A guerra entre o farisaísmo cristão e o cristianismo evangélico parece crescer e estar em vias de explosão causando grande dano ao Povo de Deus. Mas os fariseus de hoje, como os de antanho, mostram-se incapazes de fazer mea culpa , da humildade, de prescindir de luxos, regalias e privilégios.
Ouvem o Papa Francisco, mas não o escutam.
Não se importam que a Igreja fique deserta, desde que conservem a sua arrogante dignidade nobiliárquica.
Reproduzimos o artigo da revista Visão .
(e rectificámos os termos em AO90)
Está instalada a guerra nos
bastidores do Vaticano
Quem sou eu para julgar?” As palavras do Papa Francisco, aparentemente tão
simples e imbuídas de compaixão, foram o mote para cimentar a união do grupo de
cardeais mais conservadores do Vaticano contra o papado do jesuíta argentino,
ainda mal o fumo branco se dissipara na chaminé da Capela Sistina, em Março de
2013.
“Quem sou eu para julgar?”, disse-o, repetidas vezes, nos meses e anos
seguintes, reforçando o incómodo na Cúria romana. Primeiro referindo-se aos
homossexuais. Depois, a propósito de quase todos os temas polémicos para a
Igreja: divórcio, aborto, contracepção, eutanásia.
A pergunta abala as milenares estruturas do trono de Pedro, como sucessor
escolhido por Jesus Cristo. Do Papa espera-se uma sabedoria quase divina, uma
certeza inabalável sobre o que é certo e errado. Esse poder está, aliás,
representado na insígnia papal, com as suas chaves cruzadas (uma de ouro e
outra de prata), que Jesus terá dado a Pedro, simbolizando os poderes de unir e
separar, de decidir o que é permitido e o que é pecado. Na heráldica
eclesiástica, as chaves simbolizam a autoridade espiritual do Papa como vigário
de Cristo na Terra.
A pergunta, só por si, é considerada ofensiva por muitos dos influentes
membros com poderes no Conclave. Francisco prefere citar o Evangelho (Mateus,
VII: 1-2): “Não julgueis para não serdes julgados”. Para o Papa, um cristão não
deve apontar o dedo aos outros, mas estender-lhes a mão para levantá-los. Logo
após a sua eleição, e dirigindo-se aos padres que ouvem os católicos em
confissão, pediu “mais paciência” e tempo para “ouvirem os seus dramas e as
suas dificuldades, com ternura”. E, caso o confessor não os possa absolver,
apelava, “que dê uma bênção, mesmo sem absolvição sacramental”. O Papa alertava
para a falta de confiança no perdão de Deus, que só leva a uma “amargura
existencial” que “impede as pessoas de se levantarem de novo, quando caem”. A
Igreja, defende, “deve ajudar as pessoas a perceber que é sempre possível
recomeçar, desde que Jesus perdoe”.
A 'bomba atómica'
O primeiro Papa jesuíta da História, e o primeiro não europeu em mais de
1200 anos, foi uma escolha invulgar para suceder ao conservador Bento XVI e era
expectável que a sua visão de um papado mais próximo dos pobres e dos excluídos
gerasse mal-estar junto dos sectores mais tradicionalistas do Vaticano. A sua
própria postura (renunciando a vários luxos e à pompa excessiva em torno do
cargo), bem como a interpretação do que deve ser um Papa (“sou apenas mais um
bispo”) geraram, desde logo, inúmeros anticorpos. Como assim, um Papa que
conduz o seu pequeno carro, que carrega as malas, que paga a conta do hotel?
Que agarra num telefone e fala directamente com as pessoas? Mas nada faria
antever o nível de brutalidade a que chegou a guerra nos bastidores da Cúria
romana. Como definiu um teólogo esta semana ao jornal britânico The Guardian,
acusar o Papa de heresia é o equivalente a, num conflito armado, recorrer à
bomba atómica.
A heresia, um termo utilizado tanto pela Igreja Católica como pelas igrejas
protestantes, é “uma posição contrária à verdade revelada por Jesus Cristo”, ou
“a mera dúvida de um dogma da fé divina”, por uma pessoa baptizada. A punição
para um herege é a excomunhão – ou seja, o Papa seria afastado não apenas do
cargo mas também da própria Igreja.
As primeiras acusações públicas contra Francisco foram crescendo de tom ao
longo do último ano, mas ganharam nova força quando surgiram numa carta aberta,
divulgada em Setembro passado. Mais de cinco dezenas de católicos descontentes
– entre eles um cardeal, um bispo e o antigo director do banco do Vaticano –
acusam o Papa Francisco de sete posições heréticas. Ao Guardian, um
“proeminente clérigo”, que também assinou essa carta, confessou mesmo: “Mal
podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado.”
A alegria do amor
A “gota de água” terá sido uma simples nota de rodapé num texto intitulado
Amoris Laetitia (a Alegria do Amor). A exortação de Francisco, publicada em Abril
do ano passado, é um texto longo e muito cauteloso, composto por nove capítulos
que se baseiam nos resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a Família,
realizados em 2014 e 2015. É no capítulo 8 que surge a polémica referência de
Francisco, explicitando que pessoas que vivem segundos casamentos ou em união
de facto “podem viver na graça de Deus, podem amar e crescer na vida da graça e
da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”. Acrescenta ainda,
para maior descontentamento da ala conservadora do Vaticano, que “em certos
casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos”.
A questão do divórcio tem sido central nesta polémica – na verdade, nunca
deixou de ser motivo de discórdia no seio da Igreja, com maior ênfase desde os
anos 60 e o Concílio Vaticano II. Francisco tem condenado de forma subtil a
hipocrisia dos ricos e poderosos, que conseguem pagar advogados e provar que um
casamento não foi consumado à luz dos preceitos que a Igreja exige (podendo ser
anulado), enquanto outros se separam e refazem as suas vidas, sem que exista
algo de imperdoável nisso (mas ficam impedidos de voltar a ter relações sexuais
e são afastados da comunhão).
A realidade – sabem-no o Papa, os cardeais, os bispos, os padres e todos os
católicos – é que há milhões de crentes classificados como “pecadores” e que
sofrem por verem as portas da Igreja fechadas. Há quem as abra, aceitando baptizar
crianças de mães solteiras, ou permitindo que uma mulher divorciada comungue na
missa de domingo, ou fechando os olhos à orientação sexual daqueles que juntam
a sua voz aos cânticos litúrgicos. Mas tudo é feito em segredo, quase em
vergonha, uma ínfima excepção no mundo católico. O que o Papa Francisco
pretende é escancarar as portas, com compaixão – mas ainda há demasiadas
trancas e cadeados de complexos segredos a impedirem uma abertura assim no
Vaticano.
O arqui-inimigo americano
Na lindíssima sala Clementina do Palácio Apostólico do Vaticano, os votos de
Natal do Papa para os seus cardeais tiveram, por tudo isto, este ano um travo
mais amargo. Com o seu típico bom humor, começou por citar um conselheiro do
Papa Pio IX, para dizer que sabia bem a difícil tarefa que iniciara: “Fazer
reformas em Roma é como querer limpar a esfinge do Egipto com uma escova de
dentes.”
Ainda não se tinham desfeito os sorrisos amarelos e já ele prosseguia,
falando do “verdadeiro perigo” que ameaça o Vaticano: “os pequenos grupos”, os
“conluios” de “traidores da confiança”, os que “se aproveitam da maternidade da
Igreja” e se deixam “corromper pela ambição ou pela glória vã” e que, “quando
delicadamente são afastados, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema e
do 'Papa desinformado', em vez de recitar o mea culpa”.
A crítica atingiu, como uma lança certeira, o cardeal norte-americano
Raymund Burke, que lidera a ala conservadora do Vaticano e a onda de
contestação pública ao papado de Francisco. Burke é a personificação de tudo o
que o Papa jesuíta repudia em Roma: o fausto, a pompa, o luxo desmesurado de
quem se julga superior aos outros mortais.
O grande embate entre os dois terá ocorrido poucas semanas após a eleição de
Francisco, quando o Papa expurgou a ordem dos Frades Franciscanos da Imaculada,
que aliavam a devoção à missa tridentina (em latim, de costas para a
congregação) às ideologias de direita, conquistando adeptos nos EUA. Essa
Igreja distante, impenetrável, acessível apenas a alguns “eleitos”, não poderia
estar mais longe da visão de Francisco para a Igreja, bem expressa no mote que
escolheu para o seu brasão papal: “miserando atque eligendo” (“com misericórdia
o elegeu”). A frase é uma referência a uma passagem no Evangelho de São Mateus,
em que Jesus escolhe um publicano (cobrador de impostos) para o seguir. Com os
publicanos não se podia falar, comer ou rezar. Eram vistos como traidores que
tiravam à sua gente para dar aos poderosos. Mas, como lembrou Francisco, ao
explicar a sua admiração por esta passagem, “Jesus parou, olhou-o sem pressa,
com olhos de misericórdia; olhou-o como ninguém o fizera antes. E aquele olhar
abriu o seu coração, fê-lo livre, curou-o, deu-lhe uma esperança, uma nova
vida, como a Zaqueu, a Bartimeu, a Maria Madalena, a Pedro e também a cada um
de nós. Mesmo quando não ousamos levantar os olhos para o Senhor, o primeiro a
olhar-nos é sempre Ele. Tal como muitos outros, cada um de nós pode dizer: eu
também sou um pecador, sobre quem Jesus pousou o seu olhar (...) Jesus sabe ver
para além das aparências, para além do pecado, do fracasso ou da nossa
indignidade. Ele vê a dignidade de filho que todos temos, talvez manchada pelo
pecado, mas sempre presente no fundo da nossa alma”. Francisco quis inscrever
no seu brasão esta ideia de aceitação: “Deixemo-nos olhar por Jesus, deixemos
que o seu olhar nos devolva a esperança e a alegria da vida.”
O canto de cisne?
Poucos meses depois do início do pontificado de Francisco, o cardeal
norte-americano que se notabilizava por entrar nos recintos com um manto tão
comprido que necessitava de ser seguido por pajens, foi afastado do cargo que
exercia no tribunal superior de Roma e acabou também desautorizado na demissão
do responsável pela Ordem de Malta (terá dito que foi o Papa a decidir o
afastamento, Francisco negou tal facto e voltou a readmitir o clérigo,
afastando Burke de mais decisões).
Se Burke o pretende atacar, invocando a imutabilidade da doutrina, Francisco
responde com citações do Evangelho e com a lei da Cúria, recorrendo por exemplo
ao Donum Veritatis (o Dom da Verdade), documento em que se reafirma que todos
os católicos devem praticar a submissão da vontade e do intelecto aos
ensinamentos do Papa e que aqueles que estiverem em desacordo nunca o devem
fazer em público. Sobre a relação entre verdade e doutrina, prefere sublinhar
que “a misericórdia é verdadeira”, e é o “primeiro atributo” de Deus. “Deus é
um pai zeloso, atento, pronto para acolher qualquer pessoa que dê um passo ou
que tenha o desejo de dar um passo na direcção de casa. Ele está ali a observar
o horizonte, espera-nos, está já à nossa espera. Nenhum pecado humano por muito
grave que seja pode prevalecer sobre a misericórdia ou limitá-la.”
Por isso, o Papa defende o encontro com todas as pessoas e não apenas as
“justas”, para chegar aos que estão longe, aos “marginalizados” e oferecer-lhes
a salvação. Esta é a atitude que melhor segue os ensinamentos de Jesus,
considera, admitindo que alguns reagem mal a “esta Igreja, que quer ir ao
encontro de quem sofre”, para superar preconceitos, “sem sentir-se perfeita”.
Tudo esta guerrilha de palavras acontece, lembra o professor Paulo Mendes
Pinto, devido à mediatização da figura de Francisco. “Durante séculos, ninguém
sabia o que o Papa fazia ou pensava”, mas hoje ele entra-nos pela casa dentro
todos os dias e faz doutrina, se assim pudermos dizer, “não pelos documentos
eclesiásticos que promulga mas com o que diz a meio de uma viagem de avião,
entre o lugar x e y...”, nota o professor de Ciência das Religiões.
“A Igreja Católica tem congregações e grupos com visões sociais e políticas
muito diferentes, e isso pode ser uma riqueza, mas o Vaticano terá de aprender
a trabalhar num regime mais próximo do que é uma democracia, e com mais
transparência”, defende.
“Foi João XXIII, nos tempos modernos, o primeiro a defender que seria um bem
geral sacudir a poeira imperial que foi caindo, desde Constantino, sobre o
trono de Pedro. O Papa Francisco continua às voltas com essa herança pesada e
paralisante”, lembrava Frei Bento Domingues, num texto de opinião no Público,
no mês passado.
Os ataques contra Francisco, considera, são comparáveis às dificuldades
vividas por Jesus Cristo “ao propor uma mudança de mentalidade aos seus
contemporâneos e aos membros do povo a que pertencia” e que “encontrou uma
grande adesão no mundo dos excluídos e uma resistência implacável entre os
privilegiados”. Mas, “assim como aconteceu com Cristo”, diz Frei Bento,
“nenhuma ameaça o tem paralisado”.
Para Paulo Mendes Pinto, estas acusações de “heresia” soam a “desespero da
oposição dentro do Vaticano” e poderão mesmo ser “o seu canto de cisne”. Se
assim não for, considera, “estamos a dois passos de ter um cisma”. Porque, faz
notar, “o que está em causa não é um Papa que, durante uma homilia, diz alguma
coisa 'fora da caixa'. Toda a sua postura, todo o seu pensamento está a ser
contestado”.
O Papa não se pronunciou sobre estas acusações de forma explícita, “nem é
esperado que o faça”, considera Mendes Pinto. “Creio que estas cartas abertas e
este tipo de posições públicas, a continuarem, irão levar à convocação de um
novo Concílio”, para discutir questões doutrinais no âmbito da sexualidade e da
vida familiar.
E talvez seja mesmo essa a vontade última de Francisco: o Papa que se
atreveu a reconhecer não ter todas as respostas para os problemas do mundo e,
em busca de uma Igreja mais justa e misericordiosa, ousa questionar o seu
próprio papel.
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