Vem, Deus Menino, consolar os teus adoradores
Domingo de Reis estive no hospital a distribuir a sagrada
comunhão a doentes acamados. Foi um dia especial, uma vez que celebrando a
manifestação de Jesus aos povos e nações, através da manifestação aos magos que
tinham vindo para adorar o Filho do Altíssimo, eu era instrumento da
manifestação do mesmo Jesus a pessoas especiais, aos doentes que ali estavam
internados.
Como sempre, levava comigo o relicário com as espécies
consagradas e o missal para apoio na celebração junto de cada doente. Nesta ocasião
especial, eu levei também uma imagem do Menino Jesus.
O pão consagrado é a plenitude completa e absoluta de Deus, e
por isso os doentes pedem para o receber. Tal não obsta, a que um gesto de
ternura possa associar-se à plenitude divina. Como qualquer pessoa, os doentes
gostam sempre de um gesto de calor humano, um toque, uma palavra, uma estampa
com um santinho ou uma oração, uma pergunta que demonstre o interesse pelas
suas melhoras.
Nas missas festivas de Natal, manda a tradição, que o Menino
seja exposto para que os fiéis o possam beijar no final da celebração.
A todos os doentes a quem distribui a comunhão, mostrei a
bela imagem e perguntei, antes de abandonar o quarto, se queriam beijar o
Menino Jesus. Perguntei o mesmo às outras pessoas que estavam nos quartos e mostravam
atitude de sintonia com o momento sacramental. Há sempre pessoas que, mesmo não
participando activamente na celebração, fazem silêncio respeitoso e pessoas que
adoptam uma atitude ruidosa ou de algum modo desrespeitosa. Dói a alma quando
os filhos do doente são as pessoas que se mostram mais desinteressadas ou
incomodadas ou saem do quarto para não terem de presenciar a comunhão do seu
velho pai ou da sua velha mãe. A comunhão levada à cama, ou ao sofá, onde o
doente está, serve assim de edificação para alguns dos que assistem e de
desgraça para outros que manifestam uma certa atitude anti-sacramental.
Além das sagradas espécies e do Missal, levei também uma
imagem muito bela do Menino Jesus. Em cada cama, perguntei às pessoas, no final
da breve celebração, se queriam beijar o Menino.
Em determinado quarto estavam dois doentes: o senhor que
pedira a comunhão e outro que participou na celebração com o à vontade próprio de
quem participa habitualmente na missa, embora não tenha querido comungar,
porque não se considerava preparado. Escutámos as leituras, rezámos o Pai
Nosso, pedi autorização para dar o abraço da paz, que é sempre recebido em
inspirada alegria. Um comungou a hóstia que lhe estendi e o outro não, como já
referi.
No final, o comungante declinou, com algum ar de desdém beijar
a imagem do Deus Menino. Não julgo porque não conheço as razões e porque nem
tenho o direito de julgar a pessoa que não quis beijar a imagem. Há muitas
pessoas que procedem assim nos nossos dias, ou porque estão com pressa para ir
embora no final da missa, por acharem uma falta de higiene todos beijarem a
imagem que se transforma num foco de contaminação ou simplesmente porque não
entendem que significado possa ter beijar uma imagem. Acontece que o outro
doente daquele quarto, o que não estava preparado para comungar, respondeu
afirmativamente e com ar radioso à minha proposta para beijar o Menino Jesus.
Eu fiquei a meditar nestas coisas. Pareceu-me que houve duas
comunhões diferentes; e caberá a cada um de nós valorizá-las, eu que tudo
presenciei e quem ler este meu relato. Uma comunhão sacramental da hóstia
consagrada, por um doente e uma comunhão espiritual por parte do outro doente. Um
comeu o pão da vida e renunciou o beijinho à imagem do Menino; o outro não pode
comungar, mas alegrou-se ao encostar os lábios àquele Menino Jesus de loiça, no
qual terá pressentido a proximidade do Deus Menino, a mais óbvia proximidade
que lhe era permitida.
A última etapa desta longa visita foi uma senhora que já
conhecia, e que há muito tempo está internada nos Cuidados Intensivos e com
muitas limitações. Parece-me que dificilmente poderá sair daquela unidade de
cuidados. Não pode deslocar-se sozinha, está sempre deitada ou sentada numa
poltrona, não se mexe do pescoço para baixo, embora não esteja paralisada, como
a seguir veremos, fez traqueotomia, fala, mas apenas se notam os movimentos dos
lábios, porque não emite som. Aqui surge também uma das minhas limitações: não
sou capaz de ler nos lábios. Ela ouve-me, mas eu tenho de adivinhar o que ela
me diz. Com boa vontade, é apenas uma questão de tempo para nos entendermos,
ora a senhora tem toda o tempo da vida dela e eu se não estivesse disposto a
oferecer o meu tempo, não ia ali.
Ao entrar no quarto da senhora, vesti a roupa descartável
que é imposta naquela situação e comecei a armar a minha tenda litúrgica: o
corporal, o relicário, o missal popular e a imagem do Menino Jesus, em tamanho
grande. Estava eu nesta labuta de preparação para a celebração e a senhora começou
a bater com a parte de trás do calcanhar direito na base da poltrona em que
estava sentada. O pé parecia tremer-lhe como a um doente de Parkinson, mas com
um ritmo e uma intensidade quase violentos. Percebi que a senhora tinha piorado
desde a minha última visita. Mas a coisa agravava-se e até já pensava em falar
com um dos enfermeiros, eis senão começo a perceber que o olhar dela variava
entre mim e, pareceu-me, a imagem. A violência e o ruído faziam parecer que se
tratava de um casco de algum animal, uma cabra, um cavalo, cada fez mais forte
e frequente. Ela bem mexia a boca, mas eu não entendia coisa alguma e o que ela
tinha para me dizer era mesmo urgente. Continuava a olhar para mim e para a
imagem ansiosamente.
- D. Teresa, quer beijar o Menino? – Perguntei.
Os olhos encheram-se de alegria e parou de bater o pé, com
um movimento do pescoço, atirando o rosto para frente, tanto quanto conseguia.
- No final, depois da comunhão, beija o Menino. Sim? –
adiantei.
Recomeçou a escoucear. Com força e a abanar a cabeça,
dizendo que não. Os lábios pareciam dizer, mesmo a um ignorante de leitura
labial como eu:
- Agora! Agora!
- Quer beijar já o Menino?
Acenou com a cabeça afirmativamente e aproximei-lhe a
imagem. Foi um longo, terno e apaixonado beijo. Que ternura, meu Deus!
Celebrámos normalmente e distribui-lhe a partícula
consagrada. No final, levei novamente com gentileza o Menino Jesus junto aos
lábios da Teresa. Foi uma grande sucessão de pequenos beijos, muitos beijinhos
com grande ternura, numa intimidade que me fazia sentir mal por estar ali a
segurar imagem. Senti-me intrometido, a perturbar a privacidade daquele
momento. Mas eu era a ferramenta que Deus escolheu para aquela ‘aparição’ à
Teresa.
Grandes coisas fez o Senhor neste dia
No coração daqueles que o amam.
Almas glorificaram o Senhor
E espíritos alegraram-se pela sua presença
No Pão, na Palavra e pela imagem do Salvador.
Vi gente sentir sobre si o olhar do Senhor
Vi gente a sentir-se bem-aventurada.
Contemplei a presença do Senhor
Anunciada por imagem
Fazer maravilhas.
A misericórdia do Senhor a consolar corações atribulados.
Amém. Amém. Aleluia!
Orlando de Carvalho
Muito bem! Uma inteligência que sente (e crê). Penso que os seus alunos têm sorte em tê-lo como professor.
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