Ser Santo é ser Deus, mas Jesus vai mais longe e proclama
mesmo que só há um Bom. Deus é Bom e mais ninguém tem direito a usar esse
adjectivo[1].
A bondade é um atributo de Deus e Bondade é um dos nomes de
Deus. Deus é a fonte e a morada da bondade e qualquer bondade que em nós
exista, ou que nós pratiquemos, em maior ou menor grau, toda ela não pode
provir de outra raiz que não seja a única fonte, Deus.
Somos bons quando recebemos e espelhamos a bondade emanada
de Deus e nessa medida somos semelhantes a Deus, no grau em que operarmos a
bondade. Distinguimo-nos de Deus na proporção em que rejeitamos aceitar a
bondade que Deus nos disponibiliza e nos oferece e também na medida em que não
distribuirmos gratuitamente a bondade que de Deus recebemos[2].
Da mesma forma que nenhum lugar na Terra se pode confundir
com o Sol, por maior que seja a temperatura, a luz ou a energia, porque apenas
se pode aparentar, ser ligeiramente parecido, também nenhuma pessoa pode
realizar plenamente a bondade. Parte da energia solar gasta-se no percurso até
atingir a Terra, também a bondade de Deus nunca chega a nós em plenitude. Assim
como é importante saber gerir a energia ao longo das estações do ano e do dia,
também devemos procurar fazer uma boa administração da bondade que Deus nos
concede.
Ser Santo é ser Bom. O único que é Bom é Deus, como Jesus
ensina, logo Deus é o único Santo. A santidade provém do único Santo e quanto
mais ela nos envolver e encher, maior será o nosso grau de santidade, embora
não possamos imaginar a possibilidade de atingirmos cem por cento de santidade.
Não somos Deus[3].
Não obstante, Jesus exorta-nos a sermos perfeitos como o
nosso Pai que está no Céu. Parece uma contradição “ser perfeito como Deus”,
sabendo que “ninguém é Bom, além de Deus”.
Trata-se de uma questão de estilo linguístico. Igualar a
perfeição de Deus não é uma ordem nem um mandamento, mas um apelo e um
estímulo. Jesus quer despertar em nós o empenho para nos aperfeiçoarmos tendo
como objectivo a dimensão da perfeição de Deus. A perfeição divina deverá ser o
limite para o qual trabalhamos, sabendo que nos podemos aproximar muito desse
alvo e que isso nos transformará em seres extremamente realizados, infinitamente
felizes, quase divinos[4]. Esta
promessa mais explícita no Salmo é o maior conforto para as nossas mentes e os
nossos corações, pois Deus não morre, a perfeição, a bondade e a santidade são
eternas e infinitas. Talvez por isso Jesus, a meio de ser torturado, achasse desnecessário responder à pergunta de Pilatos: Que é a verdade?
O conceito de homem santo, muito comum nas culturas
orientais refere-se a alguém que se separou da comunidade humana, desligando-se
dos prazeres, luxos e facilidades, de modo a purificar o seu corpo e tornar-se
puro, conceito que no cristianismo perdeu o sentido, embora exista ao longo dos
tempos uma tendência forte para o ressuscitar: Deus quer de nós santidade e não
o conceito abstracto de pureza, como se de uma cortina se tratasse a separar o
divino do humano, o Céu da Terra, Deus e os homens. Jesus proclama o contrário,
uma vez que nos manda chamar pai a Deus e nos exorta a nos acolhermos no seu
colo e a abandonarmo-nos ao seu consolo.
Por outro lado, o conceito de mártir, fundamentado no
sacrifício de entrega e paixão de Cristo, serviu para catalogar, e bem, aqueles
que se permitiram seguir o caminho de entrega mostrado pelo Senhor, deixando-se
torturar e matar em nome de Jesus e da Verdade[5].
Veio depois a inscrição de alguns fiéis já falecidos, uns
que atravessaram o martírio e outros que deram exemplo de bondade e entrega
durante a vida, como santos. Assim surge o “regulamento” para as beatificações
e canonizações, que nem sempre tem sido bem interpretado e ensinado dentro da
Igreja. E a revolta de alguns que pressentiram nessa via um politeísmo que
elegia a família de Jesus e alguns mortos notáveis como deuses. É provável que
tal tenha acontecido entre fiéis que, não por sua culpa, fossem grandes
ignorantes, e aos quais não assistiria culpa. Entre os sábios da Igreja, a
ignorância não pode ser desculpa.
Convém, então distinguir entre santo e Santo.
Só Deus é Santo, porque esse é o seu nome[6].
Todos nós devemos aspirar à santidade, de modo a podermos
ser acolhidos por Deus, antes e depois da morte, como seus predilectos e
vivermos junto do Senhor pela totalidade do tempo vindouro, se é que no Céu
existe tempo, num lugar onde a bondade e a santidade são plenas, onde mora
Deus, o Santo, e os seus filhos, feitos santos. E para tal, nada conta a
beatificação ou a canonização[7].
A canonização tem um efeito bom na comunidade cristã ao
apontar exemplos de vida. Estes, se devidamente divulgados, podem ser estímulos
para cada pessoa trabalhar na sua própria edificação e na do seu próximo, em
santidade.
Mas a canonização pela Igreja também teve um mau efeito.
Quando nos são apontados exemplos de pessoas que viveram há duzentos,
quinhentos, mil ou dois mil anos, que levaram uma vida de conversão e
praticamente isenta de pecado, percebemos que isso é inatingível. Porque é logo
explicado que “naquele tempo” havia santos que não pecavam, mas que nós, no
nosso tempo, seja ele qual for, somos demasiado pecadores e incapazes de seguir
os seus passos.
Na narrativa da vida de alguns santos, dos mais antigos e
por isso mais santos, confunde-se com frequência a realidade com o misticismo e
uma certa lenda que passados cem ou duzentos anos, e sem registos fidedignos,
se torna indecifrável.
Deste modo, a longa lista de fiéis canonizados pelo Papa
João Paulo II é extremamente benéfica para a vida da Igreja, se for tomada como
ferramenta de evangelização, de uma Nova Evangelização, porque mostra que a
santidade não é só apenas para mortos de há séculos atrás, não é só para padres,
frades, freiras, príncipes e rainhas, mas que está acessível a qualquer
anónimo, mesmo que nunca tenha ouvido o nome de Jesus.
Cabe aos cristãos que carregam a tarefa da evangelização
levar às gentes a realidade dos santos canonizados pela Igreja e explicar que
qualquer um pode ser santo, mesmo sem ter uma imagem num altar; que a imagem
numa capela não beneficia, nem prejudica, a alma da pessoa que morreu e não a
aproxima nem afasta mais de Deus. Àquele que morreu não serve de nada a imagem
nem a canonização, uma vez que todo este processo serve apenas como meio de
catequese e evangelização do povo de Deus, tanto os que já acreditam como
aqueles a quem ainda é preciso conduzir ao rebanho do Senhor.
Orlando de Carvalho
Milagre das Rosas, Santa Isabel Hungria, tia-avó de Santa
Isabel de Portugal, na imagem da esquerda.
Milagre das Rosas, Santa Isabel de Portugal, na imagem da direita.
[1]
Marcos 10,17-18
Quando Jesus Se pôs de novo a
caminho, um homem aproximou-se a correr, ajoelhou-se diante d'Ele e perguntou:
«Bom Mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?» Jesus respondeu:
«Porque Me chamas bom? Só Deus é bom, e ninguém mais.
Mateus 19,16-17
Um jovem aproximou-se e disse
a Jesus: «Mestre, que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?» Jesus
respondeu: «Porque me interrogas sobre o que é bom? Bom é um só. Se queres
entrar na vida, guarda os mandamentos».
Lucas 18,18-19
Uma pessoa importante
perguntou a Jesus: «Bom Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida
eterna?» Jesus respondeu: «Porque Me chamas bom? Só Deus é bom, e ninguém mais.
[2]
Romanos 3,11-12
Não há homem justo, não há um
sequer.
Não há homem sensato, não há
quem busque a Deus.
Todos se desviaram, e juntos
se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer.
1 Samuel 2,2-3
Oração de Ana:
Ninguém é santo como o
Senhor, não existe Rocha como o nosso Deus.
Não multipliqueis palavras
soberbas, nem saia arrogância da vossa boca, porque o Senhor é um Deus que
sabe, é Ele quem pesa as acções.
[3]
Tiago 1,16-17
Não vos enganeis, meus
queridos irmãos: qualquer dom precioso e qualquer dádiva perfeita vêm do alto,
descem do Pai das luzes, no qual não há fases ou períodos de mudança.
[4]
Salmo 8
Senhor, Senhor nosso,
como é poderoso o teu Nome
em toda a Terra!
Exaltaste a tua majestade
acima do céu.
Da boca de crianças e bebés
tiraste um louvor contra os
teus adversários,
para reprimir o inimigo e o
vingador.
Quando contemplo o céu, obra
dos teus dedos,
a Lua e as estrelas que
fixaste...
O que é o homem, para dele te
lembrares?
O ser humano, para que o
visites?
Tu o fizeste pouco menos do que
um deus,
e o coroaste de glória e
esplendor.
Tu o fizeste reinar sobre as
obras das tuas mãos,
e sob os pés dele tudo
colocaste:
ovelhas e bois, todos eles,
e as feras do campo também;
as aves do céu e os peixes do
oceano,
que percorrem as sendas dos
mares.
Senhor, Senhor nosso,
como é poderoso o teu Nome
em toda a Terra!
[5]
1 João 4,7-17
Amados, amemo-nos uns aos
outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama, nasceu de Deus e
conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.
Nisto se tornou visível o
amor de Deus entre nós: Deus enviou o seu Filho único a este mundo, para nos
dar a vida por meio d'Ele. E o amor consiste no seguinte: não fomos nós que
amámos a Deus, mas foi Ele que nos amou e nos enviou o seu Filho como vítima
expiatória pelos nossos pecados.
Amados, se Deus nos amou a
tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros. Ninguém jamais viu a
Deus. Se nos amamos uns aos outros, Deus está connosco, e o seu amor realiza-se
completamente entre nós. Nisto reconhecemos que permanecemos com Deus, e Ele
connosco: Ele deu-nos o seu Espírito. E nós vimos e testemunhamos que o Pai
enviou o seu Filho como Salvador do mundo. Quando alguém confessa que Jesus é o
Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus. E nós reconhecemos o amor
que Deus tem por nós e acreditamos nesse amor. Deus é amor: quem permanece no
amor permanece em Deus, e Deus permanece nele.
Nisto se realizou completamente
o amor entre nós: o facto de termos plena confiança no dia do julgamento,
porque tal como Jesus é, assim somos nós neste mundo.
[7] Mateus 5,43-48
«Ouvistes o que foi dito:
"Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!" Eu, porém, digo-vos:
amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!
Assim tornar-vos-eis filhos
do Pai que está no Céu, porque Ele faz nascer o sol sobre maus e bons e cair a
chuva sobre justos e injustos. Pois, se amais somente aqueles que vos amam, que
recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se
cumprimentais somente os vossos irmãos, o que é que fazeis de extraordinário?
Os pagãos não fazem a mesma coisa? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o
vosso Pai que está no Céu».
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