Lemos e ouvimos muitas vezes que não há maior sofrimento que
o de Jesus durante a Paixão.
Este sentimento, afirmado assim ou de outra forma,
merece-nos alguma reflexão. A primeira questão é saber como se mede o sofrimento
humano? Todos sabemos que é impossível saber, entre duas pessoas, qual delas
sente uma dor maior ou menor. Ainda que ambas as pessoas estejam sujeitas à
mesma pressão, entram em jogo muitos factores subjectivos, sejam físicos ou
psicológicos. E como garantir que a pressão nas duas pessoas é igual?
Jesus encarnou para viver à maneira humana, isto é, desde
logo, de modo precário, imprevisível e pessoal, pois todos nós vivemos as
mesmas coisas de modo pessoal, cada um sente a mesma situação de modo
diferente.
A diferença essencial entre o sofrimento de Jesus e o de
qualquer outro de nós é o sentido desse sofrimento. O sofrimento de Jesus
salvou a humanidade da morte e das trevas e abriu-lhe horizontes de eternidade.
O nosso sofrimento, o de cada um de nós, pode ser co-redentor ao de Cristo, na
medida em que o consigamos unir e aliar ao de Jesus. Não na intensidade da dor,
mas no seu sentido.
Pensemos na pessoa em grande sofrimento praguejando contra o
destino e contra Deus ou inventando culpados do seu infortúnio para descarregar
a sua doer amaldiçoando-os. Há outra pessoa também sob um sofrimento igualmente
grande, embora menor que o da pessoa anterior, que consegue manter alguma
serenidade e confiança em Deus. Este sofrimento, podendo ser menor que o
anterior, é mais facilmente identificável com o de Jesus e pode mesmo
participar com o de Ele na Redenção.
A Igreja comemora as dores que Jesus sentiu no seu corpo, de
modo particular durante a Quaresma. É um tempo de sofrimento, em que os fiéis
se humilham e se identificam com o barro e as Cinzas que caem nas suas cabeças
no primeiro dia da Quaresma. A quarta-feira de Cinzas está para a Igreja como a
Encarnação para Jesus. Os fiéis humilham-se e reconhecem-se pecadores e sem
mérito. Jesus, ao contrário, aceitou equiparar-se a nós pecadores, embora Ele
nunca tenha tido demérito algum, nunca pecou – se tivesse pecado tinha-se
afastado de Si mesmo, porque pecar é afastar de Deus. Rebaixou-se, não à sua
condição, como nós fazemos em quarta-feira de Cinzas, mas à nossa condição. Este
rebaixamento é a kenosis de Jesus, a
humilhação. Ele é a Luz que nos veio redimir, através do sofrimento a que
sujeitou a sua natureza humana.
Anterior à Encarnação de Jesus, nós já conhecemos o relato
dos quarenta anos dos judeus através do deserto, uma prefiguração da Quaresma.
Mas como cristãos no mundo, talvez tenhamos a obrigação de perceber as
quaresmas de tantas pessoas nossas contemporâneas e tantas que têm vivido ao
longo dos tempos. Pessoas que sofrem em todos os lugares do mundo em guerras em
que são lançadas e forçadas a participar, seja como atacantes ou atacados,
matando ou morrendo, violando ou sendo violado. Quaresma de pessoas que sofrem dores
provenientes de doenças naturais, de maus tratos, de desconsiderações, de
humilhações.
A humanidade atravessa ao longo destes meses, no início de
2020, duas quaresmas em particular. A Quaresma litúrgica com toda a Igreja. E a
quaresma do coronavírus, já baptizado de Covid19.
A quaresma da pandemia é
a angústia das pessoas na expectativa de adoecerem,
é o desleixo das pessoas que desvalorizam a sua protecção e
facilitam a propagação da doença,
é o desespero de quem vê os amigos e familiares a sofrer e a
morrer,
é o desalento de quem sente a impotência e recusa a aceitar
uma situação de nada poder fazer contra o que está para acontecer, que nem sabe
como será o dia de amanhã desta pandemia.
Vivamos uma quaresma fecunda à maneira de Jesus, aceitando o
que não podemos evitar, cuidando da nossa própria saúde e ajudando os outros,
todos os que precisarem, seja encorajando por palavras, seja qualquer outro
tipo de auxílio que respeite a segurança de todos.
Nesta doença, as pessoas morrem sozinhas. Enquanto estiverem
vivas, rezemos por elas, falemos com elas ao telefone, rezemos com elas por
telefone.
Em contraste com a quaresma fértil, existe uma quaresma
desperdiçada. Não será tanto a exasperação perante o sofrimento que acompanha
esta doença, mas a exposição gratuita ao perigo, fazendo correr risco a si
mesmo e contribuindo para o alastramento e manutenção da epidemia.
Os que estão em casa, em quarentena ou por precaução,
procurem utilizar da melhor forma esse tempo. Deixamos duas propostas de directivas
principais para os tempos disponíveis: amar a família, conversando, tolerando o
que quer fazer coisas diferentes de mim, e dedicando uma grande quantidade de
tempo à relação com Deus. Orando sozinho ou orando em família. Também há a
hipótese de contactar a família e amigos por telefone, como já referido. E com
eles rezar, assim mesmo, à distância.
Depois da Quaresma vem sempre a Páscoa. Os hebreus
alcançaram a Terra Prometida. Jesus elevou-Se ressuscitado para se sentar junto
do Pai. Nós esperamos não ser tocados pelo coronavírus, mas, em qualquer caso,
o principal da Páscoa para os que temos fé é juntarmo-nos a Jesus junto do Pai.
Escola que desabou na Nigéria, AIS
Escola que desabou na Nigéria, AIS
Com a certeza de que no fim tudo acaba bem.
Entretanto ponhamos a render o tempo disponível para
reflectir em algumas consequências desta paragem na vida das pessoas e das
sociedades imposta pela catástrofe inédita da Covid19.
Abrandou a poluição do planeta, afrouxou o veneno que tantas
fábricas expelem para a atmosfera, para os nossos pulmões, tantos esgotos de
tantas tipos diminuíram o seu caudal, tantas más utilizações das dádivas da
Natureza ficaram como que em suspensão.
Diminuíram as mortes nas estradas, devem estar perto de
zero, uma vez que não há circulação de viaturas.
No final as pessoas vão perceber que talvez não precisem de
ir tantas vezes às compras, que podem poupar mais, que gastamos tantas vezes
tempo e dinheiro em futilidades. Que em vez de vivermos, temos desperdiçado a
melhor coisa que recebemos em toda a nossa vida: a vida.
Boko
Haram, AIS
É verdade que durante esta calamidade mundial, muitos
políticos dizem que primeiro está a economia, como Boris do Reino Unido, depois
o combate à pandemia, que outros aproveitam para fazer experiências de
lançamentos de mísseis, como o Kim da Coreia do Norte, como se a pandemia não
fosse já castigo suficiente para a Humanidade. De facto, estamos na Terra e
aqui nunca será estabelecido o Céu, por causa da nossa natureza belicosa. Mas
aprendamos com o sofrimento, com cada Via Crucis e comecemos desde já a viver à
maneira do Céu.
Orlando de Carvalho
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