Quando conheci o Vítor, há uns anos atrás, antipatizei com ele
quase de imediato, uma antipatia como certos amores, à primeira vista. O rapaz
era inconveniente, vestia-se de modo estranho, falava alto, gesticulava muito, ria-se
ruidosamente. Ele era particularmente inconveniente e mexia nos seus
interlocutores. Eu nunca tinha travado proximidade com cegos. Foi a minha
primeira experiência. Todavia, ainda que sendo cego, devia comportar-se com a
mesma dignidade das outras pessoas, se queria ser admitido ao convívio, dizia a
minha voz interior.
Foi na comunidade paroquial de S. Domingos de Benfica que
nos conhecemos onde, entre muitos outros místeres, eu era catequista. O convívio
com o Vítor foi inevitável, até porque nunca exclui pessoas dos meus círculos
baseado em gostos, simpatias, raças, debilidades. Fui mesmo catequista do
Vítor. Percebi lentamente que o mundo do Vítor era muito diferente do meu, em
certa medida, eu tinha tudo e ele não tinha nada. Ele fazia um esforço
sobre-humano para manter o diálogo e o convívio. Comecei a perceber como devia
ser triste ser cego, sem luz, sem cor, sem meio de defesa contra qualquer agressor,
pessoa, mosca ou objecto a cair na sua direcção.
Senti inevitável uma aproximação e um estender de mão.
O Vítor continuava a ser aborrecido nas suas conversas e eu
sentia um remorso enorme por o achar aborrecido, lutei contra mim: que
catequista seria eu sem me doar todo àquela criança que já se tornara
adolescente?
Quando o tempo chegou e tive Vítor no meu grupo de catekese passei
a entendê-lo de modo mais cristão, aprendi muito acerca dele, em especial o que
não era visível, por causa da sua impertinência. Eu, que nunca tinha tido
contacto com um cego, comecei a entender o mundo dos invisuais.
O que me parecia presunção, percebi depois que não passava
de uma forma de os cegos, neste caso o Vítor, não se sentirem inferiorizados. Ele
usava constantemente o verbo ‘ver’. E falava-me das cores. A cor do meu carro,
as cores das roupas, cores de tudo e mais alguma coisa. O Vítor memorizava as
cores e outros dados das conversas que tinha ou escutava e esforçava-se por se
sentir à altura de dialogar, sem que o achassem ‘o coitadinho do ceguinho’.
O Vítor precisava de me tocar para me ‘ver’, para saber como
eram as barbas que tinha ouvido dizer que eu tinha, para ‘ver’ as fisionomias
das pessoas. À medida que ganhava mais intimidade com as pessoas,
perguntava-lhes pormenores sobre o ambiente e a paisagem, sobre como eram as
pessoas. O rapaz não sabia se estava bem abotoado ou se tinha nódoas na roupa.
Para além destas limitações, havia outras questões condicionantes da sua vida e
da imagem que transmitia.
A família era grande e parecia que havia sempre alguém para
‘cuidar’ do Vítor, mas na realidade não era assim. O pai era um militar
reformado, bêbedo, mal formado e violento. A mãe abandonara o lar e juntara-se
com outro homem, devido à impossibilidade de aturar o marido. A mãe tinha,
pois, partido, o pai tinha outros interesses, a irmão mais novo, era… mais
novo, as irmãs já estavam casadas.
Eu criei amizade com o Vítor. Ele foi para retiros da catekese
com o restante grupo, sob a minha custódia. Preparado por mim, fez leituras em
missas, a partir de uma Bíblia em Braille, inclusivamente na Vigília Pascal.
O tempo passou. O Vítor criou amizade com outros jovens
cegos. Passava fins-de-semana com esses novos amigos que conhecera no Centro
para Cegos que frequentava. A vida afastou-nos, perdi-o. Lembro-me muitas vezes
daquele jovem cego, sinto remorso pelos sentimentos antipatia e aborrecimento
que tive em relação a ele e de que nunca ninguém suspeitou. A partir de certo
momento, deixei completamente de o ver. A dificuldade que tive em entender como
uma pessoa tão limitada podia ser tão alegre, mantenho-a quase integralmente.
Um dia, conversávamos, e o Vítor falou-me da sua doença. Ele
conseguia ver sombras, ou pelo menos distinguir a luz da escuridão. O mal teve
origem no seu parto prematuro e na sequente estadia em incubadora. A doença
chama-se retinopatia de prematuridade e é agravada pelas altas de concentrações
de oxigénio fornecidas ao bebé. Era seguido há muito tempo (desde sempre?) num
instituto oftalmológico famoso, em Lisboa, e o médico dissera à família que
havia uma cirurgia que podia melhorar a situação, mas que apenas podia ser
feita na fase adulta do doente. Inexplicavelmente o início dessa fase adulta ia
sendo adiado dos 12 para os 15 anos, para os 18, e não se via fim. O Vítor
contava isto com alguma tristeza, mas com um sorriso no rosto.
Poderia eu ajudar o Vítor? Ele já tinha atingido a idade
adulta legal, os 18 anos. Propus acompanhá-lo a uma consulta ao Instituto
Oftalmológico, ao seu médico. O jovem ficou encantado com a ideia e o pai não
se opôs. No dia e à hora marcados, lá fomos. Tudo aconteceu de modo muito
triste. O médico comportou-se como perfeita abécula. Não foi capaz de nos dizer
que hipóteses havia de fazer a tal cirurgia, ou outro tratamento, se devíamos
continuar ou não a pensar no assunto, enfim, uma nulidade médica e humana. Nem
foi capaz de dizer que o assunto o ultrapassava e que ignorava o que responder.
Concluiu que o Vítor devia continuar a passar lá na consulta. Falei-lhe na
disponibilidade para pagar um tratamento caro, até porque fazíamos parte de uma
comunidade (paroquial) que poderia ser suscitada a colaborar numa angariação de
fundos. Nesta parte o médico mostrou-se impressionado: sim, é bom que vão
arranjando dinheiro, se puderem. Mas nem chegou a dizer para quê. Uma conversa
de generalidades, como se de café fosse.
Voltámos da consulta tão pobres e ignorantes como tínhamos
ido. Contudo, algumas coisas mudaram. O pai do Vítor mudou de ideias e ficou
zangado por alguém o estar a substituir no que entendia como funções paternais.
A habitual falta de entendimento do senhor: ele concordara e o filho já era
maior.
Mas tudo foi há tanto tempo! Anos! Penso muitas vezes no Vítor, mas que posso fazer?
Mas tudo foi há tanto tempo! Anos! Penso muitas vezes no Vítor, mas que posso fazer?
Até há uns dias.
Era um fim de tarde natalício, escuro como noite, e com
poucas pessoas na rua por causa do frio, do vento, da chuva, já nem havia a
motivação das compras, porque já passara o dia 25. No passeio largo em que eu
caminhava, ao longe, percebi um casal de cegos. Bem ou mal, tenho sempre muito
cuidado quando encontro cegos, no sentido de não lhes perturbar o caminho que
eles normalmente tão bem conhecem. À medida que nos aproximávamos, pareceu-me
que era o Vítor com uma jovem mulher. Caminhavam alegre e desajeitadamente, sem
o sentido das conveniências, como eu sempre conhecera o Vítor. Além das
bengalas para cegos, cada um com a sua, levavam alguns sacos e malas. Conversavam
alegremente, naquela alegria tão difícil de entender. Até estarmos os três
sozinhos naquele passeio imensamente largo. Eu via-os e sabia que eles ali
estavam, mas eu permanecia quieto e calado, indeciso. Queria falar, mas
hesitava: que coisas velhas iria eu desenterrar? Eles podiam seguir o seu
caminho sem nunca imaginarem o encontro que eu tivera. Sim, que eu tivera,
porque eles não tinham tido encontro algum, eles não viam, nem me viam. Mas que
justiça era esta que eu me propunha traçar? Que cobardia? Que traição,
esconder-me nas trevas íntimas de um cego?
Aproximei-me, já depois de nos termos cruzado, voltando
atrás. E eles em alegre conversa, gesticulando e caminhando apoiados no saber
das suas bengalas. Em tom quase inaudível, pouco mais que balbuciei:
- Vítor.
Pensei se devia repetir, porque o som tinha saído mesmo
muito baixo e o casal conversava animadamente. Mas só durou um instante esse
pensamento. Detiveram-se os dois. Enquanto ele se dirigiu um passo na minha
direcção, ela revelou uma fisionomia terrivelmente assustada. Ele abria os
olhos em tom de interrogação. Comecei a falar, na expectativa que o Vítor ainda
me reconhecesse a voz, mas já tinham passado muitos anos e ele simplesmente interrogava
com o olhar. Vi como a mulher se sentia indefesa, como presa perante o predador
oculto, como vítima perante o assaltante que vai saltar da escuridão.
Rapidamente encurtei aquele momento de dúvida, surpresa e medo.
- Vítor, sou o Orlando, da catequese. Conversámos breves
instantes. Foi talvez um pouco de azeite na lamparina de uma amizade antiga
para que não morresse.
- É a minha companheira, repetiu várias vezes o Vítor.
Eu não estava amedrontado, como ela, mas tão surpreendido
como eles os dois. Quis perguntar mais sobre a vida dele, onde e de que vivia,
sei lá, mas eu ainda permanecia sob o efeito da surpresa quando nos afastámos e
separámos. Abracei o Vítor e toquei a mão da sua companheira (como se chamará?)
com a delicadeza de que fui capaz. Eles prosseguiram alegres como eu os tinha
avistado e conversando e eu espantado com o que me acontecera. Depois, pensei
que tinha sido um encontro feliz.
Apenas vaidade esse sentimento de felicidade!
Contei a minha história a quem conhecera, como eu, o Vítor.
E perguntei o que não lhe tinha perguntado a ele por incapacidade de reacção.
- Que faz ele? Onde mora? É sabido?
- O Vítor pede esmola no Metro.
Não! Não! Não! Aiiiii… que dor, que murro senti nas
entranhas. Uma vontade de vomitar. Culpa, remorso.
Dar catequese a alguém torna-nos uma espécie de pais
adoptivos ou padrinhos da pessoa, mesmo quando se trate de adultos. Este caso é
de uma pessoa, de um jovem adulto, que desde o berço parece ter sido esquecido
e abandonado pela fortuna. Não posso deixar de sentir a minha culpa, embora sem
culpa, como sinto a culpa da sociedade em geral, e da comunidade paroquial em
que o Vítor estava inserido, em particular. Poderá haver culpa pela cegueira da
parte dos médicos que o assistiram na maternidade, ou nem mesmo esses. Os
acidentes e as doenças, as mortes não têm que ser culpa dos médicos, fazem
parte do percurso de vida dos seres vivos.
Vivo numa sociedade triste e má. A falta de assistência a
quem nada tem, a quem é português, nascido em Portugal, filho de um sargento
das Forças Armadas, filho numa família desordenada, faz de todos nós culpados.
Somos maus cidadãos, maus cristãos e inacreditavelmente um Estado com tanto
dinheiro desaparecido em casos de corrupção, não acode os filhos mais
desditosos. A pedir esmola como se fosse um preguiçoso ou um profissional da
vadiagem por opção? Terá o Vítor (e todos os vítores deste país) de esperar
pela misericórdia de Deus? Nós conseguimos ser assim tão frios? Acolhemos e
vamos buscar pessoas tão longe e viramos a cara para o lado em relação ao que está
tão próximo de nós, que lhes podemos chamar o nosso próximo?
É preciso descobrir o Vítor, onde quer que esteja e
ajudá-lo. Vais ficar a pensar nisto ou vais fazer alguma coisa?
Orlando de Carvalho
Orlando, penso que todos nós ou quase todos, temos uma história assim... E como eu o percebo. Também ceguei de um olho aos 21 anos e tenho que ter cuidado com o outro...
ResponderEliminarObrigado pela sua humanidade. Obrigado pela honestidade. Obrigado pela partilha.
Paulo Victória
Obrigado, Paulo, pela abertura do seu coração.
EliminarOrlando, fiquei emocionada com o seu testemunho de amor ao próximo, pois é do que se trata.
ResponderEliminarA vida prega-nos partidas e certas situações fogem-nos por entre os dedos. Por muito que nos doa, e como sei que dói, não nos devemos sentir culpados. Como catequista sei como nos sentimos mais que amigos dos nossos catequizandos. São para sempre nossos! E conhecendo-o um pouco, talvez seja o suficiente para saber o seu empenho em tudo o que faz. Um grande abraço desta catequista e amiga
Maria Palmira Barata