Passou-se um ano desde aquela simples " boa
noite" que mudou o mundo. O período de doze meses, vivido de modo intenso
- não só para a vida da Igreja – foi curto para a grande quantidade de novas e
profundas inovações pastorais de Francisco. Estamos numa pequena sala de Santa
Marta. Uma única janela abre-se para um pequeno pátio interno deixando ver um
pequeno ângulo de céu azul. O dia está bonito, primaveril, quente. O Papa surge
de repente, quase bruscamente, de uma porta com ar descontraído, sorrindo. Olha
divertido as várias notas que a ansiedade de um repórter senil colocara sobre
uma mesa. " Será que eles serão úteis? Sim? Tudo bem." O balanço de
um ano? Não, não gosto de balanços. "Faço-os apenas quinzenalmente com o
meu confessor.
Papa Francisco em entrevista, um ano após a eleição
Santo
Padre, muitas vezes telefona a quem lhe pede ajuda. E às vezes não acreditam
que seja o senhor.
Sim, já
aconteceu. Quando alguém liga é porque tem vontade de falar, quer fazer uma
pergunta, pedir um conselho. Quando era padre em Buenos Aires era mais simples.
E para mim continua a ser um hábito. Um serviço. Está dentro de mim. É verdade
que agora não é tão fácil fazê-lo, tendo em conta a quantidade de gente que me
escreve.
Há algum
contacto, um encontro que recorde com
articular afecto?
Uma
senhora viúva, de 80 anos, que perdeu o filho. Escreveu-me. E agora
telefono-lhe todos os meses. Ela está feliz. Faço de padre. Agrada-me.
O
relacionamento com o seu predecessor: alguma vez
pediu algum conselho a Bento
XVI?
Sim. O
papa emérito não é uma estátua num museu. É uma instituição. Não estávamos
habituados. Há 60 ou 70 anos o bispo emérito não existia. Veio após o Concílio
[Vaticano II, 1962-1965]. Hoje é uma instituição. O mesmo deve acontecer para o
papa emérito. Bento é o primeiro e talvez haja outros. Não o sabemos.
Ele é
discreto, humilde, não quer perturbar. Conversámos e decidimos em conjunto que
seria melhor que visse gente, saísse e participasse na vida da Igreja. Uma vez
veio aqui para a bênção da estátua de S. Miguel Arcanjo, depois almoçou na Casa
de Santa Marta, e após o Natal dirigi-lhe o convite para participar no
consistório e ele aceitou. A sua sabedoria é um dom de Deus.
Alguns
quiseram que se tivesse retirado para uma abadia beneditina longe do Vaticano.
Eu pensei nos avós que com a sua sabedoria, os seus conselhos, dão força à
família e não merecem acabar numa casa de repouso.
A sua
maneira de governar a Igreja parece-nos desta maneira: o senhor ouve todos e
decide sozinho. Um pouco como o padre geral dos Jesuítas. O papa é um homem só?
Sim e
não. Entendo o que quer dizer-me. O papa não está só no seu trabalho porque é
acompanhado e aconselhado por muitos. E seria um homem só se decidisse sem
ouvir ou fazendo de conta que ouve. Mas há um momento, quando se trata de
decidir, de colocar a assinatura, em que está sozinho com o seu sentido de
responsabilidade.
O senhor
inovou, criticou algumas atitudes do clero, sacudiu a Cúria. Com algumas
resistências, algumas oposições. A Igreja já mudou o que desejou há um ano?
Em Março
de 2013 não tinha qualquer projecto de mudança da Igreja. Não esperava esta
transferência de diocese, para dizer assim. Comecei a governar procurando
colocar em prática aquilo que emergiu no debate entre os cardeais nas várias
congregações [reuniões ocorridas antes do conclave para a eleição do papa]. No
meu modo de agir espero que o Senhor me dê a inspiração.
Dou-lhe
um exemplo. Falou-se do cuidado espiritual das pessoas que trabalham na Cúria,
e começaram a fazer-se retiros espirituais. Devia dar-se mais importância aos
Exercícios Espirituais anuais: todos têm direito a passar cinco dias em
silêncio e meditação, enquanto que antes, na Cúria, ouviam-se três pregações
por dia e depois alguns continuavam a trabalhar.
A ternura
e a misericórdia são a essência da sua mensagem pastoral…
É do Evangelho.
É o centro do Evangelho. De outra maneira não se compreende Jesus Cristo, a
ternura do Pai que o envia a ouvir-nos, a curar-nos, a salvar-nos.
Mas essa
mensagem foi compreendida? O senhor disse que a “franciscomania” não duraria
muito. Há alguma coisa na sua imagem pública que não lhe agrada?
Agrada-me
estar entre as pessoas, junto de quem sofre, ir às paróquias. Não me agradam as
interpretações ideológicas, uma certa mitologia do papa Francisco. Quando se
diz, por exemplo, que saio à noite do Vaticano para andar de comer de comer aos
sem-abrigo na Via Ottaviano. Nunca me veio isso à ideia. Sigmund Freud dizia,
se não me engano, que em cada idealização há uma agressão. Desenhar o papa como
uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo. O papa
é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos como todos. Uma pessoa
normal.
Tem
nostalgia pela sua Argentina?
A verdade
é que não tenho nostalgia. Desejava ir ver a minha irmã, que está doente, é a
última de nós cinco. Gostaria de vê-la, mas isso não justifica uma viagem à
Argentina: telefono-lhe e isso chega. Não penso ir antes de 2016, porque na
América Latina já estive no Rio de Janeiro. Agora devo ir à Terra Santa, à Ásia
e depois a África.
Há pouco
tempo renovou o passaporte argentino. O senhor é, todavia, um chefe de estado.
Renovei-o
porque estava a caducar.
Desagradaram-lhe
as acusações de marxismo, vindas sobretudo dos EUA, após a publicação da
exortação “A alegria do Evangelho”?
Absolutamente
nada. Nunca partilhei a ideologia marxista porque não é verdadeira, mas conheci
muitas pessoas boas que professavam o marxismo.
Os
escândalos que abalaram a vida da Igreja estão felizmente para trás. No que diz
respeito ao tema delicado dos abusos sobre menores, um apelo assinado, entre
outros, pelos filósofos Besançon e Scruton para que o senhor faça ouvir a sua
voz contra os fanatismos e a má consciência do mundo secularizado que respeita
pouco a infância.
Quero
dizer duas coisas. Os casos de abusos são tremendos porque deixaram feridas
profundíssimas. Bento XVI foi muito corajoso e abriu uma estrada. A Igreja fez
muito a este respeito. Talvez mais que todos. As estatísticas sobre o fenómeno
da violência sobre as crianças são impressionantes, mas mostram também com
clareza que a grande maioria dos abusos ocorre no ambiente familiar e de
proximidade. A Igreja católica é talvez a única instituição pública a que se
movimentou com transparência e responsabilidade. Ninguém fez mais. E no entanto
a Igreja é a única a ser atacada.
Santo
Padre, o senhor diz «os pobres evangelizam-nos». A atenção à pobreza, a marca
mais forte da sua mensagem pastoral, é considerada por alguns observadores como
uma profissão do pauperismo. O Evangelho não condena o bem-estar. E Zaqueu era
rico e caritativo.
O
Evangelho condena o culto do bem-estar. O pauperismo é uma das interpretações
críticas. Na Idade Média havia muitas correntes que advogavam o pauperismo. S.
Francisco teve a genialidade de colocar o tema da pobreza no caminho
evangélico.
Jesus diz
que não se podem servir dois senhores, Deus e a riqueza. E quando formos
julgados no juízo final (Mateus, capítulo 25), contará a nossa proximidade à
pobreza. A pobreza distancia da idolatria, abre a porta à Providência. Zaqueu
devolve metade da sua riqueza aos pobres. E a quem tem os celeiros cheios do
próprio egoísmo, o Senhor, no fim, pede-lhe contas. O que eu penso da pobreza
expressei-o bem na “Evangelii Gaudium”.
O senhor
apontou na globalização, sobretudo financeira, alguns dos males que agridem a
humanidade. Mas a globalização arrancou da indigência milhões de pessoas. Deu
esperança, um sentimento que não deve confundir-se com optimismo.
É verdade, a
globalização salvou da pobreza muitas pessoas, mas condenou outras tantas a
morrer de fome, porque com este sistema económico torna-se selectiva. A
globalização que a Igreja concebe assemelha-se não a uma esfera, na qual cada
ponto é equidistante do centro e na qual, portanto, se perde a particularidade
dos povos, mas a um poliedro, com as suas diferentes faces, através do qual
cada povo conserva a própria cultura, língua, religião, identidade. A actual
globalização “esférica” económica, e sobretudo financeira, produz um pensamento
único, um pensamento débil. No centro não está a pessoa humana, só o dinheiro.
O tema da
família é central na actividade do conselho dos oito cardeais. Desde a exortação
“Familiaris consortio”, de João Paulo II, mudaram muitas coisas. Estão
programados dois sínodos. Esperam-se grandes novidades. O senhor disse dos
divorciados: não vamos condená-los, vamos ajudá-los.
É um
longo caminho que a Igreja deve fazer. Um processo que o Senhor quer. Três
meses após a minha eleição, foram-me colocados os temas para o sínodo, tendo-se
proposto discutir a contribuição de Jesus para o homem contemporâneo. Mas no
fim, gradualmente – o que para mim foram sinais da vontade de Deus – optou-se
debater a família, que atravessa uma crise muito séria. É difícil formá-la. Os
jovens casam-se pouco. Há muitas famílias separadas nas quais o projecto de vida
comum fracassou. Os filhos sofrem muito.
Nós
devemos dar uma resposta. E isso que o consistório e o sínodo estão a fazer. É
preciso evitar ficar pela superfície. A tentação de resolver cada problema com
a casuística é um erro, uma simplificação de coisas profundas, como faziam os
fariseus, uma teologia muito superficial. É à luz da reflexão profunda que se
podem enfrentar seriamente as situações particulares, mesmo aquelas dos
divorciados, com profundidade pastoral.
Porque é
que o relatório do cardeal Walter Kasper no último consistório (um abismo entre
doutrina sobre o matrimónio e a família e a vida real de muitos cristãos)
dividiu tanto os membros do Colégio Cardinalício? Como pensa que a Igreja pode
percorrer estes dois anos de caminho fatigante e chegar a um consenso amplo e
sereno? Se a doutrina é sólida, porque é que é necessário o debate?
O cardeal
Kasper fez uma apresentação belíssima e profunda, que será em breve publicada
em alemão, em que aborda cinco pontos – o quinto era o dos segundos
matrimónios. Ficaria preocupado se no consistório não tivesse havido uma
discussão intensa, porque não teria servido para nada.
Os
cardeais sabiam que podiam dizer aquilo que queriam, e apresentaram muitos
pontos de vista distintos, que nos enriqueceram. As discussões abertas e
fraternas fazem crescer o pensamento teológico e pastoral. Disto não tenho
medo, antes o procuro.
Num
passado recente era habitual o apelo aos chamados «valores não negociáveis»,
sobretudo na bioética e na moral sexual. O senhor não retomou esta fórmula. Os
princípios doutrinais e morais não mudaram. Esta escolha quererá talvez indicar
um estilo menos perceptivo e mais respeitador da consciência pessoal?
Nunca
entendi a expressão «valores não negociáveis». Os valores são valores, e basta,
não posso dizer que entre os dedos de uma mão há um que é menos útil do que
outro. Por isso não entendo em que sentido podem haver valores negociáveis. O
que devia dizer sobre o tema da vida, escrevi-o na exortação “Evangelii Gaudium”.
Muitos
países legislam as uniões civis. É um caminho que a Igreja pode compreender? E
até que ponto?
O
matrimónio é entre um homem e uma mulher. Os estados laicos querem justificar
as uniões civis para legislar diferentes situações de convivência, motivados
pela exigência de legislar aspectos económicos entre as pessoas, como por
exemplo assegurar a assistência na saúde. Trata-se de acordos de convivência de
vária natureza, de que não saberia elencar as diferentes formas. É preciso ver
os diferentes casos e avaliá-los na sua variedade.
Como será
promovido o papel da mulher na Igreja?
Também
aqui a casuística não ajuda. É verdade que a mulher pode e deve estar mais
presente nos lugares de decisão da Igreja. Mas chamarei a isto uma promoção de
tipo funcional. Só assim não se faz muito caminho.
É preciso
sobretudo pensar que a Igreja tem o artigo feminino «a»: é feminina desde as
origens. O grande teólogo Urs von Balthasar trabalhou muito sobre este tema:
princípio mariano guia a Igreja juntamente com o princípio petrino. A Virgem
Maria é mais importante do que qualquer bispo e de qualquer apóstolo. O
aprofundamento teologal está em curso. O cardeal Rylko, com o Conselho dos
Leigos, está a trabalhar nesta direcção com muitas mulheres especialistas em
várias matérias.
Meio
século após a encíclica “Humanae vitae”, de Paulo VI, a Igreja pode retomar o
tema do controlo dos nascimentos. O cardeal Martini, seu confrade, estava
convicto de que tinha chegado o momento.
Tudo
depende de como é interpretada a “Humanae vitae”. O próprio Paulo VI, no fim,
recomendava aos confessores muita misericórdia, atenção às situações concretas.
Mas a sua genialidade foi profética, teve a coragem de ir contra a maioria, de
defender a disciplina moral, de exercitar um travão cultural, de opor-se ao neomalthusianismo presente e futuro.
A questão
não está em mudar a doutrina, mas de se ter mais profundidade e fazer com que a
pastoral tenha em conta as situações e do que para as pessoas é possível fazer.
Também disto se falará no caminho do sínodo.
A ciência
evolui e redesenha os confins da vida. Faz sentido prolongar artificialmente a
vida em estado vegetativo? O testamento biológico pode ser uma solução?
Não sou
especialista nos argumentos biológicos. E temo que cada minha frase possa ser
equivocada. A doutrina tradicional da Igreja diz que ninguém é obrigado a usar
meios extraordinários quando se sabe que está numa fase terminal. Na minha
pastoral, nestes casos, aconselhei sempre os cuidados paliativos. Em casos mais
específicos é bom recorrer, se necessário, ao conselho dos especialistas.
A próxima
viagem à Terra Santa levará a um acordo de intercomunhão com os ortodoxos que
Paulo VI, há 50 anos, quase chegou a assinar com o patriarca Atenágoras?
Estamos
todos impacientes por obter resultados “fechados”. Mas o caminho da unidade com
os ortodoxos quer dizer sobretudo caminhar e trabalhar conjuntamente. Aos
cursos de catequese em Buenos Aires iam diversos ortodoxos. Eu passava o Natal
e o 6 de Janeiro com os seus bispos, que por vezes pediam conselho aos nossos
departamentos diocesanos.
Não sei
se é verdadeiro o episódio que se conta de Atenágoras, que teria proposto a
Paulo VI que caminhassem juntos e enviassem todos os teólogos para uma ilha,
para discutirem entre eles. A teologia ortodoxa é muito rica. E penso que eles
têm actualmente grandes teólogos. A sua visão da Igreja e da sinodalidade é
maravilhosa.
Dentro de
alguns anos a China será a maior potência mundial, com a qual o Vaticano não
tem relações. Matteo Ricci era jesuíta, como o senhor.
Estamos
próximos da China. Enviei uma carta ao presidente Xi Jinping quando foi eleito,
três dias depois de mim. E ele respondeu-me. Há relações. É um grande povo ao
qual quero bem.
Porque é
que o Santo Padre nunca fala da Europa? O que é que não o convence no projecto
europeu?
Lembra-se
do dia em que falei da Ásia? O que é que eu disse então? Eu não falei nem da
Ásia, nem da África, nem da Europa. Só da América Latina quando estive no
Brasil e quando devo receber a Comissão para a América Latina. Não é ainda a
ocasião para falar da Europa. Ela virá.
Que livro
está a ler actualmente?
“Pedro e
Madalena”, de Damiano Marzotto, sobre a dimensão feminina da Igreja. Um livro
belíssimo.
E não
consegue ver nenhum filme, que é outra das suas paixões? “A grande beleza”
venceu o Óscar [para melhor filme em língua estrangeira]. Vai vê-lo?
Não sei.
O último filme que vi foi “A vida é bela”, de Benigni. E antes revi “A estrada”
(“La strada”), de Fellini. Uma obra-prima. Também gostava de “Wajda”…
S.
Francisco teve uma juventude livre de preocupações. Pergunto-lhe: nunca
namorou?
No livro
“Papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio” conto que tive uma namorada
aos 17 anos. E digo o mesmo no livro “O céu e a terra”, que escrevi com [o
rabi] Abraham Skorka. No seminário uma rapariga fez-me voltar a cabeça durante
uma semana.
E como
acabou, se não é indiscrição?
Eram
coisas de jovens. Falei disso com o meu confessor.(Grande sorriso)
Obrigado
Padre Santo.
Eu é que agradeço.
Entrevista do Santo Padre ao director do Corriere della Sera, Ferruccio de Bortoli, publicada em 5 de Março de 2014, neste jornal.
Tradução directa e através de diversos sites.