A tarde estava quente com pouco sol e um pouco abafada. Era
uma tarde típica dos dias quentes de Outono. Nada melhor que festejar o final
do dia a passear na praia.
A beira mar alongava-se até onde a bruma permitia ver,
salpicada por barcos que voltavam da pesca. Olhados de longe, não eram mais que
pontos esborratados de contorno irregular. Vistos de perto e com atenção, cada
barco era um cosmos.
A casca de noz encalhava na areia rebocado e sob a vista e
controlo de vários homens, um conduzindo o tractor, outros com os pés nus na
areia, outros com eles mergulhados na água salgada, outros ainda dentro da
embarcação.
Os mais adiantados descarregavam o pescado aprisionado nas
redes. Noutros, o peixe já era dividido por espécies. Finalmente, junto de
alguns pesqueiros o peixe era vendido a quem se dirigira ali para esse efeito
ou a algum dos poucos indivíduos que ainda passeavam como se estivessem no
Verão.
O peixe comprimido entre as redes que eram arrastadas na
areia pelo tractor quase era esmagado. Quase não, alguns morriam triturados
naquele aperto de milhares de peixes, uns empurrados contra os outros, contra a
areia e contra as redes. À medida que a rede era puxada para fora de água, os
peixes saltavam num espectáculo cheio de movimento, numa bela pincelada da
natureza e da vida que corre em contínuo, numa angústia de quem morre sufocado,
como se alguém estivesse a afogar-se ou tivesse sido enforcado. A pesca do
peixe que morre para que as pessoas se alimentem, como morrem os peixes para
que outros peixes, aves ou insolitamente ursos se alimentem.
Nesta azáfama em torno de cada barco, desempenham papel
importante as gaivotas que cobrem o areal e o céu, atraídas pela presença do
peixe que apanhado das redes lhes requer menos exercício que pescado por elas
próprias. São umas verdadeiras preguiçosas. Mais que isso, são ladras. Lutam
para roubar o peixe das redes, das mãos dos pescadores, dos tabuleiros onde já
estão separados por espécies ou mesmo do saco dos fregueses que os acabaram de
comprar.
Na multidão de aves, descubro uma aleijada. Nalgum choque
provocado por voo mal orientado ou nalguma luta com as suas semelhantes quebrou
o osso da asa esquerda, de modo que a asa ficou pendurada até ao chão. A
gaivota não voa, apenas anda arrastando ao seu lado a asa partida.
Morrerá em breve, bem sei, pois não conseguirá alimentar-se.
Ainda que pudesse alcançar algum resto de peixe, a luta dentro do bando é
feroz. De cada vez que alguma das aves é bem sucedida a apanhar um pedaço de
peixe, logo várias outras lutam para lhe roubar o alimento do bico. São animais
que parecem não conhecer nada sobre o amor, digo o amor verdadeiro, o amor
cristão, o amor que aporta vida e alegria para todos.
No grupo destaca-se uma gaivota que ataca a aleijada. Bica-a,
a ofendida defende-se, ela foge e volta a bicar. Outras atacam também o
indivíduo deformado, frágil, indefeso, incapaz de defender o seu estatuto.
Matam-na à bicada.
Quantas vezes somos gaivotas insanas!
No trabalho, as relações de camaradagem dão lugares à luta
pelo sucesso e só este interessa. Quem não consegue ser o primeiro é
inevitavelmente uma desgraça familiar, social, uma amigo indesejável. Contra o
ostracismo, pela garantia de ganho do mínimo indispensável para viver, pelo
vitória que dá acesso a poder e conforto, a luta sobrepõe-se sempre à
camaradagem, entre os humanos.
No desporto encontramos casos de camaradagem, mas são tão
escassos que a imprensa quase não os encontra – talvez nem os procure. A
dopagem e a agressão a companheiros e adversários têm muito mais valor que a
camaradagem.
Até na política, a palavra camarada foi aproveitada para
designar uma relação de solidariedade. Infelizmente, o seu uso acabou por
designar coisa bem diferente, tantas vezes o que está disposto a colaborar para
fazer mal ou prejudicar terceiros.
De tal modo a disputa pelo sucesso e pela primazia estão
instaladas na Humanidade, desde o seu alvor, que os pais ensinam e preparam os
filhos para a luta com os colegas, desde a primeira infância. A um tempo em que
a traição aos colegas ou sócios se fazia silenciosa e discretamente, vivemos
dias em que a vergonha deu lugar ao regozijo e à celebração da vitória, tantas
vezes desonesta, sobre os pares na comunidade em que se vive.
Afinal, não somos mais que gaivotas a abater a vizinha mais
fraca.
Que Deus nos perdoe ou nos dê forças para nos comportarmos
como pessoas, quando tratamos com outras pessoas.
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