Logo que aprendi a comer comida de gente, ensinaram-me que não
se coloca pão em cima da mesa virado ao contrário. Também me ensinaram que não
se brinca com o pão, porque eu gostava de fazer bolinhas de miolo para modelar.
Aprendi que não se deita fora comida, mas em caso de óbvia necessidade, o pão,
esse nunca se deita fora, o menor pedaço que seja, sem lhe dar primeiro um
beijinho. Se alguém batia à porta a pedir esmola e estávamos à mesa, era proibido
despedir o pedinte sem lhe dar esmola. Esta é uma regra já muito esquecida,
talvez como as anteriores.
Também aprendi que não se fala à mesa ao mesmo tempo que
aprendi que quem não fala à mesa são os padres e nós, como não somos padres,
falamos.
Sobre a mesa e a refeição, aprendi mais umas dúzias de
regras, umas sem fundamento ou contraditórias, outras que serviam para regular
as condições de higiene, algumas com fundo moral, muitas de génese religiosa
finalmente muitas sem fundamento.
Enfim, a refeição é uma conquista no meio e no tempo em que
vivo. A refeição propriamente dita já não é para todos (alguma vez foi?), mas para
uns poucos felizardos.
Diferentes culturas e religiões adoptaram vários modos de
pôr em relevo a comida, de lhe prestar alguma homenagem ou mesmo culto, ou
mesmo dar graças pela comida recebida.
A reunião em volta da mesa da refeição tem um papel
importante na família, nos negócios, no lazer e na religião, em suma, na vida.
Como católico herdei uma certa veneração pelo pão em relação
directa com a Última Ceia. A Eucaristia é um pilar da prática católica é a
refeição comunitária durante a celebração da missa. Daqui deriva a veneração
popular pela posição correcta do pão na mesa da refeição comum, pela relação
com o pão que se consagra, o não deitar fora restos de pão, sem uma última
homenagem, para mostrar que não se trata de falta de respeito para com Jesus,
que no Pão se nos entregou, mas de uma questão, digamos, técnica do quotidiano.
Alguém levantou a questão de qual seria o objecto sagrado e
venerado pelos cristãos se Jesus, em vez de crucificado, tivesse sido decapitado
numa guilhotina, enforcado ou electrocutado numa cadeira eléctrica, qual seria
o objecto de veneração dos cristãos? Sem cruz, iriam ajoelhar e venerar uma
corda, a lâmina de uma guilhotina, uma cadeira? O problema está mal equacionado
porque quem perguntava não tinha fé, por isso se perdia nestas reflexões,
porque não entendia os meandros da fé. Todas aquelas respostas estão na fé.
Tudo foi criado com um sentido e tudo tem um sentido que a seu tempo se revelará.
À indignidade da cruz, suja e ligada ao pecado porque nela se castigavam os
malfeitores, a fé e a arte deram sentido diferente.
Questão do mesmo estilo se pode colocar em relação à última
refeição de Jesus. Porque aconteceu naqueles termos e não de forma diversa?
Vamos por partes.
A refeição foi preparada em vista ao fim que Jesus lhe
destinara. Não foi uma ideia súbita, escrevinhada em cima do joelho. Aconteceu
em dia próprio, em local escolhido e os convivas não se atrasaram. Comeram
todos ao mesmo tempo, com excepção de Judas sobre o qual restam dúvidas sobre a
sua real integração no grupo. Ora, se os discípulos não estivessem à hora? Se
fossem chegando aos poucos, uns atrás dos outros e interrompendo a refeição dos
que já tinham chegado, uns atrasados cada qual com sua justificação, ou se simplesmente
faltassem? Eles já tinham escutado Jesus narrar a parábola dos convidados
indignos que faltaram ao banquete… Se quando Jesus quisesse lavar os pés, ainda
não estivessem todos? Se estivessem a brincar com o pão, ou se se entregassem
ao vinho? Se falassem em algazarra, como numa taberna, sem dar espaço à oração de
Jesus e às suas outras intervenções?
São muitas interrogações, de facto, mas que podemos entender
melhor se estendermos o olhar sobre as nossas mesas de refeição nestes dias.
Um jovem explicava-me que em casa dele era impossível a
família reunir-se à hora da refeição, era mesmo inviável. O pai comia na sala
sempre a jogar computador e a ver notícias na televisão, a mãe comia na
cozinha, de pé, enquanto via novelas e filmes na televisão e o jovem comia
dentro do seu quarto, de porta fechada, a jogar computador ou a ver televisão.
Este foi um quadro real e extremo, verdadeiro, que terminou como não poderia
deixar de ser com o fim daquela família.
Pensando melhor, talvez não tivesse sido um caso tão anómalo.
Entremos num restaurante ou café. Atentemos apenas a mesas em que estão mais de
uma pessoa, isto é, às pessoas que estão acompanhadas. Quantas delas
conseguimos contar sem estarem a prestar atenção ao telefone, computador ou
jogo? Mesas onde se sentam casais e seus filhos, cada pessoa com o seu
dispositivo, sem ligar aos restantes familiares e quase sem comer ou ligar à
comida, apenas fixados nos dispositivos, quantas são? Como podemos repetir o
ensinamento de Jesus, que já era tradição dos judeus, de dar graças pelo
alimento que vamos tomar? Como podemos dialogar, os cônjuges sobre as razões
que os ajudarão a permanecerem unidos, filhos e pais sobre questões educativas,
escolares, pedagógicas, mesmo brincar ou contar anedotas?
A refeição é a ocasião técnica para agradecer o alimento, a
Deus, e para comungar com aqueles que nos acompanham na refeição, para se
descobrirem as razões que incomodam algum dos membros da família (jogo, droga,
falência do negócio da família, combinar a participação na missa, tanta coisa).
Era costume dizer-se que família que reza unida, permanece
unida.
Irei mais longe ao afirmar que família que toma a refeição
em sinal de comunhão permanece unida. Não é a comunhão dos telemóveis,
claramente, mas a comunhão de corações, de estados de alma, de ânimos,
partilhados com amor e humildade, e com espírito de entreajuda.
Se os Apóstolos fossem chegando, um de cada vez, e comessem
sem esperar pelos outros, que tragédia teria sido a Ceia do Senhor?
Orlando de Carvalho
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