sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Camaradagem





A tarde estava quente com pouco sol e um pouco abafada. Era uma tarde típica dos dias quentes de Outono. Nada melhor que festejar o final do dia a passear na praia.
A beira mar alongava-se até onde a bruma permitia ver, salpicada por barcos que voltavam da pesca. Olhados de longe, não eram mais que pontos esborratados de contorno irregular. Vistos de perto e com atenção, cada barco era um cosmos.
A casca de noz encalhava na areia rebocado e sob a vista e controlo de vários homens, um conduzindo o tractor, outros com os pés nus na areia, outros com eles mergulhados na água salgada, outros ainda dentro da embarcação.
Os mais adiantados descarregavam o pescado aprisionado nas redes. Noutros, o peixe já era dividido por espécies. Finalmente, junto de alguns pesqueiros o peixe era vendido a quem se dirigira ali para esse efeito ou a algum dos poucos indivíduos que ainda passeavam como se estivessem no Verão.
O peixe comprimido entre as redes que eram arrastadas na areia pelo tractor quase era esmagado. Quase não, alguns morriam triturados naquele aperto de milhares de peixes, uns empurrados contra os outros, contra a areia e contra as redes. À medida que a rede era puxada para fora de água, os peixes saltavam num espectáculo cheio de movimento, numa bela pincelada da natureza e da vida que corre em contínuo, numa angústia de quem morre sufocado, como se alguém estivesse a afogar-se ou tivesse sido enforcado. A pesca do peixe que morre para que as pessoas se alimentem, como morrem os peixes para que outros peixes, aves ou insolitamente ursos se alimentem.
Nesta azáfama em torno de cada barco, desempenham papel importante as gaivotas que cobrem o areal e o céu, atraídas pela presença do peixe que apanhado das redes lhes requer menos exercício que pescado por elas próprias. São umas verdadeiras preguiçosas. Mais que isso, são ladras. Lutam para roubar o peixe das redes, das mãos dos pescadores, dos tabuleiros onde já estão separados por espécies ou mesmo do saco dos fregueses que os acabaram de comprar.
Na multidão de aves, descubro uma aleijada. Nalgum choque provocado por voo mal orientado ou nalguma luta com as suas semelhantes quebrou o osso da asa esquerda, de modo que a asa ficou pendurada até ao chão. A gaivota não voa, apenas anda arrastando ao seu lado a asa partida.
Morrerá em breve, bem sei, pois não conseguirá alimentar-se. Ainda que pudesse alcançar algum resto de peixe, a luta dentro do bando é feroz. De cada vez que alguma das aves é bem sucedida a apanhar um pedaço de peixe, logo várias outras lutam para lhe roubar o alimento do bico. São animais que parecem não conhecer nada sobre o amor, digo o amor verdadeiro, o amor cristão, o amor que aporta vida e alegria para todos.
No grupo destaca-se uma gaivota que ataca a aleijada. Bica-a, a ofendida defende-se, ela foge e volta a bicar. Outras atacam também o indivíduo deformado, frágil, indefeso, incapaz de defender o seu estatuto. Matam-na à bicada.
Quantas vezes somos gaivotas insanas!
No trabalho, as relações de camaradagem dão lugares à luta pelo sucesso e só este interessa. Quem não consegue ser o primeiro é inevitavelmente uma desgraça familiar, social, uma amigo indesejável. Contra o ostracismo, pela garantia de ganho do mínimo indispensável para viver, pelo vitória que dá acesso a poder e conforto, a luta sobrepõe-se sempre à camaradagem, entre os humanos.
No desporto encontramos casos de camaradagem, mas são tão escassos que a imprensa quase não os encontra – talvez nem os procure. A dopagem e a agressão a companheiros e adversários têm muito mais valor que a camaradagem.
Até na política, a palavra camarada foi aproveitada para designar uma relação de solidariedade. Infelizmente, o seu uso acabou por designar coisa bem diferente, tantas vezes o que está disposto a colaborar para fazer mal ou prejudicar terceiros.
De tal modo a disputa pelo sucesso e pela primazia estão instaladas na Humanidade, desde o seu alvor, que os pais ensinam e preparam os filhos para a luta com os colegas, desde a primeira infância. A um tempo em que a traição aos colegas ou sócios se fazia silenciosa e discretamente, vivemos dias em que a vergonha deu lugar ao regozijo e à celebração da vitória, tantas vezes desonesta, sobre os pares na comunidade em que se vive.
Afinal, não somos mais que gaivotas a abater a vizinha mais fraca.
Que Deus nos perdoe ou nos dê forças para nos comportarmos como pessoas, quando tratamos com outras pessoas.

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