quinta-feira, 6 de março de 2014

Entrevista concedida pelo papa Francisco a Ferruccio de Bortoli


Passou-se um ano desde aquela simples " boa noite" que mudou o mundo. O período de doze meses, vivido de modo intenso - não só para a vida da Igreja – foi curto para a grande quantidade de novas e profundas inovações pastorais de Francisco. Estamos numa pequena sala de Santa Marta. Uma única janela abre-se para um pequeno pátio interno deixando ver um pequeno ângulo de céu azul. O dia está bonito, primaveril, quente. O Papa surge de repente, quase bruscamente, de uma porta com ar descontraído, sorrindo. Olha divertido as várias notas que a ansiedade de um repórter senil colocara sobre uma mesa. " Será que eles serão úteis? Sim? Tudo bem." O balanço de um ano? Não, não gosto de balanços. "Faço-os apenas quinzenalmente com o meu confessor.

Papa Francisco em entrevista, um ano após a eleição

Santo Padre, muitas vezes telefona a quem lhe pede ajuda. E às vezes não acreditam que seja o senhor.

Sim, já aconteceu. Quando alguém liga é porque tem vontade de falar, quer fazer uma pergunta, pedir um conselho. Quando era padre em Buenos Aires era mais simples. E para mim continua a ser um hábito. Um serviço. Está dentro de mim. É verdade que agora não é tão fácil fazê-lo, tendo em conta a quantidade de gente que me escreve.

Há algum contacto, um encontro que recorde com
articular afecto?

Uma senhora viúva, de 80 anos, que perdeu o filho. Escreveu-me. E agora telefono-lhe todos os meses. Ela está feliz. Faço de padre. Agrada-me.

O relacionamento com o seu predecessor: alguma vez
pediu algum conselho a Bento XVI?

Sim. O papa emérito não é uma estátua num museu. É uma instituição. Não estávamos habituados. Há 60 ou 70 anos o bispo emérito não existia. Veio após o Concílio [Vaticano II, 1962-1965]. Hoje é uma instituição. O mesmo deve acontecer para o papa emérito. Bento é o primeiro e talvez haja outros. Não o sabemos.
Ele é discreto, humilde, não quer perturbar. Conversámos e decidimos em conjunto que seria melhor que visse gente, saísse e participasse na vida da Igreja. Uma vez veio aqui para a bênção da estátua de S. Miguel Arcanjo, depois almoçou na Casa de Santa Marta, e após o Natal dirigi-lhe o convite para participar no consistório e ele aceitou. A sua sabedoria é um dom de Deus.
Alguns quiseram que se tivesse retirado para uma abadia beneditina longe do Vaticano. Eu pensei nos avós que com a sua sabedoria, os seus conselhos, dão força à família e não merecem acabar numa casa de repouso.

A sua maneira de governar a Igreja parece-nos desta maneira: o senhor ouve todos e decide sozinho. Um pouco como o padre geral dos Jesuítas. O papa é um homem só?

Sim e não. Entendo o que quer dizer-me. O papa não está só no seu trabalho porque é acompanhado e aconselhado por muitos. E seria um homem só se decidisse sem ouvir ou fazendo de conta que ouve. Mas há um momento, quando se trata de decidir, de colocar a assinatura, em que está sozinho com o seu sentido de responsabilidade.

O senhor inovou, criticou algumas atitudes do clero, sacudiu a Cúria. Com algumas resistências, algumas oposições. A Igreja já mudou o que desejou há um ano?

Em Março de 2013 não tinha qualquer projecto de mudança da Igreja. Não esperava esta transferência de diocese, para dizer assim. Comecei a governar procurando colocar em prática aquilo que emergiu no debate entre os cardeais nas várias congregações [reuniões ocorridas antes do conclave para a eleição do papa]. No meu modo de agir espero que o Senhor me dê a inspiração.
Dou-lhe um exemplo. Falou-se do cuidado espiritual das pessoas que trabalham na Cúria, e começaram a fazer-se retiros espirituais. Devia dar-se mais importância aos Exercícios Espirituais anuais: todos têm direito a passar cinco dias em silêncio e meditação, enquanto que antes, na Cúria, ouviam-se três pregações por dia e depois alguns continuavam a trabalhar.

A ternura e a misericórdia são a essência da sua mensagem pastoral…

É do Evangelho. É o centro do Evangelho. De outra maneira não se compreende Jesus Cristo, a ternura do Pai que o envia a ouvir-nos, a curar-nos, a salvar-nos.

Mas essa mensagem foi compreendida? O senhor disse que a “franciscomania” não duraria muito. Há alguma coisa na sua imagem pública que não lhe agrada?

Agrada-me estar entre as pessoas, junto de quem sofre, ir às paróquias. Não me agradam as interpretações ideológicas, uma certa mitologia do papa Francisco. Quando se diz, por exemplo, que saio à noite do Vaticano para andar de comer de comer aos sem-abrigo na Via Ottaviano. Nunca me veio isso à ideia. Sigmund Freud dizia, se não me engano, que em cada idealização há uma agressão. Desenhar o papa como uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo. O papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos como todos. Uma pessoa normal.

Tem nostalgia pela sua Argentina?

A verdade é que não tenho nostalgia. Desejava ir ver a minha irmã, que está doente, é a última de nós cinco. Gostaria de vê-la, mas isso não justifica uma viagem à Argentina: telefono-lhe e isso chega. Não penso ir antes de 2016, porque na América Latina já estive no Rio de Janeiro. Agora devo ir à Terra Santa, à Ásia e depois a África.

Há pouco tempo renovou o passaporte argentino. O senhor é, todavia, um chefe de estado.

Renovei-o porque estava a caducar.

Desagradaram-lhe as acusações de marxismo, vindas sobretudo dos EUA, após a publicação da exortação “A alegria do Evangelho”?

Absolutamente nada. Nunca partilhei a ideologia marxista porque não é verdadeira, mas conheci muitas pessoas boas que professavam o marxismo.

Os escândalos que abalaram a vida da Igreja estão felizmente para trás. No que diz respeito ao tema delicado dos abusos sobre menores, um apelo assinado, entre outros, pelos filósofos Besançon e Scruton para que o senhor faça ouvir a sua voz contra os fanatismos e a má consciência do mundo secularizado que respeita pouco a infância.

Quero dizer duas coisas. Os casos de abusos são tremendos porque deixaram feridas profundíssimas. Bento XVI foi muito corajoso e abriu uma estrada. A Igreja fez muito a este respeito. Talvez mais que todos. As estatísticas sobre o fenómeno da violência sobre as crianças são impressionantes, mas mostram também com clareza que a grande maioria dos abusos ocorre no ambiente familiar e de proximidade. A Igreja católica é talvez a única instituição pública a que se movimentou com transparência e responsabilidade. Ninguém fez mais. E no entanto a Igreja é a única a ser atacada.

Santo Padre, o senhor diz «os pobres evangelizam-nos». A atenção à pobreza, a marca mais forte da sua mensagem pastoral, é considerada por alguns observadores como uma profissão do pauperismo. O Evangelho não condena o bem-estar. E Zaqueu era rico e caritativo.

O Evangelho condena o culto do bem-estar. O pauperismo é uma das interpretações críticas. Na Idade Média havia muitas correntes que advogavam o pauperismo. S. Francisco teve a genialidade de colocar o tema da pobreza no caminho evangélico.
Jesus diz que não se podem servir dois senhores, Deus e a riqueza. E quando formos julgados no juízo final (Mateus, capítulo 25), contará a nossa proximidade à pobreza. A pobreza distancia da idolatria, abre a porta à Providência. Zaqueu devolve metade da sua riqueza aos pobres. E a quem tem os celeiros cheios do próprio egoísmo, o Senhor, no fim, pede-lhe contas. O que eu penso da pobreza expressei-o bem na “Evangelii Gaudium”.

O senhor apontou na globalização, sobretudo financeira, alguns dos males que agridem a humanidade. Mas a globalização arrancou da indigência milhões de pessoas. Deu esperança, um sentimento que não deve confundir-se com optimismo.

É verdade, a globalização salvou da pobreza muitas pessoas, mas condenou outras tantas a morrer de fome, porque com este sistema económico torna-se selectiva. A globalização que a Igreja concebe assemelha-se não a uma esfera, na qual cada ponto é equidistante do centro e na qual, portanto, se perde a particularidade dos povos, mas a um poliedro, com as suas diferentes faces, através do qual cada povo conserva a própria cultura, língua, religião, identidade. A actual globalização “esférica” económica, e sobretudo financeira, produz um pensamento único, um pensamento débil. No centro não está a pessoa humana, só o dinheiro.



O tema da família é central na actividade do conselho dos oito cardeais. Desde a exortação “Familiaris consortio”, de João Paulo II, mudaram muitas coisas. Estão programados dois sínodos. Esperam-se grandes novidades. O senhor disse dos divorciados: não vamos condená-los, vamos ajudá-los.

É um longo caminho que a Igreja deve fazer. Um processo que o Senhor quer. Três meses após a minha eleição, foram-me colocados os temas para o sínodo, tendo-se proposto discutir a contribuição de Jesus para o homem contemporâneo. Mas no fim, gradualmente – o que para mim foram sinais da vontade de Deus – optou-se debater a família, que atravessa uma crise muito séria. É difícil formá-la. Os jovens casam-se pouco. Há muitas famílias separadas nas quais o projecto de vida comum fracassou. Os filhos sofrem muito.
Nós devemos dar uma resposta. E isso que o consistório e o sínodo estão a fazer. É preciso evitar ficar pela superfície. A tentação de resolver cada problema com a casuística é um erro, uma simplificação de coisas profundas, como faziam os fariseus, uma teologia muito superficial. É à luz da reflexão profunda que se podem enfrentar seriamente as situações particulares, mesmo aquelas dos divorciados, com profundidade pastoral.

Porque é que o relatório do cardeal Walter Kasper no último consistório (um abismo entre doutrina sobre o matrimónio e a família e a vida real de muitos cristãos) dividiu tanto os membros do Colégio Cardinalício? Como pensa que a Igreja pode percorrer estes dois anos de caminho fatigante e chegar a um consenso amplo e sereno? Se a doutrina é sólida, porque é que é necessário o debate?

O cardeal Kasper fez uma apresentação belíssima e profunda, que será em breve publicada em alemão, em que aborda cinco pontos – o quinto era o dos segundos matrimónios. Ficaria preocupado se no consistório não tivesse havido uma discussão intensa, porque não teria servido para nada.
Os cardeais sabiam que podiam dizer aquilo que queriam, e apresentaram muitos pontos de vista distintos, que nos enriqueceram. As discussões abertas e fraternas fazem crescer o pensamento teológico e pastoral. Disto não tenho medo, antes o procuro.

Num passado recente era habitual o apelo aos chamados «valores não negociáveis», sobretudo na bioética e na moral sexual. O senhor não retomou esta fórmula. Os princípios doutrinais e morais não mudaram. Esta escolha quererá talvez indicar um estilo menos perceptivo e mais respeitador da consciência pessoal?

Nunca entendi a expressão «valores não negociáveis». Os valores são valores, e basta, não posso dizer que entre os dedos de uma mão há um que é menos útil do que outro. Por isso não entendo em que sentido podem haver valores negociáveis. O que devia dizer sobre o tema da vida, escrevi-o na exortação “Evangelii Gaudium”.

Muitos países legislam as uniões civis. É um caminho que a Igreja pode compreender? E até que ponto?
O matrimónio é entre um homem e uma mulher. Os estados laicos querem justificar as uniões civis para legislar diferentes situações de convivência, motivados pela exigência de legislar aspectos económicos entre as pessoas, como por exemplo assegurar a assistência na saúde. Trata-se de acordos de convivência de vária natureza, de que não saberia elencar as diferentes formas. É preciso ver os diferentes casos e avaliá-los na sua variedade.

Como será promovido o papel da mulher na Igreja?

Também aqui a casuística não ajuda. É verdade que a mulher pode e deve estar mais presente nos lugares de decisão da Igreja. Mas chamarei a isto uma promoção de tipo funcional. Só assim não se faz muito caminho.
É preciso sobretudo pensar que a Igreja tem o artigo feminino «a»: é feminina desde as origens. O grande teólogo Urs von Balthasar trabalhou muito sobre este tema: princípio mariano guia a Igreja juntamente com o princípio petrino. A Virgem Maria é mais importante do que qualquer bispo e de qualquer apóstolo. O aprofundamento teologal está em curso. O cardeal Rylko, com o Conselho dos Leigos, está a trabalhar nesta direcção com muitas mulheres especialistas em várias matérias.

Meio século após a encíclica “Humanae vitae”, de Paulo VI, a Igreja pode retomar o tema do controlo dos nascimentos. O cardeal Martini, seu confrade, estava convicto de que tinha chegado o momento.

Tudo depende de como é interpretada a “Humanae vitae”. O próprio Paulo VI, no fim, recomendava aos confessores muita misericórdia, atenção às situações concretas. Mas a sua genialidade foi profética, teve a coragem de ir contra a maioria, de defender a disciplina moral, de exercitar um travão cultural, de opor-se ao neomalthusianismo presente e futuro.
A questão não está em mudar a doutrina, mas de se ter mais profundidade e fazer com que a pastoral tenha em conta as situações e do que para as pessoas é possível fazer. Também disto se falará no caminho do sínodo.

A ciência evolui e redesenha os confins da vida. Faz sentido prolongar artificialmente a vida em estado vegetativo? O testamento biológico pode ser uma solução?

Não sou especialista nos argumentos biológicos. E temo que cada minha frase possa ser equivocada. A doutrina tradicional da Igreja diz que ninguém é obrigado a usar meios extraordinários quando se sabe que está numa fase terminal. Na minha pastoral, nestes casos, aconselhei sempre os cuidados paliativos. Em casos mais específicos é bom recorrer, se necessário, ao conselho dos especialistas.

A próxima viagem à Terra Santa levará a um acordo de intercomunhão com os ortodoxos que Paulo VI, há 50 anos, quase chegou a assinar com o patriarca Atenágoras?

Estamos todos impacientes por obter resultados “fechados”. Mas o caminho da unidade com os ortodoxos quer dizer sobretudo caminhar e trabalhar conjuntamente. Aos cursos de catequese em Buenos Aires iam diversos ortodoxos. Eu passava o Natal e o 6 de Janeiro com os seus bispos, que por vezes pediam conselho aos nossos departamentos diocesanos.
Não sei se é verdadeiro o episódio que se conta de Atenágoras, que teria proposto a Paulo VI que caminhassem juntos e enviassem todos os teólogos para uma ilha, para discutirem entre eles. A teologia ortodoxa é muito rica. E penso que eles têm actualmente grandes teólogos. A sua visão da Igreja e da sinodalidade é maravilhosa.

Dentro de alguns anos a China será a maior potência mundial, com a qual o Vaticano não tem relações. Matteo Ricci era jesuíta, como o senhor.

Estamos próximos da China. Enviei uma carta ao presidente Xi Jinping quando foi eleito, três dias depois de mim. E ele respondeu-me. Há relações. É um grande povo ao qual quero bem.

Porque é que o Santo Padre nunca fala da Europa? O que é que não o convence no projecto europeu?

Lembra-se do dia em que falei da Ásia? O que é que eu disse então? Eu não falei nem da Ásia, nem da África, nem da Europa. Só da América Latina quando estive no Brasil e quando devo receber a Comissão para a América Latina. Não é ainda a ocasião para falar da Europa. Ela virá.

Que livro está a ler actualmente?

“Pedro e Madalena”, de Damiano Marzotto, sobre a dimensão feminina da Igreja. Um livro belíssimo.

E não consegue ver nenhum filme, que é outra das suas paixões? “A grande beleza” venceu o Óscar [para melhor filme em língua estrangeira]. Vai vê-lo?
Não sei. O último filme que vi foi “A vida é bela”, de Benigni. E antes revi “A estrada” (“La strada”), de Fellini. Uma obra-prima. Também gostava de “Wajda”…

S. Francisco teve uma juventude livre de preocupações. Pergunto-lhe: nunca namorou?

No livro “Papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio” conto que tive uma namorada aos 17 anos. E digo o mesmo no livro “O céu e a terra”, que escrevi com [o rabi] Abraham Skorka. No seminário uma rapariga fez-me voltar a cabeça durante uma semana.

E como acabou, se não é indiscrição?

Eram coisas de jovens. Falei disso com o meu confessor.(Grande sorriso)

Obrigado Padre Santo.


Eu é que agradeço.

Entrevista do Santo Padre ao director do Corriere della Sera, Ferruccio de Bortoli, publicada em 5 de Março de 2014, neste jornal.
Tradução directa e através de diversos sites.


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