nela
como um reservatório de recursos económicos que poderia ser explorado,
mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu
significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as
necessidades dos pobres.
191. Quando se colocam estas questões, alguns reagem acusando os
outros de pretender parar, irracionalmente, o progresso e o
desenvolvimento humano. Mas temos de nos convencer que, reduzir um
determinado ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra
modalidade de progresso e desenvolvimento. Os esforços para um uso
sustentável dos recursos naturais não são gasto inútil, mas um
investimento que poderá proporcionar outros benefícios económicos a
médio prazo. Se não temos vista curta, podemos descobrir que pode ser
muito rentável a diversificação duma produção mais inovadora e com menor
impacto ambiental. Trata-se de abrir caminho a oportunidades
diferentes, que não implicam frenar a criatividade humana nem o seu
sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais.
192. Por exemplo, um percurso de desenvolvimento produtivo mais
criativo e melhor orientado poderia corrigir a disparidade entre o
excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso investimento
para resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas
inteligentes e rentáveis de reutilização, recuperação funcional e
reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das cidades... A
diversificação produtiva oferece à inteligência humana possibilidades
muito amplas de criar e inovar, ao mesmo tempo que protege o meio
ambiente e cria mais oportunidades de trabalho. Esta seria uma
criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é
mais dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade,
para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no
quadro duma concepção mais ampla da qualidade de vida. Ao contrário, é
menos dignificante e criativo e mais superficial insistir na criação de
formas de espoliação da natureza só para oferecer novas possibilidades
de consumo e de ganho imediato.
193. Assim, se nalguns casos o desenvolvimento sustentável implicará
novas modalidades para crescer, noutros casos – face ao crescimento
ganancioso e irresponsável, que se verificou ao longo de muitas décadas –
devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites
razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos que é
insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez
mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua
dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo
do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se
possa crescer de forma saudável noutras partes. Bento XVI
dizia que «é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas
estejam dispostas a favorecer comportamentos caracterizados pela
sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia e melhorando
as condições da sua utilização».[135]
194. Para que apareçam novos modelos de progresso, precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento global»[136],
e isto implica reflectir responsavelmente «sobre o sentido da economia e
dos seus objectivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações».[137]
Não é suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o
ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso.
Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso.
Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento
tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade
de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso. Além
disso, muitas vezes a qualidade real de vida das pessoas diminui – pela
deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o
esgotamento de alguns recursos – no contexto dum crescimento da
economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento sustentável
torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do
discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a
responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior
parte dos casos, a uma série de acções de publicidade e imagem.
195. O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de
todas as outras considerações, é uma distorção conceptual da economia:
desde que aumente a produção, pouco interessa que isso se consiga à
custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se o derrube
duma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo a
perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade
ou aumentar a poluição. Por outras palavras, as empresas obtêm lucros
calculando e pagando uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar
ético somente um comportamento em que «os custos económicos e sociais
derivados do uso dos recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de
maneira transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e
não por outras populações nem pelas gerações futuras».[138]
A mentalidade utilitária, que fornece apenas uma análise estática da
realidade em função de necessidades actuais, está presente tanto quando é
o mercado que atribui os recursos como quando o faz um Estado
planificador.
196. Qual é o lugar da política? Recordemos o princípio da
subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento das capacidades
presentes a todos os níveis, mas simultaneamente exige mais
responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais poder. É verdade que,
hoje, alguns sectores económicos exercem mais poder do que os próprios
Estados. Mas não se pode justificar uma economia sem política, porque
seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos
da crise actual. A lógica que não deixa espaço para uma sincera
preocupação pelo meio ambiente é a mesma em que não encontra espaço a
preocupação por integrar os mais frágeis, porque, «no modelo “do êxito” e
“individualista” em vigor, parece que não faz sentido investir para que
os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida».[139]
197. Precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por
diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo
interdisciplinar os vários aspectos da crise. Muitas vezes, a própria
política é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta
de boas políticas públicas. Se o Estado não cumpre o seu papel numa
região, alguns grupos económicos podem-se apresentar como benfeitores e
apropriar-se do poder real, sentindo-se autorizados a não observar
certas normas até se chegar às diferentes formas de criminalidade
organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico e violência muito difícil
de erradicar. Se a política não é capaz de romper uma lógica perversa e
perde-se também em discursos inconsistentes, continuaremos sem enfrentar
os grandes problemas da humanidade. Uma estratégia de mudança real
exige repensar a totalidade dos processos, pois não basta incluir
considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão
a lógica subjacente à cultura actual. Uma política sã deveria ser capaz
de assumir este desafio.
198. A política e a economia tendem a culpar-se reciprocamente a
respeito da pobreza e da degradação ambiental. Mas o que se espera é que
reconheçam os seus próprios erros e encontrem formas de interacção
orientadas para o bem comum. Enquanto uns se afanam apenas com o ganho
económico e os outros estão obcecados apenas por conservar ou aumentar o
poder, o que nos resta são guerras ou acordos espúrios, onde o que
menos interessa às duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos
mais fracos. Vale aqui também o princípio de que «a unidade é superior
ao conflito».[140]
5. As religiões no diálogo com as ciências
199. Não se pode sustentar que as ciências empíricas expliquem
completamente a vida, a essência íntima de todas as criaturas e o
conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os seus
confins metodológicos limitados. Se se reflecte dentro deste quadro
restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a
capacidade da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas.[141]
Quero lembrar que «os textos religiosos clássicos podem oferecer um
significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre
sempre novos horizontes (...). Será razoável e inteligente relegá-los
para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença
religiosa?»[142]
Realmente, é ingénuo pensar que os princípios éticos possam ser
apresentados de modo puramente abstracto, desligados de todo o contexto,
e o facto de aparecerem com uma linguagem religiosa não lhes tira valor
algum no debate público. Os princípios éticos que a razão é capaz de
perceber, sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e expressos
com linguagens diferentes, incluindo a religiosa.
200. Além disso, qualquer solução técnica que as ciências pretendam
oferecer será impotente para resolver os graves problemas do mundo, se a
humanidade perde o seu rumo, se esquece as grandes motivações que
tornam possível a convivência social, o sacrifício, a bondade. Em todo o
caso, será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam coerentes com
a sua própria fé e não a contradigam com as suas acções; será
necessário insistir para que se abram novamente à graça de Deus e se
nutram profundamente das próprias convicções sobre o amor, a justiça e a
paz. Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a
justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano
sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes,
podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que
devíamos guardar. Muitas vezes os limites culturais de distintas épocas
condicionaram esta consciência do próprio património ético e espiritual,
mas é precisamente o regresso às respectivas fontes que permite às
religiões responder melhor às necessidades actuais.
201. A maior parte dos habitantes do planeta declara-se crente, e
isto deveria levar as religiões a estabelecerem diálogo entre si,
visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a construção duma
trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é indispensável um
diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma fechar-se
nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a
converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber. Isto impede
de enfrentar adequadamente os problemas do meio ambiente. Torna-se
necessário também um diálogo aberto e respeitador dos diferentes
movimentos ecologistas, entre os quais não faltam as lutas ideológicas. A
gravidade da crise ecológica obriga-nos, a todos, a pensar no bem comum
e a prosseguir pelo caminho do diálogo que requer paciência, ascese e
generosidade, lembrando-nos sempre que «a realidade é superior à ideia».[143]
CAPÍTULO VI
EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
202. Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo
é a humanidade que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem
comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta
consciência basilar permitiria o desenvolvimento de novas convicções,
atitudes e estilos de vida. Surge, assim, um grande desafio cultural,
espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração.
1. Apontar para outro estilo de vida
203. Dado que o mercado tende a criar um mecanismo consumista
compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser
arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo
obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma tecno-económico. Está a
acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser humano «aceita
os objectos comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos
pelos planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral,
age assim com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144]
O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma
suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a
liberdade a minoria que detém o poder económico e financeiro. Nesta
confusão, a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova compreensão de
si mesma que a possa orientar, e esta falta de identidade é vivida com
angústia. Temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins.
204. A situação actual do mundo «gera um sentido de precariedade e
insegurança, que, por sua vez, favorece formas de egoísmo colectivo».[145]
Quando as pessoas se tornam auto-referenciais e se isolam na própria
consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração
da pessoa, tanto mais necessita de objectos para comprar, possuir e
consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa,
aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste horizonte, não
existe sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de sujeito que
tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas apenas na
medida em que não contradigam as necessidades próprias. Por isso, não
pensemos só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de
grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de
crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista,
sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá
provocar violência e destruição recíproca.
205. Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de
tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o
bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionalismo psicológico e
social que lhes seja imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com
honestidade, externar o próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à
verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a
abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que
Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações. A cada pessoa
deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o
direito de lhe tirar.
206. Uma mudança nos estilos de vida poderia chegar a exercer uma
pressão salutar sobre quantos detêm o poder político, económico e
social. Verifica-se isto quando os movimentos de consumidores conseguem
que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam
eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a
reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de produção. É um facto
que, quando os hábitos da sociedade afectam os ganhos das empresas,
estas vêem-se pressionadas a mudar a produção. Isto lembra-nos a
responsabilidade social dos consumidores. «Comprar é sempre um acto
moral, para além de económico».[146] Por isso, hoje, «o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós».[147]
207. A Carta da Terra convidava-nos, a todos, a começar de novo
deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas ainda não
desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível. Por isso,
atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio: «Como nunca
antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início
(...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova
reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a
sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da
paz e pela jubilosa celebração da vida».[148]
208. Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si
mesmo rumo ao outro. Sem tal capacidade, não se reconhece às outras
criaturas o seu valor, não se sente interesse em cuidar de algo para os
outros, não se consegue impor limites para evitar o sofrimento ou a
degradação do que nos rodeia. A atitude basilar de se auto-transcender,
rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, é a raiz
que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz
brotar a reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada
acção e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de
superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de
vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade.
2. Educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente
209. A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica
precisa de traduzir-se em novos hábitos. Muitos estão cientes de que não
basta o progresso actual e a mera acumulação de objectos ou prazeres
para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes
de renunciar àquilo que o mercado lhes oferece. Nos países que deveriam
realizar as maiores mudanças nos hábitos de consumo, os jovens têm uma
nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles
lutam admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num
contexto de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação
doutros hábitos. Por isso, estamos perante um desafio educativo.
210. A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objectivos.
Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na
consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a
incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade baseados na razão
instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência,
consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos
níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário
com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com
Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto
para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais
profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários
pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efectivamente a
crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na
compaixão.
211. Às vezes, porém, esta educação, chamada a criar uma «cidadania
ecológica», limita-se a informar e não consegue fazer maturar hábitos. A
existência de leis e normas não é suficiente, a longo prazo, para
limitar os maus comportamentos, mesmo que haja um válido controle. Para a
norma jurídica produzir efeitos importantes e duradouros, é preciso que
a maior parte dos membros da sociedade a tenha acolhido, com base em
motivações adequadas, e reaja com uma transformação pessoal. A doação de
si mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de
virtudes sólidas. Se uma pessoa habitualmente se resguarda um pouco
mais em vez de ligar o aquecimento, embora as suas economias lhe
permitam consumir e gastar mais, isso supõe que adquiriu convicções e
modos de sentir favoráveis ao cuidado do ambiente. É muito nobre assumir
o dever de cuidar da criação com pequenas acções diárias, e é
maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas até dar forma
a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental pode
incentivar vários comportamentos que têm incidência directa e importante
no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e
papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas
aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros
seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo
veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes
desnecessárias… Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e
dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com
base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o desperdiçar
rapidamente pode ser um acto de amor que exprime a nossa dignidade.
212. E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o
mundo. Estas acções espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre
para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um
bem que sempre tende a difundir-se, por vezes invisivelmente. Além
disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o sentimento da
nossa dignidade, leva-nos a uma maior profundidade existencial,
permite-nos experimentar que vale a pena a nossa passagem por este
mundo.
213. Vários são os âmbitos educativos: a escola, a família, os meios
de comunicação, a catequese, e outros. Uma boa educação escolar em
tenra idade coloca sementes que podem produzir efeitos durante toda a
vida. Mas, quero salientar a importância central da família, porque «é o
lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e
protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode
desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico.
Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da
cultura da vida».[149]
Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida,
como, por exemplo, o uso correcto das coisas, a ordem e a limpeza, o
respeito pelo ecossistema local e a protecção de todas as criaturas. A
família é o lugar da formação integral, onde se desenvolvem os distintos
aspectos, intimamente relacionados entre si, do amadurecimento pessoal.
Na família, aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer
«obrigado» como expressão duma sentida avaliação das coisas que
recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa
quando fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de sincera cortesia
ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo
que nos rodeia.
214. Compete à política e às várias associações um esforço de
formação das consciências da população. Naturalmente compete também à
Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a
desempenhar nesta educação. Espero também que, nos nossos Seminários e
Casas Religiosas de Formação, se eduque para uma austeridade
responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos
pobres e do meio ambiente. Tendo em conta o muito que está em jogo, do
mesmo modo que são necessárias instituições dotadas de poder para punir
os danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar e educar uns
aos outros.
215. Neste contexto, «não se deve descurar nunca a relação que
existe entre uma educação estética apropriada e a preservação de um
ambiente sadio».[150]
Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo
utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o
que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objecto de uso e
abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir mudanças
profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem
realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus
esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo
modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a
natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista,
transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos
eficazes do mercado.
3. A conversão ecológica
216. A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de
vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui uma
magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade. Desejo
propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que
nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos
ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se
trata tanto de propor ideias, como sobretudo falar das motivações que
derivam da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do
mundo. Com efeito, não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas
com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem «uma moção interior
que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e
comunitária».[151]
Temos de reconhecer que nós, cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos
frutificar as riquezas dadas por Deus à Igreja, nas quais a
espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da natureza ou
das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão com
tudo o que nos rodeia.
217. Se «os desertos exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos»,[152]
a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior.
Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até
comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático
frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são
passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se
incoerentes. Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que
comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas
as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da
obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da
experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma
sã relação com a criação como dimensão da conversão integral da pessoa.
Isto exige também reconhecer os próprios erros, pecados, vícios ou
negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro. A
Igreja na Austrália soube expressar a conversão em termos de
reconciliação com a criação: «Para realizar esta reconciliação, devemos
examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de
Deus com as nossas acções e com a nossa incapacidade de agir. Devemos
fazer a experiência duma conversão, duma mudança do coração».[153]
219. Todavia, para se resolver uma situação tão complexa como esta
que enfrenta o mundo actual, não basta que cada um seja melhor. Os
indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade de vencer a
lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo sem
ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais responde-se,
não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias:
«As exigências desta obra serão tão grandes, que as possibilidades das
iniciativas individuais e a cooperação dos particulares, formados de
maneira individualista, não serão capazes de lhes dar resposta. Será
necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições».[154] A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.
220. Esta conversão comporta várias atitudes que se conjugam para
activar um cuidado generoso e cheio de ternura. Em primeiro lugar,
implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do mundo como
dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca disposições
gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja nem
agradeça. «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita
(...); e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4).
Implica ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras
criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda
comunhão universal. O crente contempla o mundo, não como alguém que está
fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a
todos os seres. Além disso a conversão ecológica, fazendo crescer as
peculiares capacidades que Deus deu a cada crente, leva-o a desenvolver a
sua criatividade e entusiasmo para resolver os dramas do mundo,
oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável» (Rm12,
1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de
domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por sua
vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o sentido de tal conversão várias
convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta encíclica, como,
por exemplo, a consciência de que cada criatura reflecte algo de Deus e
tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo assumiu
em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo
de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua
luz; e ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo
nele uma ordem e um dinamismo que o ser humano não tem o direito de
ignorar. Porventura uma pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a
propósito dos pássaros – que «nenhum deles passa despercebido diante de
Deus» (Lc12, 6), será capaz de os maltratar ou causar-lhes dano?
Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão,
permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à
relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite
aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira
tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4. Alegria e paz
222. A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de
entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e
contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo
consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento, presente em
distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção
de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação constante
de possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o
devido apreço a cada coisa e a cada momento. Pelo contrário, tornar-se
serenamente presente diante de cada realidade, por mais pequena que
seja, abre-nos muitas mais possibilidades de compreensão e realização
pessoal. A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e
uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que
nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as
possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem
entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a
dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres.
223. A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora.
Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é
precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e
vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali,
sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar
apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as
coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas. Deste modo conseguem
reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a
ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo
quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando
satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos
próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na
oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos
entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas
possibilidades que a vida oferece.
224. A sobriedade e a humildade não gozaram de positiva consideração
no século passado. Mas, quando se debilita de forma generalizada o
exercício dalguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba por
provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta
falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de
falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e
conjugar todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num
ser humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar
tudo sem limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o
meio ambiente. Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma
sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa
vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa
subjectividade que determina o que é bem e o que é mal.
225. Por outro lado, ninguém pode amadurecer numa sobriedade feliz,
se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada compreensão
da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz, que é
muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem
muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque,
autenticamente vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de vida aliado
com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A
natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las no
meio do ruído constante, da distracção permanente e ansiosa, ou do
culto da notoriedade? Muitas pessoas experimentam um desequilíbrio
profundo, que as impele a fazer as coisas a toda a velocidade para se
sentirem ocupadas, numa pressa constante que, por sua vez, as leva a
atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem incidência no modo como
se trata o ambiente. Uma ecologia integral exige que se dedique algum
tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, reflectir sobre o
nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive
entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser
criada, mas descoberta, desvendada».[155]
226. Falamos aqui duma atitude do coração, que vive tudo com serena
atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante duma pessoa sem
estar a pensar no que virá depois, que se entrega a cada momento como um
dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus ensinou-nos esta
atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as aves do
céu, ou quando, na presença dum homem inquieto, «fitando nele o olhar,
sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). De certeza que Ele estava
plenamente presente diante de cada ser humano e de cada criatura,
mostrando-nos assim um caminho para superar a ansiedade doentia que nos
torna superficiais, agressivos e consumistas desenfreados.
227. Uma expressão desta atitude é parar a agradecer a Deus antes e
depois das refeições. Proponho aos crentes que retomem este hábito
importante e o vivam profundamente. Este momento da bênção da mesa,
embora muito breve, recorda-nos que a nossa vida depende de Deus,
fortalece o nosso sentido de gratidão pelos dons da criação, dá graças
por aqueles que com o seu trabalho fornecem estes bens, e reforça a
solidariedade com os mais necessitados.
5. Amor civil e político
228. O cuidado da natureza faz parte dum estilo de vida que implica
capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus lembrou-nos que temos
Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna irmãos. O amor fraterno
só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem pelo que
realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por
isso, é possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade leva-nos a amar
e aceitar o vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso
controle. Assim podemos falar duma fraternidade universal.
229. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que
temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a
pena ser bons e honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral,
baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento
de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu. Uma
tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba por colocar-nos
uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca o
despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o
desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente.
230. O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em
prática o pequeno caminho do amor, a não perder a oportunidade duma
palavra gentil, dum sorriso, de qualquer pequeno gesto que semeie paz e
amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos
quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração,
do egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é,
simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas formas.
231. O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também
civil e político, manifestando-se em todas as acções que procuram
construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem
comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações
entre os indivíduos, mas também «as macrorrelações como relacionamentos
sociais, económicos, políticos».[156] Por isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal duma «civilização do amor».[157]
O amor social é a chave para um desenvolvimento autêntico: «Para tornar
a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar
o amor na vida social – nos planos político, económico, cultural –
fazendo dele a norma constante e suprema do agir».[158]
Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos
diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que
detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que
permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus
para intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve
lembrar-se que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da
caridade e, deste modo, amadurece e se santifica.
232. Nem todos são chamados a trabalhar de forma directa na
política, mas no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável de
associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio
ambiente natural e urbano. Por exemplo, preocupam-se com um lugar
público (um edifício, uma fonte, um monumento abandonado, uma paisagem,
uma praça) para proteger, sanar, melhorar ou embelezar algo que é de
todos. Ao seu redor, desenvolvem-se ou recuperam-se vínculos, fazendo
surgir um novo tecido social local. Assim, uma comunidade liberta-se da
indiferença consumista. Isto significa também cultivar uma identidade
comum, uma história que se conserva e transmite. Desta forma cuida-se do
mundo e da qualidade de vida dos mais pobres, com um sentido de
solidariedade que é, ao mesmo tempo, consciência de habitar numa casa
comum que Deus nos confiou. Estas acções comunitárias, quando exprimem
um amor que se doa, podem transformar-se em experiências espirituais
intensas.
6. Os sinais sacramentais e o descanso celebrativo
233. O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente.
E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no
orvalho, no rosto do pobre.[159]
O ideal não é só passar da exterioridade à interioridade para descobrir
a acção de Deus na alma, mas também chegar a encontrá-Lo em todas as
coisas, como ensinava São Boaventura: «A contemplação é tanto mais
elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o efeito da graça divina
ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras criaturas».[160]
234. São João da Cruz ensinava que tudo o que há de bom nas coisas e
experiências do mundo «encontra-se eminentemente em Deus de maneira
infinita ou, melhor, Ele é cada uma destas grandezas que se pregam».[161]
E isto, não porque as coisas limitadas do mundo sejam realmente
divinas, mas porque o místico experimenta a ligação íntima que há entre
Deus e todos os seres vivos e, deste modo, «sente que Deus é para ele
todas as coisas».[162]
Quando admira a grandeza duma montanha, não pode separar isto de Deus, e
percebe que tal admiração interior que ele vive, deve finalizar no
Senhor: «As montanhas têm cumes, são altas, imponentes, belas,
graciosas, floridas e perfumadas. Como estas montanhas, é o meu Amado
para mim. Os vales solitários são tranquilos, amenos, frescos,
sombreados, ricos de doces águas. Pela variedade das suas árvores e pelo
canto suave das aves, oferecem grande divertimento e encanto aos
sentidos e, na sua solidão e silêncio, dão refrigério e repouso: como
estes vales, é o meu Amado para mim».[163]
235. Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a
natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida
sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num
plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas com
toda a sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é
instrumento do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que
veio para Se fazer nosso companheiro no caminho da vida. A água
derramada sobre o corpo da criança baptizada, é sinal de vida nova. Não
fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos
com Deus. Nota-se isto particularmente na espiritualidade do Oriente
cristão. «A beleza, que no Oriente é um dos nomes mais queridos para
exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade transfigurada,
mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas cores,
nas luzes, nos perfumes».[164]
Segundo a experiência cristã, todas as criaturas do universo material
encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de
Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde
introduziu um gérmen de transformação definitiva: «O cristianismo não
rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada
plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima
natureza de templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor,
feito também Ele corpo para a salvação do mundo».[165]
236. A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça,
que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão
maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de
fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o
Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o
faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso
próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o
centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem
fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá
graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um acto de amor
cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar
duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo».[166]
A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O
mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no
Pão Eucarístico, «a criação propende para a divinização, para as santas
núpcias, para a unificação com o próprio Criador».[167]
Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas
preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação
inteira.
237. A participação na Eucaristia é especialmente importante ao
domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico, é-nos oferecido como
dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os
outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o «primeiro
dia» da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade
ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a
realidade criada. Além disso, este dia anuncia «o descanso eterno do
homem, em Deus».[168]
Assim, a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O
ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do
estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o
mais importante: o seu significado. Na nossa actividade, somos chamados
a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da
simples inactividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à
nossa essência. Assim, a acção humana é preservada não só do activismo
vazio, mas também da ganância desenfreada e da consciência que se isola
buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso semanal impunha
abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu boi e o
teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro
residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que
permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de
descanso, cujo centro é a Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana
inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres.
7. A Trindade e a relação entre as criaturas
238. O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e
comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflecte e por Quem
tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de
Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente
no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo
foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada
uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal.
Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e
beleza, devemos louvar a inteira Trindade».[169]
239. Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão
trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma
marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser
humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura
«testemunha que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-se reconhecer
na natureza, «quando esse livro não era obscuro para o homem, nem a
vista do homem se tinha turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária,
tão real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser
humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos,
assim, o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária.
240. As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado
segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As criaturas tendem
para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra
realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma série
inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam.[171]
Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem
entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa
própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e
santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para
viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas.
Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus
imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto
convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que
brota do mistério da Trindade.
8. A Rainha de toda a criação
241. Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e
preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração
trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do
sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo
exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente
transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher
«vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze
estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de
toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo
ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza.
Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que
«guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende
também o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos
ajude a contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.
242. E ao lado d’Ela, na sagrada família de Nazaré, destaca-se a
figura de São José. Com o seu trabalho e presença generosa, cuidou e
defendeu Maria e Jesus e livrou-os da violência dos injustos, levando-os
para o Egipto. No Evangelho, aparece descrito como um homem justo,
trabalhador, forte; mas, da sua figura, emana também uma grande ternura,
própria não de quem é fraco mas de quem é verdadeiramente forte, atento
à realidade para amar e servir humildemente. Por isso, foi declarado
protector da Igreja universal. Também Ele nos pode ensinar a cuidar,
pode motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para proteger
este mundo que Deus nos confiou.
9. Para além do sol
243. No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13,
12) e poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o
qual terá parte connosco na plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o
sábado da eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu.
Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). A vida
eterna será uma maravilha compartilhada, onde cada criatura,
esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para
oferecer aos pobres definitivamente libertados.
244. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a nosso
cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom que há
nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas,
caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, «se o mundo tem um
princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu
início, aquele que é o seu Criador».[172] Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança.
245. Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a oferecer-Lhe
tudo, também nos dá as forças e a luz de que necessitamos para
prosseguir. No coração deste mundo, permanece presente o Senhor da vida
que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos, porque Se
uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a
encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado!
* * *
246. Depois desta longa reflexão, jubilosa e ao mesmo tempo
dramática, proponho duas orações: uma que podemos partilhar todos
quantos acreditam num Deus Criador Omnipotente, e outra pedindo que nós,
cristãos, saibamos assumir os compromissos para com a criação que o
Evangelho de Jesus nos propõe.
Oração pela nossa terra
Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a vossa luz,
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amen.
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do meu Pontificado.
Franciscus
[1]
Cantico delle creature:
Fonti Francescane, 263.
[2] Carta ap. Octogesima adveniens (14 de Maio de 1971), 21: AAS 63 (1971), 416-417.
[3] Discurso à FAO, no seu XXV aniversário (16 de Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 22/XI/1970), 6.
[4] Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979),15: AAS 71 (1979), 287.
[5] Cf. Catequese (17 de Janeiro de 2001), 4: Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
[6] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS 83 (1991), 841.
[8] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 34: AAS 80 (1988), 559.
[9] Cf. Idem, Carta enc. Centesimus annus(1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[10] Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73.
[11] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS 101 (2009), 687.
[12] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[13] Bento XVI, Discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone (6 de Agosto de 2008): AAS 100 (2008), 634; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/VIII/2008), 5.
[14] Mensagem para o Dia de Oração pela salvaguarda da criação (1 de Setembro de 2012).
[15] Discurso em Santa Bárbara, Califórnia (8 de Novembro de 1997); cf. John Chryssavgis, On Earth as in Heaven: Ecological Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch Bartholomew (Bronx/Nova Iorque 2012).
[16] Ibidem.
[17] Conferência no Mosteiro de Utstein, Noruega (23 de Junho de 2003).
[18] Bartolomeu, Discurso Global Responsibility and Ecological Sustainability: Closing Remarks, I Cimeira de Halki, Istambul (20 de Junho de 2012).
[19] Tomás de Celano, Vita prima di San Francesco, XXIX, 81: Fonti Francescane, 460.
[20] Legenda Maior, VIII, 6: Fonti Francescane, 1145.
[21] Cf. Tomás de Celano, Vita seconda di San Francesco, CXXIV, 165: Fonti Francescane, 750.
[22] Conferência dos Bispos Católicos da África do Sul, Pastoral Statement on the Environmental Crisis (5 de Setembro de 1999).
[23] Cf. Francisco, Saudação aos funcionários da FAO (20 de Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 86.
[25] Conferência dos Bispos Católicos das Filipinas, Carta pastoral What is Happening to our Beautiful Land? (29 de Janeiro de 1988).
[26] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 17.
[27] Cf. Conferência Episcopal Alemã – Comissão para a pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler, intergenerationeller und ökologischer Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 483.
[29] Francisco, Catequese (5 de Junho de 2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da região da Patagónia-Comahue (Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2.
[31] Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos da América, Global Climate Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the Common Good (15 de Junho de 2001).
[32] V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 471.
[33] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 56: AAS 105 (2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 12: AAS 82 (1990), 154.
[35] Idem, Catequese (17 de Janeiro de 2001), 3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
[36] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 15: AAS 82 (1990), 156.
[38] Angelus com os inválidos, Osnabrük / Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980), 1232; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda Maior, VIII, 1: Fonti Francescane, 1134.
[41] Catecismo da Igreja Católica, 2416.
[42] Conferência Episcopal Alemã,
Zukunft der Schöpfung – Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen
Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der Energieversorgung (1980), II, 2.
[44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 10: PG 29, 9.
[45] Divina Commedia. Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9 de Novembro de 2005), 3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/XI/2005), 24.
[47] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS101 (2009), 687.
[48] João Paulo II, Catequese (24 de Abril de 1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28/IV/1991), 12.
[49]
O Catecismo ensina que Deus quis criar um mundo em caminho para a
perfeição última, o que implica a presença da imperfeição e do mal
físico: ver Catecismo da Igreja Católica,310.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[51] Tomás de Aquino, Summa theologiaeI, q. 104, art. 1, ad 4.
[52] Idem, In octo libros Physicorum Aristotelis expositio, lib. II, lectio 14.
[53] Coloca-se, nesta perspectiva, a contribuição do P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI, Discurso numa fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de 1966): Insegnamenti 4 (1966), 992-993; João Paulo II, Carta ao reverendo P. George V. Coyne (1 de Junho de 1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715; Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta (24 de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
[54] João Paulo II, Catequese (30 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 2/II/2002), 12.
[55] Conferência Episcopal do Canadá - Comissão para a Pastoral Social, You love all that exists… All things are yours, God, Lover of Life (4 de Outubro de 2003), 1.
[56] Conferência dos Bispos Católicos do Japão, Reverence for Life. A Message for the Twenty-First Century (1 de Janeiro de 2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese (26 de Janeiro de 2000), 5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de Agosto de 2000), 3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie de la volonté. 2ª parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216.
[60] Summa theologiae I, q. 47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1; art. 3.
[64] Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
[65] Cf. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, A Igreja e a questão ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco, Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 215: AAS105 (2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate(29 de Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da Igreja Católica, 2418.
[70] Conferência do Episcopado Dominicano, Carta pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21 de Janeiro de 1987).
[71] João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 33:AAS 80 (1988), 557.
[74] Discurso aos indígenas e agricultores do México, em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979), 209; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4.
[75] Homilia na Missa celebrada para os agricultores, em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS 72 (1980), 926;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 8: AAS 82 (1990), 152.
[77] Conferência Episcopal do Paraguai, Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de 1983), 2, 4, d.
[78] Conferência Episcopal da Nova Zelândia, Statement on Environmental Issues (1 de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981), 27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São Justino podia falar de «sementes do Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6: PG 6, 457-458; 467.
[81] João Paulo II, Discurso aos representantes da ciência, da cultura e dos estudos superiores na Universidade das Nações Unidas, em Hiroxima (25 de Fevereiro de 1981), 3: AAS 73 (1981), 422.
[82] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 69:AAS 101 (2009), 702.
[83] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit(Würzburg9 1965), 87.
[84] Ibidem.
[85] Ibid., 87-88.
[86] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 462.
[87] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63-64.
[88] Ibid., 64.
[89] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 671.
[90] Ibid., 22: o. c., 657.
[91] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 231: AAS 105 (2013), 1114.
[92] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63.
[93] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS83 (1991), 841.
[94] Cf. Declaração Love for Creation. An Asian Response to the Ecological Crisis:
Colóquio promovido pela Federação das Conferências Episcopais da Ásia,
Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 1993), 3.3.2.
[95] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991),37: AAS 83 (1991), 840.
[96] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 2: AAS 102 (2010), 41.
[97] Idem, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 28:AAS 101 (2009), 663.
[98] Cf. Vicente de Lerins, Commonitorium primum, cap. 23: PL 50, 668: «Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – Fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce através das idades».
[99] N. 80: AAS 105 (2013), 1053.
[100] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63.
[101] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[102] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 34: AAS 59 (1967), 274.
[103] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 32: AAS 101 (2009), 666.
[109] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 6: AAS 82 (1990), 150.
[110] Discurso à Pontifícia Academia das Ciências (3 de Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2 (1981), 333; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981), 8.
[111] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 7: AAS 82 (1990), 151.
[112] João Paulo II, Discurso à 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (29 de Outubro de 1983), 6: AAS 76 (1984), 394; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 13/XI/1983), 7.
[113] Conferência Episcopal da Argentina – Comissão de Pastoral Social, Una tierra para todos (Junho de 2005), 19.
[114] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 4.
[115] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 237: AAS 105 (2013), 1116.
[116] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51: AAS 101 (2009), 687.
[117] Alguns autores puseram em evidência os valores que muitas vezes se vivem, por exemplo, nas «villas», «chabolas» ou favelas da América Latina: ver Juan Carlos Scannone S.I., «La irrupción del pobre y la lógica de la gratuidad», in Juan Carlos Scannone e Marcelo Perine (eds.), Irrupción del pobre y quehacer filosófico. Hacia una nueva racionalidad (Buenos Aires 1993), 225-230.
[118] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 482.
[119] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 210: AAS 105 (2013), 1107.
[120] Discurso ao Bundestag, Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[121] Francisco, Catequese (15 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/IV/2015), 20.
[122] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 26.
[123] Cf. nn. 186-201:AAS 105 (2013), 1098-1105.
[124] Conferência Episcopal Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de Setembro de 2003), 20.
[125] Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 8: AAS 102 (2010), 45.
[126] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 1.
[127] Conferência Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 86.
[128] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Doc. Energia, Giustizia e Pace (Cidade do Vaticano 2013), 56.
[129] Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700.
[130] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
[131] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 469.
[132] Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15.
[133] Cf. Conferência Episcopal do México – Comissão de Pastoral Social, Jesucristo, vida y esperanza de los indígenas y campesinos (14 de Janeiro de 2008).
[134] Pontifício Conselho «Justiça e Paz»,Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 470.
[135] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 9: AAS 102 (2010), 46.
[137] Ibid., 5: o. c., 43.
[138] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 50: AAS 101 (2009), 686.
[139] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 209: AAS 105 (2013), 1107.
[141] Cf. Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29 de Junho de 2013), 34 [AAS 105
(2013), 577]: «Enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é
alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma;
a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé
ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um
caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o
olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a
permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé
desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter,
satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza
sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da
criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo
que se abre aos estudos da ciência».
[142] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123.
[144] Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 66-67.
[145] João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 1: AAS 82 (1990), 147.
[146] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 66:AAS101 (2009), 699.
[147] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, 11: AAS 102 (2010), 48.
[148] Carta da Terra, Haia (29 de Junho de 2000).
[149] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 39: AAS 83 (1991), 842.
[150] Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1990, 14: AAS 82 (1990), 155.
[151] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 261: AAS105 (2013), 1124.
[152] Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2005), 5.
[153] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, A New Earth - The Environmental Challenge (2002).
[154] Romano Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 72.
[155] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 71: AAS 105 (2013), 1050.
[156] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 2:AAS 101 (2009), 642.
[157] Paulo VI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1977: AAS 68 (1976), 709.
[158] Pontifício Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 582.
[159]
Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da sua própria
experiência, assinalava a necessidade de não separar demasiado as
criaturas do mundo e a experiência de Deus na interioridade. Dizia ele:
«Não é preciso criticar preconceituosamente aqueles que procuram o
êxtase na música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um dos
movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o que
dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as
moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar
de cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos
aflitos…» [Eva De Vitray-Meyerovitch (ed.), Anthologie du soufisme (Paris 1978), 200].
[160] In II Sententiarum, 23, 2, 3.
[161] Cántico Espiritual,XIV, 5.
[162] Ibidem.
[163] Ibid., XIV, 6-7.
[164] João Paulo II, Carta ap. Orientale lumen (2 de Maio de 1995),11: AAS 87 (1995), 757.
[166] Idem, Carta enc.Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 8: AAS 95 (2003), 438.
[167] Bento XVI, Homilia na Missa de Corpus Christi (15 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 513; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/VI/2006), 3.
[169] João Paulo II, Catequese (2 de Agosto de 2000), 4: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[170] Quaestiones disputatae de Mysterio Trinitatis, 1, 2, concl.
[171] Cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae I, q. 11, art. 3; q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3.
[172] Basílio Magno, Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 6: PG 29, 8.
Fonte: http://w2.vatican.va
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