terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Vítor





Quando conheci o Vítor, há uns anos atrás, antipatizei com ele quase de imediato, uma antipatia como certos amores, à primeira vista. O rapaz era inconveniente, vestia-se de modo estranho, falava alto, gesticulava muito, ria-se ruidosamente. Ele era particularmente inconveniente e mexia nos seus interlocutores. Eu nunca tinha travado proximidade com cegos. Foi a minha primeira experiência. Todavia, ainda que sendo cego, devia comportar-se com a mesma dignidade das outras pessoas, se queria ser admitido ao convívio, dizia a minha voz interior.

Foi na comunidade paroquial de S. Domingos de Benfica que nos conhecemos onde, entre muitos outros místeres, eu era catequista. O convívio com o Vítor foi inevitável, até porque nunca exclui pessoas dos meus círculos baseado em gostos, simpatias, raças, debilidades. Fui mesmo catequista do Vítor. Percebi lentamente que o mundo do Vítor era muito diferente do meu, em certa medida, eu tinha tudo e ele não tinha nada. Ele fazia um esforço sobre-humano para manter o diálogo e o convívio. Comecei a perceber como devia ser triste ser cego, sem luz, sem cor, sem meio de defesa contra qualquer agressor, pessoa, mosca ou objecto a cair na sua direcção.

Senti inevitável uma aproximação e um estender de mão.

O Vítor continuava a ser aborrecido nas suas conversas e eu sentia um remorso enorme por o achar aborrecido, lutei contra mim: que catequista seria eu sem me doar todo àquela criança que já se tornara adolescente?

Quando o tempo chegou e tive Vítor no meu grupo de catekese passei a entendê-lo de modo mais cristão, aprendi muito acerca dele, em especial o que não era visível, por causa da sua impertinência. Eu, que nunca tinha tido contacto com um cego, comecei a entender o mundo dos invisuais.

O que me parecia presunção, percebi depois que não passava de uma forma de os cegos, neste caso o Vítor, não se sentirem inferiorizados. Ele usava constantemente o verbo ‘ver’. E falava-me das cores. A cor do meu carro, as cores das roupas, cores de tudo e mais alguma coisa. O Vítor memorizava as cores e outros dados das conversas que tinha ou escutava e esforçava-se por se sentir à altura de dialogar, sem que o achassem ‘o coitadinho do ceguinho’.

O Vítor precisava de me tocar para me ‘ver’, para saber como eram as barbas que tinha ouvido dizer que eu tinha, para ‘ver’ as fisionomias das pessoas. À medida que ganhava mais intimidade com as pessoas, perguntava-lhes pormenores sobre o ambiente e a paisagem, sobre como eram as pessoas. O rapaz não sabia se estava bem abotoado ou se tinha nódoas na roupa. Para além destas limitações, havia outras questões condicionantes da sua vida e da imagem que transmitia.

A família era grande e parecia que havia sempre alguém para ‘cuidar’ do Vítor, mas na realidade não era assim. O pai era um militar reformado, bêbedo, mal formado e violento. A mãe abandonara o lar e juntara-se com outro homem, devido à impossibilidade de aturar o marido. A mãe tinha, pois, partido, o pai tinha outros interesses, a irmão mais novo, era… mais novo, as irmãs já estavam casadas.

Eu criei amizade com o Vítor. Ele foi para retiros da catekese com o restante grupo, sob a minha custódia. Preparado por mim, fez leituras em missas, a partir de uma Bíblia em Braille, inclusivamente na Vigília Pascal.

O tempo passou. O Vítor criou amizade com outros jovens cegos. Passava fins-de-semana com esses novos amigos que conhecera no Centro para Cegos que frequentava. A vida afastou-nos, perdi-o. Lembro-me muitas vezes daquele jovem cego, sinto remorso pelos sentimentos antipatia e aborrecimento que tive em relação a ele e de que nunca ninguém suspeitou. A partir de certo momento, deixei completamente de o ver. A dificuldade que tive em entender como uma pessoa tão limitada podia ser tão alegre, mantenho-a quase integralmente.



Um dia, conversávamos, e o Vítor falou-me da sua doença. Ele conseguia ver sombras, ou pelo menos distinguir a luz da escuridão. O mal teve origem no seu parto prematuro e na sequente estadia em incubadora. A doença chama-se retinopatia de prematuridade e é agravada pelas altas de concentrações de oxigénio fornecidas ao bebé. Era seguido há muito tempo (desde sempre?) num instituto oftalmológico famoso, em Lisboa, e o médico dissera à família que havia uma cirurgia que podia melhorar a situação, mas que apenas podia ser feita na fase adulta do doente. Inexplicavelmente o início dessa fase adulta ia sendo adiado dos 12 para os 15 anos, para os 18, e não se via fim. O Vítor contava isto com alguma tristeza, mas com um sorriso no rosto.

Poderia eu ajudar o Vítor? Ele já tinha atingido a idade adulta legal, os 18 anos. Propus acompanhá-lo a uma consulta ao Instituto Oftalmológico, ao seu médico. O jovem ficou encantado com a ideia e o pai não se opôs. No dia e à hora marcados, lá fomos. Tudo aconteceu de modo muito triste. O médico comportou-se como perfeita abécula. Não foi capaz de nos dizer que hipóteses havia de fazer a tal cirurgia, ou outro tratamento, se devíamos continuar ou não a pensar no assunto, enfim, uma nulidade médica e humana. Nem foi capaz de dizer que o assunto o ultrapassava e que ignorava o que responder. Concluiu que o Vítor devia continuar a passar lá na consulta. Falei-lhe na disponibilidade para pagar um tratamento caro, até porque fazíamos parte de uma comunidade (paroquial) que poderia ser suscitada a colaborar numa angariação de fundos. Nesta parte o médico mostrou-se impressionado: sim, é bom que vão arranjando dinheiro, se puderem. Mas nem chegou a dizer para quê. Uma conversa de generalidades, como se de café fosse.

Voltámos da consulta tão pobres e ignorantes como tínhamos ido. Contudo, algumas coisas mudaram. O pai do Vítor mudou de ideias e ficou zangado por alguém o estar a substituir no que entendia como funções paternais. A habitual falta de entendimento do senhor: ele concordara e o filho já era maior.
Mas tudo foi há tanto tempo! Anos! Penso muitas vezes no Vítor, mas que posso fazer?


Até há uns dias.

Era um fim de tarde natalício, escuro como noite, e com poucas pessoas na rua por causa do frio, do vento, da chuva, já nem havia a motivação das compras, porque já passara o dia 25. No passeio largo em que eu caminhava, ao longe, percebi um casal de cegos. Bem ou mal, tenho sempre muito cuidado quando encontro cegos, no sentido de não lhes perturbar o caminho que eles normalmente tão bem conhecem. À medida que nos aproximávamos, pareceu-me que era o Vítor com uma jovem mulher. Caminhavam alegre e desajeitadamente, sem o sentido das conveniências, como eu sempre conhecera o Vítor. Além das bengalas para cegos, cada um com a sua, levavam alguns sacos e malas. Conversavam alegremente, naquela alegria tão difícil de entender. Até estarmos os três sozinhos naquele passeio imensamente largo. Eu via-os e sabia que eles ali estavam, mas eu permanecia quieto e calado, indeciso. Queria falar, mas hesitava: que coisas velhas iria eu desenterrar? Eles podiam seguir o seu caminho sem nunca imaginarem o encontro que eu tivera. Sim, que eu tivera, porque eles não tinham tido encontro algum, eles não viam, nem me viam. Mas que justiça era esta que eu me propunha traçar? Que cobardia? Que traição, esconder-me nas trevas íntimas de um cego?

Aproximei-me, já depois de nos termos cruzado, voltando atrás. E eles em alegre conversa, gesticulando e caminhando apoiados no saber das suas bengalas. Em tom quase inaudível, pouco mais que balbuciei:

- Vítor.

Pensei se devia repetir, porque o som tinha saído mesmo muito baixo e o casal conversava animadamente. Mas só durou um instante esse pensamento. Detiveram-se os dois. Enquanto ele se dirigiu um passo na minha direcção, ela revelou uma fisionomia terrivelmente assustada. Ele abria os olhos em tom de interrogação. Comecei a falar, na expectativa que o Vítor ainda me reconhecesse a voz, mas já tinham passado muitos anos e ele simplesmente interrogava com o olhar. Vi como a mulher se sentia indefesa, como presa perante o predador oculto, como vítima perante o assaltante que vai saltar da escuridão. Rapidamente encurtei aquele momento de dúvida, surpresa e medo.

- Vítor, sou o Orlando, da catequese. Conversámos breves instantes. Foi talvez um pouco de azeite na lamparina de uma amizade antiga para que não morresse.

- É a minha companheira, repetiu várias vezes o Vítor.

Eu não estava amedrontado, como ela, mas tão surpreendido como eles os dois. Quis perguntar mais sobre a vida dele, onde e de que vivia, sei lá, mas eu ainda permanecia sob o efeito da surpresa quando nos afastámos e separámos. Abracei o Vítor e toquei a mão da sua companheira (como se chamará?) com a delicadeza de que fui capaz. Eles prosseguiram alegres como eu os tinha avistado e conversando e eu espantado com o que me acontecera. Depois, pensei que tinha sido um encontro feliz.

Apenas vaidade esse sentimento de felicidade!

Contei a minha história a quem conhecera, como eu, o Vítor. E perguntei o que não lhe tinha perguntado a ele por incapacidade de reacção.

- Que faz ele? Onde mora? É sabido?

- O Vítor pede esmola no Metro.

Não! Não! Não! Aiiiii… que dor, que murro senti nas entranhas. Uma vontade de vomitar. Culpa, remorso.

Dar catequese a alguém torna-nos uma espécie de pais adoptivos ou padrinhos da pessoa, mesmo quando se trate de adultos. Este caso é de uma pessoa, de um jovem adulto, que desde o berço parece ter sido esquecido e abandonado pela fortuna. Não posso deixar de sentir a minha culpa, embora sem culpa, como sinto a culpa da sociedade em geral, e da comunidade paroquial em que o Vítor estava inserido, em particular. Poderá haver culpa pela cegueira da parte dos médicos que o assistiram na maternidade, ou nem mesmo esses. Os acidentes e as doenças, as mortes não têm que ser culpa dos médicos, fazem parte do percurso de vida dos seres vivos.

Vivo numa sociedade triste e má. A falta de assistência a quem nada tem, a quem é português, nascido em Portugal, filho de um sargento das Forças Armadas, filho numa família desordenada, faz de todos nós culpados. Somos maus cidadãos, maus cristãos e inacreditavelmente um Estado com tanto dinheiro desaparecido em casos de corrupção, não acode os filhos mais desditosos. A pedir esmola como se fosse um preguiçoso ou um profissional da vadiagem por opção? Terá o Vítor (e todos os vítores deste país) de esperar pela misericórdia de Deus? Nós conseguimos ser assim tão frios? Acolhemos e vamos buscar pessoas tão longe e viramos a cara para o lado em relação ao que está tão próximo de nós, que lhes podemos chamar o nosso próximo?

É preciso descobrir o Vítor, onde quer que esteja e ajudá-lo. Vais ficar a pensar nisto ou vais fazer alguma coisa?

Orlando de Carvalho

3 comentários:

  1. Orlando, penso que todos nós ou quase todos, temos uma história assim... E como eu o percebo. Também ceguei de um olho aos 21 anos e tenho que ter cuidado com o outro...
    Obrigado pela sua humanidade. Obrigado pela honestidade. Obrigado pela partilha.
    Paulo Victória

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  2. Orlando, fiquei emocionada com o seu testemunho de amor ao próximo, pois é do que se trata.
    A vida prega-nos partidas e certas situações fogem-nos por entre os dedos. Por muito que nos doa, e como sei que dói, não nos devemos sentir culpados. Como catequista sei como nos sentimos mais que amigos dos nossos catequizandos. São para sempre nossos! E conhecendo-o um pouco, talvez seja o suficiente para saber o seu empenho em tudo o que faz. Um grande abraço desta catequista e amiga
    Maria Palmira Barata

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