sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Refeição Encontro Comunhão Pão


Logo que aprendi a comer comida de gente, ensinaram-me que não se coloca pão em cima da mesa virado ao contrário. Também me ensinaram que não se brinca com o pão, porque eu gostava de fazer bolinhas de miolo para modelar. Aprendi que não se deita fora comida, mas em caso de óbvia necessidade, o pão, esse nunca se deita fora, o menor pedaço que seja, sem lhe dar primeiro um beijinho. Se alguém batia à porta a pedir esmola e estávamos à mesa, era proibido despedir o pedinte sem lhe dar esmola. Esta é uma regra já muito esquecida, talvez como as anteriores.
Também aprendi que não se fala à mesa ao mesmo tempo que aprendi que quem não fala à mesa são os padres e nós, como não somos padres, falamos.
Sobre a mesa e a refeição, aprendi mais umas dúzias de regras, umas sem fundamento ou contraditórias, outras que serviam para regular as condições de higiene, algumas com fundo moral, muitas de génese religiosa finalmente muitas sem fundamento.
Enfim, a refeição é uma conquista no meio e no tempo em que vivo. A refeição propriamente dita já não é para todos (alguma vez foi?), mas para uns poucos felizardos.
Diferentes culturas e religiões adoptaram vários modos de pôr em relevo a comida, de lhe prestar alguma homenagem ou mesmo culto, ou mesmo dar graças pela comida recebida.
A reunião em volta da mesa da refeição tem um papel importante na família, nos negócios, no lazer e na religião, em suma, na vida.
Como católico herdei uma certa veneração pelo pão em relação directa com a Última Ceia. A Eucaristia é um pilar da prática católica é a refeição comunitária durante a celebração da missa. Daqui deriva a veneração popular pela posição correcta do pão na mesa da refeição comum, pela relação com o pão que se consagra, o não deitar fora restos de pão, sem uma última homenagem, para mostrar que não se trata de falta de respeito para com Jesus, que no Pão se nos entregou, mas de uma questão, digamos, técnica do quotidiano.
Alguém levantou a questão de qual seria o objecto sagrado e venerado pelos cristãos se Jesus, em vez de crucificado, tivesse sido decapitado numa guilhotina, enforcado ou electrocutado numa cadeira eléctrica, qual seria o objecto de veneração dos cristãos? Sem cruz, iriam ajoelhar e venerar uma corda, a lâmina de uma guilhotina, uma cadeira? O problema está mal equacionado porque quem perguntava não tinha fé, por isso se perdia nestas reflexões, porque não entendia os meandros da fé. Todas aquelas respostas estão na fé. Tudo foi criado com um sentido e tudo tem um sentido que a seu tempo se revelará. À indignidade da cruz, suja e ligada ao pecado porque nela se castigavam os malfeitores, a fé e a arte deram sentido diferente.
Questão do mesmo estilo se pode colocar em relação à última refeição de Jesus. Porque aconteceu naqueles termos e não de forma diversa?
Vamos por partes.
A refeição foi preparada em vista ao fim que Jesus lhe destinara. Não foi uma ideia súbita, escrevinhada em cima do joelho. Aconteceu em dia próprio, em local escolhido e os convivas não se atrasaram. Comeram todos ao mesmo tempo, com excepção de Judas sobre o qual restam dúvidas sobre a sua real integração no grupo. Ora, se os discípulos não estivessem à hora? Se fossem chegando aos poucos, uns atrás dos outros e interrompendo a refeição dos que já tinham chegado, uns atrasados cada qual com sua justificação, ou se simplesmente faltassem? Eles já tinham escutado Jesus narrar a parábola dos convidados indignos que faltaram ao banquete… Se quando Jesus quisesse lavar os pés, ainda não estivessem todos? Se estivessem a brincar com o pão, ou se se entregassem ao vinho? Se falassem em algazarra, como numa taberna, sem dar espaço à oração de Jesus e às suas outras intervenções?
São muitas interrogações, de facto, mas que podemos entender melhor se estendermos o olhar sobre as nossas mesas de refeição nestes dias.
Um jovem explicava-me que em casa dele era impossível a família reunir-se à hora da refeição, era mesmo inviável. O pai comia na sala sempre a jogar computador e a ver notícias na televisão, a mãe comia na cozinha, de pé, enquanto via novelas e filmes na televisão e o jovem comia dentro do seu quarto, de porta fechada, a jogar computador ou a ver televisão. Este foi um quadro real e extremo, verdadeiro, que terminou como não poderia deixar de ser com o fim daquela família.
Pensando melhor, talvez não tivesse sido um caso tão anómalo. Entremos num restaurante ou café. Atentemos apenas a mesas em que estão mais de uma pessoa, isto é, às pessoas que estão acompanhadas. Quantas delas conseguimos contar sem estarem a prestar atenção ao telefone, computador ou jogo? Mesas onde se sentam casais e seus filhos, cada pessoa com o seu dispositivo, sem ligar aos restantes familiares e quase sem comer ou ligar à comida, apenas fixados nos dispositivos, quantas são? Como podemos repetir o ensinamento de Jesus, que já era tradição dos judeus, de dar graças pelo alimento que vamos tomar? Como podemos dialogar, os cônjuges sobre as razões que os ajudarão a permanecerem unidos, filhos e pais sobre questões educativas, escolares, pedagógicas, mesmo brincar ou contar anedotas?
A refeição é a ocasião técnica para agradecer o alimento, a Deus, e para comungar com aqueles que nos acompanham na refeição, para se descobrirem as razões que incomodam algum dos membros da família (jogo, droga, falência do negócio da família, combinar a participação na missa, tanta coisa).
Era costume dizer-se que família que reza unida, permanece unida.
Irei mais longe ao afirmar que família que toma a refeição em sinal de comunhão permanece unida. Não é a comunhão dos telemóveis, claramente, mas a comunhão de corações, de estados de alma, de ânimos, partilhados com amor e humildade, e com espírito de entreajuda.
Se os Apóstolos fossem chegando, um de cada vez, e comessem sem esperar pelos outros, que tragédia teria sido a Ceia do Senhor?

Orlando de Carvalho

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