Jubileu da
Misericórdia
(3) Via-sacra da
Misericórdia
A via-sacra é um exercício espiritual e uma oração oportuna
em qualquer tempo e em qualquer lugar, na medida em que consubstanciam o
Mistério de Deus e o atributo divino por excelência, o Amor, que também
conhecemos pelos nomes Caridade e Misericórdia. Ainda assim, a Quaresma tem
sido o tempo de excelência para viver o itinerário sagrado de Jesus, pois é
neste enquadramento que a Igreja vive mais intensamente a dádiva de Deus.
A celebração da Via-sacra na Quaresma, no Jubileu da
Misericórdia, surge então como a conjunção de três essências distintas, a
via-sacra que podemos sempre rezar, a Quaresma que vivemos anualmente e um Ano
Santo que é um dom de certo modo ocasional, que se conjugam no mesmo sentido de
acção de graças e louvor a Deus em reconhecimento de tudo o que Ele nos
oferece, a começar pela própria vida.
A celebração proposta tem as catorze estações tradicionais,
incluindo um prólogo e um epílogo, estabelecidas de modo a seguirmos o Evangelho
segundo S. João, capítulos 17 a 21, na íntegra.
Prólogo
Jo 17,1-26
No final da Última Ceia, toda ela revestida de Misericórdia,
desde o anúncio da aceitação do sofrimento que Lhe estava reservado, à
simbologia da lavagem dos pés aos discípulos e aos ensinamentos, Jesus faz a
apologia da relação das pessoas da Santíssima Trindade e explica que todo o
amor entre o Pai o Filho e o Espírito Santo se reúnem em misericórdia para com
as criaturas humanas.
Prestes a partir, o homem Jesus não pede ao Pai por Si, mas
pelos discípulos, para que sejam protegidos do Maligno e recebam força para
perseverar na fé. Mas a misericórdia de Jesus não se restringe aos seus
discípulos de então, o Senhor roga também por todos nós, “por aqueles que vão
acreditar em Mim por causa da palavra desses discípulos”, afirma Jesus no
versículo 20. Finalmente deseja que o amor com que Pai e Filho se amam esteja
presente em nós.
Deus Pai de Misericórdia, fazei-nos merecedores da súplica
de vosso filho Jesus, para não vacilarmos na fé, quaisquer que sejam as
consequências, por estarmos firmes na promessa de que Deus está por nós. Que
demos testemunho diário de que somos portadores do amor com que Jesus e o Pai
se amam, através dos nossos gestos misericordiosos.
1ª Estação – No Jardim das Oliveiras
Jo 18,1-14
No final da ceia, Jesus abandona o Cenáculo com os
discípulos, e rezam salmos, como era costume, enquanto atravessam o Vale de
Cédron e chegam ao Jardim das Oliveiras.
Perante a aproximação do momento em que vai sofrer uma morte
injusta, Jesus não se remete a ter pena de si mesmo, a ficar-se pelo simples
miserabilismo, a procurar a quem deitar culpas, pelo contrário, enfrenta a
situação, preparando-Se para ela e ensina-nos o que devemos fazer quando a vida
não nos corre da melhor maneira. Confiar no amor de Deus, na sua imensa
misericórdia. Deixar-se ficar nas mãos de Deus, confiante, como sugere Santa
Teresa de Ávila, é sempre a melhor opção, de modo especial nos momentos
decisivos e mais graves das nossas vidas. Pedro quer defender Jesus pela força
das armas, mas o Senhor não consente.
Meu Deus, dai-me força e coragem para não fugir às minhas
responsabilidades, para enfrentar as consequências dos meus actos, sejam eles
de mérito ou de vergonha, que mesmo perante a perseguição injusta eu não me
cale, nem pare de cantar a verdade.
Jesus, falar verdade custou-Te a morte na cruz! Falar
verdade, valeu a ressurreição. Ajudai-me, Senhor, a transpor, com a dignidade
da filiação divina, a morte, em direcção à ressurreição para a eternidade.
2ª Estação – 1ª Negação de Pedro
Jo 18,15-18
Pedro surge-nos como sendo provavelmente o mais corajoso
entre todos os discípulos. Ainda assim, quando a situação ficou muito mal,
quando Jesus estava já a ser interrogado e o seu suplício tinha começado,
perante a hipótese de ir fazer companhia ao Mestre, sofrendo a tortura e a
morte, Pedro vira as costas a Jesus, como se não o conhecesse, como se não
fosse seu amigo. Em Pedro, naquele momento, a carne venceu o espírito. Aquele
que supostamente socorreria Jesus em primeiro lugar, que ainda umas horas antes
tinha desembainhado a espada para o defender, mostra medo da dor e abandona o
amigo aos verdugos.
Quantas vezes eu Te neguei, Senhor, quantas! Quantas vezes,
sem me dar conta do que fazia, como aconteceu com Pedro! Ah! Senão fosse a tua
misericórdia, Pedro não se salvaria, nem eu. Louvado sejas, Senhor da
Misericórdia.
3ª Estação – Jesus perante Anás
Jo 18,19-24
Quando Jesus responde ao sumo-sacerdote Anás com palavras de
verdade, um soldado esbofeteia-O, porque a verdade incomoda.
A todos nós surgem pessoas que incomodam, umas porque mentem
e injustamente nos acusam, outras porque falam verdade e trazem ao de cimo as
nossas fraquezas. Podemos tentar eliminá-las do nosso caminho, como o soldado
fez a Jesus, mas também podemos fazer como Jesus, a quem bastou a certeza de
ter do seu lado a verdade. Maltratado, humilhou-Se voluntariamente e não abriu
a boca (Is 53,7).
Senhor, misericórdia, pelas vezes em que esbofeteei alguém,
com ou sem razão.
4ª Estação – Pedro confirma a sua negação
Jo 18,25-27
Pedro estava perplexo e aterrorizado com a rápida sucessão
dos acontecimentos; estava sem tempo para pensar e tinha que decidir:
entregar-se, como Jesus à fúria daquela gente os fingir que não era nada com
ele, mais, fingir que ele não era ele?
Deus sabe bem que somos colocados muitas vezes perante
situações difíceis como esta. E, de algum modo, Deus manifesta-Se nestes
momentos, chegando em nosso apoio. E são tantas as vezes que Deus nos acena e
nós não O vimos! O galo cantou e Pedro, no meio de toda a atrapalhação porque
estava a passar, ouviu-o. Por estar atento, entendeu o pecado que tinha
cometido e pode assim arrepender-se. Ao contrário de Judas que reconhecendo-se
traidor se suicidou por não suportar a sua conduta, Pedro arrependeu-se. A
misericórdia tem dois sentidos. O sentido de quem a concede e o de quem a pede
e recebe.
Deus de Misericórdia, vinde em meu auxílio. Senhor, fazei-me
manso e humilde de coração, a fim de que eu me humilhe a pedir o vosso perdão misericordioso
pelos meus pecados e corajoso suficientemente para o receber com todas as
implicações que isso comportar. Ainda que, como Pedro, precise de coragem para
também enfrentar a cruz.
5ª Estação – Jesus perante Pilatos
Jo 18,28-40
Tendo-lhe sido apresentado um preso, Pilatos verifica que
ele está inocente, mas não se sente suficientemente capaz de resolver logo o
assunto, porque, para ele, a política está acima da justiça. Pilatos não quer
desagradar aos chefes dos judeus. Tem dificuldade em conciliar o seu charme, o
seu visual político e a justiça. Recorre então da misericórdia, tentando
deturpá-la. Quer usar a amnistia pascal para libertar Jesus, mas comete um
erro, que é o facto de não poder amnistiar quem não prevaricou. Tenta que
aqueles que conspiram contra Jesus O salvem. Também Pilatos está sobre pressão
como Pedro tinha estado. Uma luta entre a carne e o espírito: seguir pela
verdade e enfrentar as consequências, pois até ameaçaram denunciá-lo a César
como traidor, ou salvar a pele a qualquer preço?
Senhor, mais uma vez Te peço que me fortaleças na fé, no
coração e na mente, para que, perante a adversidade, perante situações de
difícil escolha, eu tenha coragem para optar sempre de modo semelhante ao teu,
que é o caminho da misericórdia. Para Pilatos, o caminho da misericórdia era
apenas o da verdade, pois para mim também o é muitas vezes, mas eu complico.
Vinde, Pai de Jesus, em meu auxílio.
6ª Estação – Flagelação e coroação de espinhos
Jo 19,1-3
Muitas vezes lemos e ouvimos este trecho da Sagrada
Escritura, mas nem sempre o escutamos.
A tortura que Jesus sofreu não se resume a lindo quadro
pintado por um pintor famoso ou anónimo que está numa igreja ou num museu.
A tortura que Jesus sofreu é a tortura que tantas pessoas
sofrem nos nossos dias.
A tortura que Jesus sofreu é a mesma tortura que hoje
sofremos e infligimos aos outros.
Pais que maltratam os filhos, marido e mulher que se
maltratam, avós que são maltratados, patrões e empregados que se maltratam,
vizinhos que se maltratam. É urgente que cada um de nós examine a sua consciência,
se arrependa e se converta.
Também somos carrascos quando sabemos que alguém é torturado
ou maltratado e nos calamos em vez de denunciarmos ou irmos em auxílio. Cristo
morreu por nós, dizemos que somos cristãos, mas falta-nos a coragem para o ser.
Senhor, misericórdia. Senhor, dai-me coragem para dar
testemunho de Ti, neste tempo em que as perseguições aos teus discípulos são
maiores que em qualquer outro tempo da História. Lembra-Te de mim, Senhor, tem
misericórdia de mim e não me deixes enveredar pelo caminho fácil da mentira e
do fingimento.
7ª Estação – Eis o Homem
Jo 19,4-8
Pilatos tem já a certeza que Jesus está inocente. Na sua
humanidade igual à nossa, Jesus sente dores na carne quando é magoado. Pilatos,
com a arrogância e insensibilidade de quem é dono do poder, pega em Jesus, com
o corpo em chagas e trá-lo para fora, expondo-o aos olhares da multidão. Talvez
pensasse comover a turba enfurecida, talvez tivesse a seu favor a dignidade
humana não ser ainda valorizada no seu tempo, pois isso só acontece com a
expansão do cristianismo, todavia, quem sente dores, sabe bem quanto sofre
outra pessoa que as sinta. Cristo é barbaramente torturado e parece que ninguém
se condói. Pilatos pensa afinal: ou Ele morre e eu prossigo ou eu O salvo e é o
meu fim.
Senhor, misericórdia para as pessoas que neste tempo e neste
mundo sofrem perseguição, prisão e tortura, seja por causa da sua
nacionalidade, da cor da sua pele, da sua religião.
Senhor, misericórdia para as famílias desfeitas pelas
guerras e pela ganância das pessoas.
Senhor, misericórdia para os que são perseguidos por causa
do teu nome.
Senhor, misericórdia para os que perseguem, torturam, fazem
sofrer e matam, para que se convertem a Ti, único Deus, Altíssimo e
Misericordioso Senhor.
8ª Estação – Condenação à morte
Jo 19,9-16
Como alguns políticos neste tempo que vivemos, Pilatos sabem
bem onde está a verdade e a honestidade, enfim a justiça, mas os votos são para
ele mais importante que qualquer valor moral ou vida humana. Quando Pilatos se
sente ameaçado por contarem a César que ele coloca Jesus num nível mais elevado
que o imperador, Pilatos desiste e entrega-lhes o Inocente, como cordeiro
levado ao matadouro (Is 53,7).
Senhor, tem compaixão dos teus filhos, pessoas que criaste
para a felicidade e estão a viver fazendo-se mutuamente infelizes. Senhor, como
há muitos séculos, jovens inocentes continuam a ser arrancados à vida e
enviados para guerras onde, sob diversas máscaras, servem os interesses dos
poderosos que enriquecem à custa da guerra e do sofrimento e morte que ela
causa.
Crianças estão a ser ensinadas a matar! Compaixão, Senhor!
Compaixão! Misericórdia!
9ª Estação – Crucificação
Jo 19,17-24
Não mates. (Ex 20,13 e Dt 5,17)
A Lei revelada na Sagrada Escritura é clara: Não mates!
Infelizmente, as pessoas conseguem facilmente inventar
argumentos para não cumprir a lei divina. Pensam, pensamos nós, que somos mais
espertos que Deus, que o conseguimos enganar. Pensamos mal, pois Deus não é
esperto, nem muito nem pouco, Deus é sábio, conhece tudo dos confins do cosmos
até ao interior do coração de cada um.
Mataram Jesus.
Gente matou e mata pessoas só por serem de outra religião.
Matam-se pessoas para as roubar.
Matam-se pessoas na forca, a tiro, por choque eléctrico, por
injecção letal, por decapitação, como se não fossem bárbaras quaisquer que
sejam as formas de executar penas de morte!
Senhor, misericórdia! Senhor, misericórdia!
Pai, envia o Espírito Santo sobre este teu povo, para melhor
entendermos as tuas leis e o que queres de nós, para que olhemos mais para a
eternidade que nos aguarda e menos para o que podemos possuir e gozar nesta
vida.
9ª Estação – Jesus, Maria e o discípulo amado
Jo 19,25-27
Na sua magnífica sapiência, quis o Deus Pai que o seu Filho
tivesse uma mãe quando ganhasse um corpo para entre as pessoas revelar a
natureza da Santíssima Trindade.
Maria, sem compreender bem a natureza da sua maternidade
divina, agia sempre como mãe de homem e acompanhou o itinerário do seu filho,
desde a Anunciação do anjo até… encontramo-la agora aos pés da cruz. Cheia de
ternura para dar, cheia de dor no seu coração, cansada até à exaustão, com a
vida agitada do seu filho e com o drama das últimas horas.
Jesus tinha pedido ao Pai por todos os discípulos que
viessem no futuro a segui-lO. Suspenso na Cruz, Ele dá-nos uma Mãe, ao
discípulo que está com ela (seria João?) e também aos discípulos dos primeiros
tempos da Igreja que a conheceram pessoalmente e a todos nós que a aceitamos
como Mãe e a veneramos.
Mãe de Deus, Rainha dos Céus, descansa o olhar sobre os teus
filhos a quem vieste falar de oração e de paz, em Fátima, há 100 anos atrás, sê
para nós um meio de alcançarmos a misericórdia de Deus quando a nossa
persistência no erro nos afastar do desígnio de felicidade que o Criador nos
preparou.
10ª Estação – Morte de Jesus
Jo 19,28-30
O que mais assusta as pessoas desde sempre cumpriu-se no
próprio Deus encarnado. Jesus viveu a agonia da morte. Uma morte horrorosa, que
infelizmente não lhe foi destinada apenas a ele. Muitas pessoas morreram e
continuam a morrer crucificados como o Senhor.
Deus experimentou a morte, na sua natureza humana. Como a
relação entre o Pai e o Filho é de amor, caridade, misericórdia, e nessa
misericórdia o Pai permitiu a morte do Filho, então a morte não pode ser uma
coisa tão má. Deus convida-nos a encarar com esperança a passagem à felicidade
eterna através da morte corporal.
Senhor, misericórdia para os bebés abortados.
Senhor, misericórdia para as crianças vítimas de
infanticídio.
Senhor, misericórdia para as mães que são levadas ao aborto
dos seus filhos.
Senhor, misericórdia para as pessoas que não têm coragem
para enfrentar a morte, ou a vida, e buscam solução no suicídio, mesmo quando
lhe chamam eutanásia.
Senhor, misericórdia para quem mata doentes e idosos,
invocando a misericórdia.
Senhor, misericórdia para quem advoga e mata deficientes
porque são uma carga de trabalho e despesa.
Senhor, misericórdia.
11ª Estação – Sangue e água de Vida
Jo 19,31-37
Quando a lança golpeia o peito de Jesus, jorra sangue, mas
também água. Água? Água. Como o Senhor anunciara à samaritana:
A samaritana perguntou: «Como é que Tu, sendo judeu, me
pedes de beber a mim que sou samaritana?» (De facto, os judeus não se dão bem
com os samaritanos). Jesus respondeu: «Se conhecesses o dom de Deus e quem te
pede de beber, tu é que Lhe pedirias. E Ele dar-te-ia água viva». (Jo 4,9-10)
A água que jorrou do peito de Jesus era a água viva de que
Ele tinha falado àquela mulher. De um morto podia ter jorrado água viva?
«E a água que Eu lhe darei vai tornar-se dentro dele uma
fonte de água que jorra para a vida eterna», continuou Jesus. (Jo 4,14b)
É da morte de Jesus, pela qual Ele pode ressuscitar que vem
a nossa aspiração à ressurreição e vida eterna.
12ª Estação – Sepultamento de Jesus
Jo 19,38-42
José de Arimateia realizou uma obra de misericórdia em
relação ao corpo defunto de Jesus, que recordamos neste ano jubilar da
misericórdia.
É sempre bom recordar as Obras de Misericórdia, ao menos as
corporais: Dar de comer a quem tem fome; Dar de beber a quem tem sede; Vestir
os nus; Dar pousada aos peregrinos; Assistir aos enfermos; Visitar os presos;
Enterrar os mortos.
Senhor, ajudai-me a não me esquecer dos que têm fome ou
sede, dos que não têm abrigo, dos doentes e mesmo dos presos, enfim, a que eu
não me esqueça de acudir a todos os que estão a precisar da minha ajuda, para
que Tu também não te esqueças de mim e daqueles que eu mais amo, na hora da
morte.
Epílogo
Jo 20,1-21,25
Quando todos ou quase todos pensavam já que Jesus tinha sido
uma má aposta, que falava muito bem, mas que não tinha sido mais que um falso
profeta, porque não tinha alcançado a protecção de Deus e morrera às mãos dos
déspotas que zombavam do Senhor e oprimiam os mais fracos, Ele surpreendeu
todos surgindo vivo. Não sabemos bem como, mas sabemos que não era um fantasma,
mas também não era como antes, talvez se assemelhasse ao corpo refulgente com
que o Pai o revelara no Monte da Transfiguração.
Deus, infinitamente misericordioso, olha com bondade para os
teus filhos que insistentemente se afastam de Ti, mas com sede de água viva que
jorre para a vida eterna.
Somos fracos e ansiamos a tua misericórdia, para que
possamos alcançar a felicidade na vida eterna e desfrutar de todas as
promessas, contemplando finalmente o Pai e Jesus e o Espírito Santo.
Orlando de Carvalho
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