segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Abandonar o próximo à sua sorte








O livro dos Actos dos Apóstolos (4,32ss) explica como viviam os primeiros cristãos:

[A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles gozavam de grande aceitação.

Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e colocavam-no aos pés dos Apóstolos; depois, era distribuído a cada um conforme a sua necessidade.]


Diversos grupos eclesiais e associações de fiéis têm tentado viver de acordo com esta memória da Sagrada Escritura. O que é tão difícil nos nossos dias como foi no templo dos Apóstolos, pois logo a seguir a estes versículos vem o relato de um tal Ananias que tentou enganar os demais, fazendo-se passar por benemérito.

Eu tenho alguma dificuldade em entender este texto de modo literal, uma vez que o cristão deve estar virado para fora, isto é, partilhar com os outros e não apenas com os do seu grupo. Maior é a dificuldade que tenho em entender quando nem esta proximidade de vizinhança e a comunhão de sentimentos e credo religioso conduzem à partilha espiritual e material.

Penso, em primeiro lugar, nos padres idosos que prescindiram de formar uma família onde poderiam encontrar calor e acolhimento, ao longo da vida, e cuidados no tempo da velhice. Penso nos padres que ao Domingo presidem à missa, quantas vezes às várias missas, nas diversas comunidades que foram entregues ao seu pastoreio e, no final da celebração enviam os fiéis – Ide em paz – antes de eles saírem a correr e vão almoçar sozinhos, porque todos os outros têm as suas famílias e têm que se despachar, nem tempo têm para convidar o padre, que vai almoçar sozinho.

Penso nas pessoas que se dedicam a uma paróquia ou a uma comunidade e depois são ignoradas ou ostracizadas pelos que deveriam ser o seu próximo.

Penso nas lutas dentro das comunidades cristãs. Como os grupos se afrontam, por exemplo, quando há uma alternância de pároco. Uns guiados por sentimentos de seguidismo, outros tentando fortalecer os seus grupos, ditos eclesiais. Penso como alguns preferem prejudicar os da sua comunidade, negociando com estranhos, com receio que os da sua comunidade, mas não do seu grupo, adquiram força ou preponderância, que sejam considerados mais santos!

Penso nos que se dedicam à maledicência, ao boato e ao falso testemunho, sem terem provas, muitas vezes sem objectivos, apenas por leviandade, e assim destroem vidas de irmãos.

Penso num homem leigo que dedicou parte da vida a uma comunidade paroquial e termina a vida sozinho numa ala hospitalar sem qualquer cuidado da comunidade que serviu.

Penso nos padres e leigos caluniados dentro das suas comunidades e penso nos que são injustamente encobertos dos seus crimes.

Cristão não é o que batendo a mão no peito grita a sua fé eterna e inabalável. Cristão é o que proclama o Evangelho e mostra o Reino dos Céus com o testemunho da sua vida quotidiana.

Penso nas famílias das crianças da catequese que, convencidas que os catequistas são trabalhadores remunerados, nem uma flor oferecem a quem tanto dá aos seus filhos ou netos.

Penso que a Nova Evangelização tem de prosseguir, dentro das mais básicas comunidades eclesiais.

Cada comunidade cristã, família, paróquia, associação, congregação, ordem religiosa, cabido, tem de ter como ponto de partida e objectivo a evangelização, ser comunidade evangelizadora que se evangeliza.

Como pode ser possível um fiel dentro da sua comunidade não ter dinheiro para comer e alguns irmãos terem tanto para esbanjar? Como pode acontecer um fiel cegar ou partir as pernas e ter de pedir esmola na rua, enquanto a paróquia e os irmãos paroquianos gastam em luxos? Como é possível a paróquia e outras comunidades eclesiais marginalizarem os seus irmãos que são diferentes, direi mesmo infames, (porque não?), espicaçando-os como se fossem bestas, em vez de lhes estenderem a mão, de os ajudarem, de os edificarem.

Como é possível alguém dizer-se cristão e usar a Igreja para ganhar poleiro, espezinhar os irmãos, abafar a Palavra do Evangelho e a dos pobres e mais frágeis, nos quais vive de modo peculiar Nosso Senhor Jesus Cristo?

É tempo de repensarmos a nossa vivência de cristãos e de católicos. Conduzirmos a mudança dos tempos nas comunidades de base, ao mesmo tempo que o papa o faz na Sé Apostólica.

Orlando de Carvalho

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