O oitavo dia realiza a circularidade da vida. O primeiro dia da semana é o Alfa e o oitavo, sendo o mesmo é o Ómega. O Dia do Senhor é aquele que começa no primeiro dia da semana e termina no primeiro dia da semana seguinte, o oitavo da anterior. O Dia do Senhor é o colo do Pai que acolhe continuamente. Felizes aqueles que vivem no Dia do Senhor.
sábado, 30 de abril de 2016
Ontem à noite, a discussão entre catequistas era para responder à questão:
- Que mudanças implica na nossa forma de fazer catequese a preocupação de formar discípulos missionários.
Como referi então, que bom seria se todos os bispos tivessem sido catequistas paroquiais!
Hoje de manhã, estive com crianças que dentro de dias receberão o baptismo e comungarão pela primeira vez.
Em dado momento, coloquei-lhes o cenário seguinte.
Todos os anos há meninos e meninas, como vós, que levo à comunhão. Não obstante as nossas conversas, há sempre quem suba a igreja e comungue e volte para o lugar. Por vezes, ajoelham-se durante três segundos e levantam-se logo a conversar com o colega do lado. Poderão eles ter saboreado o Corpo de Jesus? Outros há para quem o dia da Primeira Comunhão é o último dia de catequese. Quando não também o de missa, até haver algum casamento ou baptizado! A medo perguntei, a medo porque as respostas das crianças podem ser muito embaraçosas:
- Que acham que andaram a fazer na catequese essas meninas e esses meninos? E nós catequistas que, com tanto gosto, gastamos tanto tempo convosco, empregámos bem o nosso tempo?
As crianças atropelaram-se nas respostas. Todas queriam marcar a opinião de que aqueles que passam pela catequese só para receber a comunhão, nada vão lá fazer. Melhor fora que não tivesse ido. Que não querem ser assim, querem a catequese pela catequese.
Graças a Deus. A resposta à questão que na véspera fora colocada aos catequistas estava respondida. Não com argumentos teológicos, sociológicos, nem tão pouco pedagógicos. Era vivência pura. Alguém do Alto inspirava aquelas palavras e nós catequistas ficávamos maravilhados a escutá-las.
quarta-feira, 20 de abril de 2016
Compasso
Sentimos numa igreja de Paris, cheia com uns quatro mil portugueses, dentro e no adro, o desejo ardente de chegar à Cruz, no final da missa de Domingo de Páscoa.
O mesmo sentimento percorre as nossas paróquias em Portugal, não como noutros tempos, mas com a mesma intensidade.
Muitos fiéis não serão capazes de explicar a razão porque querem chegar à Cruz, não sabem por que o fazem, mas encaminham-se para ela e só voltam depois de a beijar ou de lhe tocar, pelo menos.
O senhor prior ia fazer a visita pascal, ou compasso, conforme as terras o nome varia, no Domingo de Páscoa, ou distribuída por este Domingo e seguintes ou na primeira semana de Páscoa, conforme as terras e os seus costumes.
Hoje, cada pároco tem muitas paróquias. Uns optaram por não fazer a visita pascal, outros encarregam leigos, porque eles são Igreja.
As portas estão já abertas quando chegam a Cruz, quem a transporta e quem acompanha. Estão abertas com alegria, sente-se a alegria imensa de quem está do lado de dentro da porta, com uma mesa apetecível para receber os enviados da Igreja e receber a bênção da água benta da Vigília Pascal, beijar a Cruz e, muitas vezes, entregar ainda um envelope para a paróquia.
Neste tempo, muitos grupos de fiéis percorrem as ruas, normalmente mais de um grupo em cada paróquia, para poderem chegar a todas as casas em que são desejados.
As fotos são de Melres e do Cadafaz, mas são do que se faz por todo o lado. A alegria da Ressurreição do Senhor e da nossa própria enche os corações atribulados que então encontram a paz do Ressuscitado e a satisfação de convívio pascal.
O mesmo sentimento percorre as nossas paróquias em Portugal, não como noutros tempos, mas com a mesma intensidade.
Muitos fiéis não serão capazes de explicar a razão porque querem chegar à Cruz, não sabem por que o fazem, mas encaminham-se para ela e só voltam depois de a beijar ou de lhe tocar, pelo menos.
O senhor prior ia fazer a visita pascal, ou compasso, conforme as terras o nome varia, no Domingo de Páscoa, ou distribuída por este Domingo e seguintes ou na primeira semana de Páscoa, conforme as terras e os seus costumes.
Hoje, cada pároco tem muitas paróquias. Uns optaram por não fazer a visita pascal, outros encarregam leigos, porque eles são Igreja.
As portas estão já abertas quando chegam a Cruz, quem a transporta e quem acompanha. Estão abertas com alegria, sente-se a alegria imensa de quem está do lado de dentro da porta, com uma mesa apetecível para receber os enviados da Igreja e receber a bênção da água benta da Vigília Pascal, beijar a Cruz e, muitas vezes, entregar ainda um envelope para a paróquia.
Neste tempo, muitos grupos de fiéis percorrem as ruas, normalmente mais de um grupo em cada paróquia, para poderem chegar a todas as casas em que são desejados.
As fotos são de Melres e do Cadafaz, mas são do que se faz por todo o lado. A alegria da Ressurreição do Senhor e da nossa própria enche os corações atribulados que então encontram a paz do Ressuscitado e a satisfação de convívio pascal.
Política dentro da Cúria Romana
O Papa João Paulo II mandou pela instrução Sanctorum Mate, em 17 de Maio de 2007, que a língua portuguesa fosse incluída entre as línguas de trabalho na Congregação para a Causa dos Santos. E tinha já nomeado em 1988 o Cardeal José Saraiva Martins perfeito desta Congregação.
Como acontece desde há séculos, há sempre na Santa Sé quem tema a influência portuguesa, nomeadamente Espanha. Não sabemos a quem estaremos agora a incomodar, mas a alguém deve ser. Os eminentíssimos cardeais desta Congregação, ou outros, querem excluir o português dos trabalhos, alegando que se trata de uma língua dificílima. Mas não se queixam do latim, do castelhano ou do italiano.
A Conferência Episcopal Portuguesa já conversou sobre o assunto e deliberou fazer pressão para que a nossa língua não seja excluída, até porque isso obrigará a traduzir para uma das outras línguas todos os volumes e processos das causas de portugueses, brasileiros... E ficarão a ganhar os espanhóis e seus co-falantes.
Nós e os nossos bispos parecemos não ter jeito para fazer os nossos pontos de vista, nem falando alto, nem usando a diplomacia. Sempre baixinhos e subservientes.
domingo, 17 de abril de 2016
São José continua a cuidar de Jesus
Eu tinha uma grande tristeza no meu coração sempre que ia
hospital da minha área, não por razões médicas, mas espirituais.
O hospital tem um espaço religioso, onde até se celebrava
missa, mas onde, ao contrário dos outros hospitais, nem uma cruz podia existir
quando o capelão não estava presente e havia celebração. Baseada na lei
existente, a administração do hospital persistia, desde a inauguração, numa
obstinada proibição de uma capela, contrariando o sentir de maioria dos doentes
do hospital, mas em consonância com a guerra à Cruz que alastra por toda a
Europa.
Quando visito os doentes, ao Domingo de manhã, em quase
todos os quartos as televisões estão sintonizadas na missa, em muitos casos os
doentes participam na missa da RTP e depois na da TVI, o que revela bem o
desejo dos utilizadores do hospital.
Certo Domingo, ao ir à ‘capela’, que não o era, pois quando
não havia missa nada a distinguia de qualquer outra sala, deixei uma medalha de
S. José em cima do altar, que também não era mais que uma mesa, sem dignidade
visível.
A medalhinha com a imagem do pai putativo de Jesus,
discretamente seria a presença cristã naquele lugar, em permanência.
A medalha desapareceu da mesa, mas surgiu depois no
porta-chaves em que estava a chave do sacrário.
A Beata Maria Repetto tinha grande devoção a São José e ela
divulgava a sua devoção distribuindo medalhinhas com a imagem do Patrono da
Igreja Universal, o custódio do Menino Jesus, por vontade do Pai, às pessoas.
Santo André Bessette foi talvez o maior divulgador da
devoção ao Pai da Igreja. Também Santo André usou as medalhinhas com a imagem
de S. José e através delas conseguiu de Deus muitos milagres de cura e de
conversão. Inclusivamente usou medalhas para massajar pessoas doentes e elas
revelaram-se remédio maravilhoso, por intercessão de S. José e desígnio de
Deus.
Eu creio que S. José, através da medalha com a sua imagem,
conseguiu de Deus mais um milagre. Na minha visita seguinte ao hospital, a sala
de culto já era uma verdadeira capela com Crucifixo, oratório da Sagrada
Família, imagem de Nossa Senhora de Fátima e Sacrário iluminado.
Louvado seja Deus, que enviou o seu próprio Filho a salvar
cada pessoa.
Louvado seja Deus que suscitou em S. José a disponibilidade
para proteger e cuidar nesta terra do seu Filho, Jesus, e de Maria, sua Mãe
santíssima.
Louvado seja S. José que, tendo protegido Jesus e Maria,
cuida agora da Igreja, continuando assim a cuidar do Corpo do seu Menino.
Invoquemos S. José todos os dias para o cuidado da Igreja e
das nossas famílias.
Imagem: "São José e o Cristo Menino" - Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682)
domingo, 10 de abril de 2016
Os milagres da pesca milagrosa
A Pesca Milagrosa, Giovanni
Francesco Gessi, 1645
|
Neste terceiro Domingo do tempo pascal (10 de Abril de 2016), a liturgia convida-nos à meditação do milagre da pesca milagrosa. No evangelho abaixo reproduzido, encontramos, não um, mas vários milagres.
- Jesus, já morto e ressuscitado, voltou a manifestar-Se.
- Os discípulos aceitaram a palavra de um 'estranho', pois não tinham reconhecido Jesus.
- A súbita abundância de peixes, quando minutos não nem um havia. Este é o milagre que habitualmente é considerado.
- O amor de Pedro a Jesus expresso na rapidez com que abandona o barco, o peixe, os colegas, tudo, para ir ao encontro do Senhor, percorrendo os 90 metros que o separam da margem a nado e em corrida.
- No regresso a terra, Jesus já está sentado à mesa, a cozinhar peixe. De onde teria surgido este peixe? Não tinha já antes Jesus suscitado peixe e pães para alimentar uma multidão? Será mais difícil suscitar peixe no mar para ser pescado, vivo, ou sobre as brasas, para ser comido?
- A humildade de Deus que, tendo já peixe sobre as brasas, e sendo o verdadeiro autor da pesca feita pelos discípulos, pede para juntarem às brasas algum peixe obra do seu trabalho como pescadores.
- São 153 peixes. Aqui é o autor evangélico que estava presente e quis que soubéssemos que esta narração era real e não uma história ou parábola. Aqueles peixes eram coisa concreta e real.
- O texto explica bem que Jesus, tomou o pão e também o peixe e lhes deu, manifestando-Se. Ter-se-á manifestado como em Emaús, repetindo o gesto do Cenáculo, então com o pão e o vinho. E deixa-nos pensativos em relação ao pedido feito pelos católicos inuit (esquimós), e rejeitado pela Santa Sé, para que entre eles pudessem consagrar peixe em vez de pão, que era coisa desconhecida e misteriosa na sua cultura e vida sobre o gelo estéril.
- Jesus, partindo do pecado de Pedro quando O atraiçoou, negando-O por três vezes, leva-o a fazer uma tripla profissão de fé, consubstanciando deste modo o perdão, a reconciliação e a reabilitação de um pecador elevado ao mais alto cargo da Igreja terrena.
EVANGELHO – Jo 21, 1-19
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, Jesus manifestou-Se outra vez aos seus discípulos, junto do mar de Tiberíades. Manifestou-Se deste modo: Estavam juntos Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo, Natanael, que era de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu e mais dois discípulos de Jesus. Disse-lhes Simão Pedro: «Vou pescar». Eles responderam-lhe: «Nós vamos contigo». Saíram de casa e subiram para o barco, mas naquela noite não apanharam nada. Ao romper da manhã, Jesus apresentou-Se na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele. Disse-lhes Jesus: «Rapazes, tendes alguma coisa de comer?». Eles responderam: «Não». Disse-lhes Jesus: «Lançai a rede para a direita do barco e encontrareis». Eles lançaram a rede e já mal a podiam arrastar por causa da abundância de peixes. O discípulo predilecto de Jesus disse a Pedro: «É o Senhor». Simão Pedro, quando ouviu dizer que era o Senhor, vestiu a túnica que tinha tirado e lançou-se ao mar. Os outros discípulos, que estavam apenas a uns duzentos côvados da margem, vieram no barco, puxando a rede com os peixes. Quando saltaram em terra, viram brasas acesas com peixe em cima, e pão. Disse-lhes Jesus: «Trazei alguns dos peixes que apanhastes agora». Simão Pedro subiu ao barco e puxou a rede para terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixes; e, apesar de serem tantos, não se rompeu a rede. Disse-lhes Jesus: «Vinde comer». Nenhum dos discípulos se atrevia a perguntar-Lhe: «Quem és Tu?», porque bem sabiam que era o Senhor. Jesus aproximou-Se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com os peixes. Esta foi a terceira vez que Jesus Se manifestou aos seus discípulos, depois de ter ressuscitado dos mortos. Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-Me mais do que estes?». Ele respondeu-Lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo». Disse-lhe Jesus: «Apascenta os meus cordeiros». Voltou a perguntar-lhe segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?». Ele respondeu-Lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo». Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas». Perguntou-lhe pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu amas-Me?». Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter perguntado pela terceira vez se O amava e respondeu-Lhe: «Senhor, Tu sabes tudo, bem sabes que Te amo». Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas. Em verdade, em verdade te digo: Quando eras mais novo, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias; mas quando fores mais velho, estenderás a mão e outro te cingirá e te levará para onde não queres». Jesus disse isto para indicar o género de morte com que Pedro havia de dar glória a Deus. Dito isto, acrescentou: «Segue-Me».
sexta-feira, 8 de abril de 2016
Amoris Laetitia
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
AOS ESPOSOS CRISTÃOS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
1. A alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da
Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio – como foi observado
pelos Padres sinodais – « o desejo de família permanece vivo, especialmente entre
os jovens, e isto incentiva a Igreja ». Como resposta a este anseio, « o anúncio
cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia ».
2. O caminho sinodal
permitiu analisar a situação das famílias no mundo actual, alargar a nossa
perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimónio e
da família.
Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas tratados
mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas
questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e
teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a
alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação
ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo
desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à
atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou
deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero
reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser
resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é
necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam
maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas
consequências que decorrem dela. Assim há-de acontecer até que o Espírito nos
conduza à verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos
introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu
olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais
inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais.
De facto, « as culturas são muito diferentes entre si e cada
princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado
».
4. Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal se
revestiu duma grande beleza e proporcionou muita luz. Agradeço tantas
contribuições que me ajudaram a considerar, em toda a sua amplitude, os
problemas das famílias do mundo inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres,
que ouvi com atenção constante, pareceu-me um precioso poliedro, formado por
muitas preocupações legítimas e questões honestas e sinceras.
Por isso, considerei oportuno redigir uma Exortação
Apostólica pós-sinodal que recolha contribuições dos dois Sínodos recentes
sobre a família, acrescentando outras considerações que possam orientar a
reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam coragem, estímulo
e ajuda às famílias na sua doação e nas suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial no
contexto deste Ano Jubilar da Misericórdia, em primeiro lugar, porque a vejo
como uma proposta para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons
do matrimónio e da família e a manter um amor forte e cheio de valores como a
generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; em segundo lugar,
porque se propõe encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade
para a vida familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se
desenrole em paz e alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura
inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso,
considerarei a situação actual das famílias, para manter os pés assentes na
terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre
o matrimónio e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao
amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir
famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à
educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao
discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que
o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do caminho
sinodal ofereceram, esta Exortação aborda, com diferentes estilos, muitos e
variados temas. Isto explica a sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho
uma leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para as
famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma
parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância
concreta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais com o
quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais tenham especial interesse
pelo capítulo sexto, e que todos se sintam muito interpelados pelo oitavo.
Espero que cada um, através da leitura, se sinta chamado a cuidar com amor da
vida das famílias, porque elas « não são um problema, são sobretudo uma oportunidade
».
CAPÍTULO I
À LU Z DA PALAVRA
8. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias
de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a
família de Adão e Eva, com o seu peso de violência mas também com a força da
vida que continua (cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias
da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap 21, 2.9). As duas casas de que fala Jesus,
construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7,24-27), representam
muitas situações familiares, criadas pela liberdade de quantos habitam nelas, porque
– como escreve o poeta – « toda a casa é um candelabro ». Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo
Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer
judaica quer cristã:
« Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos
serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua
mesa.
Assim vai ser
abençoado
o homem que
obedece ao Senhor.
O Senhor te
abençoe do monte Sião!
Possas contemplar
a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da
tua vida,
e chegues a ver os
filhos dos teus filhos.
Paz a Israel! » (Sl
128/127, 1-6).
Tu e a tua esposa
9. Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua
família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o
casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se
realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «
Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher? » (Mt
19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: « Por esse motivo, o
homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só
carne » (Gn 2, 24).
10. Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos do Génesis
oferecem-nos a representação do casal humano na sua realidade fundamental. Naquele
trecho inicial da Bíblia, sobressaem algumas afirmações decisivas. A primeira,
citada sinteticamente por Jesus, declara: « Deus criou o ser humano à sua
imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher » (1, 27). Surpreendentemente,
a « imagem de Deus » tem como paralelo explicativo precisamente o casal « homem
e mulher ». Quererá isto significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu
lado uma companheira divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não,
obviamente! Sabemos com quanta clareza a Bíblia rejeitou como idolátricas tais
crenças, generalizadas entre os cananeus da Terra Santa. Preserva-se a
transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a
fecundidade do casal humano é « imagem » viva e eficaz, sinal visível do acto
criador.
11. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira « escultura
» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar
Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o símbolo das
realidades íntimas de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16;
28, 3; 35, 11; 48, 3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se à
chamada « tradição sacerdotal », aparece permeada por várias sequências
genealógicas (cf. Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11,
10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal humano tem
de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta
luz, a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever
o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus,
contempla o Pai, o Filho e o Espírito de amor. O Deus Trindade é comunhão de
amor; e a família, o seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas
palavras de São João Paulo II:
« O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não é solidão,
mas uma família, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da
família, que é o amor. Este amor, na família divina, é o Espírito Santo ».6 Concluindo, a família não é alheia à própria
essência divina.7 Este aspecto trinitário
do casal encontra uma nova representação na teologia paulina, quando o Apóstolo
relaciona o casal com o « mistério » da união entre Cristo e a Igreja (cf. Ef
5, 21-33).
12. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio, alude a
outra página do Génesis – o capítulo 2 – onde aparece um retrato admirável do
casal com detalhes elucidativos. Escolhemos apenas dois. O primeiro é a
inquietação vivida pelo homem, que busca « uma auxiliar semelhante » (vv.
18.20), capaz de resolver esta solidão que o perturba e que não encontra
remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. A expressão original
hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase « frontal » – olhos nos
olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios
costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um
« tu » que reflecte o amor divino e constitui – como diz um sábio bíblico – « o
primeiro dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna de apoio » (Sir
36, 24). Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, numa
confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, « o meu amado é para mim
e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim » (2, 16;
6, 3).
13. Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a
família. Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também
o homem de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente
com a sua esposa dá origem a uma nova família, como afirma Jesus citando o
Génesis: « Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só » (Mt
19, 5; cf. Gn 2, 24). No original
hebraico, o verbo « unir-se » indica uma estreita sintonia, uma adesão física e
interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como canta o
orante: « A minha alma está unida a Ti » (Sl 63/62, 9). Deste modo,
evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas
também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é « tornar-se uma
só carne », quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e,
porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas «
carnes », unindo-as genética e espiritualmente.
Os teus filhos como rebentos de oliveira
14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro da casa onde o
homem e a sua esposa estão sentados à mesa, aparecem os filhos que os acompanham
« como rebentos de oliveira » (Sl 128/127, 3), isto é, cheios
de energia e vitalidade.
Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos
constituem as « pedras vivas » da família (cf. 1 Ped 2,
5). É significativo que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes
depois da designação divina (YHWH, o « Senhor ») é « filho
» (ben), um termo que remete para o verbo hebraico que
significa « construir » (banah). Por isso, noutro
Salmo, exalta-se o dom dos filhos com imagens que aludem quer à edificação duma
casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às portas da cidade: «
Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. (...) Olhai:
os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva.
Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são os filhos nascidos na
juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua aljava! Não será envergonhado
pelos seus inimigos, quando com eles discutir às portas da cidade » (Sl
127/126,1.3-5). É verdade que estas imagens reflectem a cultura duma
sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo o caso, um sinal de
plenitude da família na continuidade da mesma história de salvação, de geração
em geração.
15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família.
Sabemos que, no Novo Testamento, se fala da « igreja que se reúne em casa »
(cf. 1 Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col
4, 15; Flm 2). O espaço vital duma
família podia transformar-se em igreja doméstica, em local da Eucaristia, da
presença de Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a cena descrita no
Apocalipse: « Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e
abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo » (3, 20).
Esboça-se assim uma casa que abriga no seu interior a presença de Deus, a
oração comum e, por conseguinte, a bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no
Salmo 128, que nos serviu de base: « Assim vai ser abençoado o homem que obedece
ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião! » (vv. 4-5).
16. A Bíblia considera a família também como o local da
catequese dos filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração pascal
(cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) – mais tarde
explicitado na haggadah judaica –,
concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo
exalta o anúncio familiar da fé: « O que ouvimos e aprendemos e os nossos
antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos
às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que
Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou
aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras
a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios
filhos » (Sl 78/77, 3-6). Por isso, a família é o lugar onde
os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma tarefa «
artesanal », pessoa a pessoa: « Se amanhã o teu filho te perguntar (...),
dir-lhe-ás... » (Ex 13, 14). Assim, entoarão o
seu canto ao Senhor as diferentes gerações, « os jovens e as donzelas, os velhos
e as crianças » (Sl 148, 12).
17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua
missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr
3, 11-12; 6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17). Os filhos são
chamados a receber e praticar o mandamento
« honra o teu pai e a tua mãe » (Ex 20,
12), querendo o verbo « honrar » indicar o cumprimento das obrigações
familiares e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas
(cf. Mc 7, 11-13). Com efeito, « o que honra o pai
alcança o perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que
acumula tesouros » (Sir 3, 3-4).
18. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma
propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade
que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terrenos,
submetendo-Se a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que
Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã podem
exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus (cf. Mt
10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda!
Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que
tem uma missão mais alta a realizar para além da sua família histórica (cf. Lc
2, 48-50). Por isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos,
mesmo dentro das relações familiares: « Minha mãe e meus irmãos são aqueles que
ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática » (Lc 8,
21). Por outro lado, Jesus presta tal atenção às crianças – consideradas, na
sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e
inclusivamente como parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor
aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos
outros. « Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não
podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será
o maior no Reino do Céu » (Mt 18, 3-4).
Um rasto de sofrimento e sangue
19. O idílio, que o Salmo 128 apresenta, não nega uma amarga
realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal,
da violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e
de amor. Não é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt
19, 3-9) apareça inserido numa disputa a respeito do divórcio. A
Palavra de Deus é testemunha constante desta dimensão obscura que assoma já nos
primórdios, quando, com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e a
mulher se transforma num domínio: « Procurarás apaixonadamente o teu marido,
mas ele te dominará » (Gn 3, 16).
20. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas
páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e
dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão,
Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de
David, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de
Tobias ou a confissão amarga de Job abandonado: Deus « afastou de mim os meus
irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (...) A minha mulher
sente repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos
» (Jb 19, 13.17).
21. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que à pressa
tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra
está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver
no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc
5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44), ouve o pranto
desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc
7, 11-15); atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação
rural (cf. Mc 9, 17-27). Encontra-Se com publicanos, como
Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias casas (cf. Mt 9,
9-13; Lc 19, 1-10), e também com pecadoras, como a mulher
que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Conhece as
ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas parábolas: desde
filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura (cf. Lc
15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos inexplicáveis (cf.
Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf. Mc
12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa que se vive
numas bodas pela falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos
convidados a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece também
o pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre (cf. Lc
15, 8-10).
22. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de
Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas como uma
companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas
nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus « enxugar
todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem
pranto, nem dor » (Ap 21, 4).
O fruto do teu próprio trabalho
23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um
trabalhador que pode, com a obra das suas mãos, manter o bem-estar físico e a
serenidade da sua família: « Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim
serás feliz e viverás contente » (v. 2). O facto de o trabalho ser uma parte
fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras páginas da
Bíblia, quando se afirma que Deus « colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o
cultivar e, também, para o guardar » (Gn 2, 15). Temos aqui a imagem
do trabalhador que transforma a matéria e aproveita as energias da criação,
fazendo nascer o « pão de tanta fadiga » (Sl 127/126, 2), para além de
se cultivar a si mesmo.
24. O trabalho torna possível simultaneamente o
desenvolvimento da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade
e fecundidade: « Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da
tua vida e chegues a ver os filhos dos teus filhos » (Sl
128/127, 5-6). No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da
mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões
diárias, merecendo o elogio do marido e dos filhos (cf. 31, 10-31). O próprio apóstolo
Paulo sentia-se orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros,
porque trabalhou com as suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento (cf. Act
18, 3; 1 Cor 4, 12; 9, 12). Estava tão
convencido da necessidade do trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para
as suas comunidades: « Se alguém não quer trabalhar, também não coma » (2
Ts 3,10; cf. 1 Ts 4, 11).
25. Dito isto, compreende-se que o desemprego e a
precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como
lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça
da localidade (cf. Mt 20, 1-16),
ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se muitas vezes
rodeado de necessitados e famintos. Isto mesmo vive tragicamente a sociedade
actual em muitos países, e esta falta de emprego afecta, de várias maneiras, a
serenidade das famílias.
26. Também não podemos esquecer a degeneração que o pecado
introduz na sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a
natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como
consequência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo (cf. Gn
3, 17-19) e os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais
se levanta, abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (cf. 1
Re 21) até chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a
injustiça (cf. Lc 12, 13-21; 16,1-31).
A ternura do abraço
27. Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs
sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt
22, 39; Jo 13, 34), e fê-lo através
dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida: «
Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos » (Jo
15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão. Nesta
linha, é emblemática a cena que nos apresenta uma adúltera na explanada do
templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e, depois, sozinha
com Jesus, que não a condena mas convida-a a uma vida mais digna (cf. Jo
8, 1-11).
28. No horizonte do amor, essencial na experiência cristã do
matrimónio e da família, destaca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes
tempos de relações frenéticas e superficiais: a ternura. Detenhamo-nos no terno
e denso Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos (cf. Ex
4, 22; Is 49, 15; Sl
27/26,10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é expressa com
traços de amor paterno e materno. Lá aparece a intimidade delicada e carinhosa
entre a mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme nos braços de sua mãe
depois de ter sido amamentado. Como indica a palavra hebraica gamùl,
trata-se dum menino que acaba de mamar e se agarra conscientemente à mãe que o
leva ao colo. É, pois, uma intimidade consciente, e não meramente biológica.
Por isso canta o Salmista: « Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao
colo da mãe » (Sl 131/130, 2). Paralelamente,
podemos ver outra cena na qual o profeta Oseias coloca na boca de Deus, visto
como pai, estas palavras comoventes: « Quando Israel era ainda menino, Eu
amei-o (...), Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços (...).
Segurava--o com laços de ternura, com laços de amor, fui para ele como os que
levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar
de comer » (Os 11, 1.3-4).
29. Com este olhar feito de fé e amor, de graça e
compromisso, de família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a
Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que
formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e
o Espírito Santo. Por sua vez, a actividade geradora e educativa é um reflexo
da obra criadora do Pai. A família é chamada a compartilhar a oração diária, a
leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e
tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.
30. Cada família tem diante de si o ícone da família de
Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando
teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes, experiência que ainda
hoje se repete tragicamente em muitas famílias de refugiados descartados e
inermes. Como os Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com
sua Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria, são
exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e
entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc
2, 19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os
acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente.
Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecer a mensagem de Deus
na história familiar.
CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS
FAMÍLIAS
31. O bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja.
Inúmeras são as análises feitas sobre o matrimónio e a família, sobre as suas
dificuldades e desafios actuais. É salutar prestar atenção à realidade
concreta, porque « os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos
acontecimentos da história » através dos quais « a Igreja pode ser guiada para
uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da
família ». Não tenho a pretensão de
apresentar aqui tudo aquilo que poderia ser dito sobre os vários temas
relacionados com a família no contexto actual. Mas, dado que os Padres sinodais
ofereceram um panorama da realidade das famílias de todo o mundo, considero oportuno
recolher algumas das suas contribuições pastorais, acrescentando outras
preocupações derivadas da minha própria visão.
A situação actual da fa mília
32. « Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade
actual da família em toda a sua complexidade, nas suas luzes e sombras. (...)
Hoje, a mudança antropológico-cultural influencia todos os aspectos da vida e
requer uma abordagem analítica e diversificada ».
Já no contexto de várias décadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam
uma realidade doméstica com mais espaços de liberdade, « com uma distribuição
equitativa de encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valorizando mais a
comunicação pessoal entre os esposos, contribui-se para humanizar toda a vida familiar.
(...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos permitem a
sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado ». Mas « estamos conscientes da direcção que vão
tomando as mudanças antropológico-culturais, em razão das quais os indivíduos são
menos apoiados do que no passado pelas estruturas sociais na sua vida afectiva
e familiar ».
33. Por outro lado, « há que considerar o crescente perigo
representado por um individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares e
acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo
prevalecer, em certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói segundo os
seus próprios desejos assumidos com carácter absoluto ». « As tensões causadas por uma cultura individualista exagerada
da posse e fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e
agressividade ». Gostaria de acrescentar o
ritmo da vida actual, o stresse, a organização social e laboral, porque são
factores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções permanentes.
Ao mesmo tempo, encontramo-nos perante fenómenos ambíguos. Por exemplo,
aprecia-se uma personalização que aposte na autenticidade em vez de reproduzir comportamentos
prefixados. É um valor que pode promover as diferentes capacidades e a
espontaneidade, mas, se for mal orientado, pode criar atitudes de permanente
suspeita, fuga dos compromissos, confinamento no conforto, arrogância. A liberdade
de escolher permite projectar a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo, mas,
se não se tiver objectivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa
incapacidade de se dar generosamente. De facto, em muitos países onde diminui o
número de matrimónios, cresce o número de pessoas que decidem viver sozinhas ou
que convivem sem coabitar. Podemos assinalar também um louvável sentido de
justiça; mas, mal compreendido, transforma os cidadãos em clientes que só
exigem o cumprimento de serviços.
34. Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender
a família, esta pode transformar-se num lugar de passagem, aonde uma pessoa vai
quando lhe parecer conveniente para si mesma ou para reclamar direitos,
enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das
circunstâncias. No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com a
ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos,
não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual
e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial com um
compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas
conveniências contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão,
deseja-se um espaço de protecção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o
medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das
aspirações pessoais. 35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o
matrimónio, para não contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou
por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos
a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não
tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males actuais, como se isso
pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela
força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que
consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimónio e a
família, de modo que as pessoas estejam melhor preparadas para responder à
graça que Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para
reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a
forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos
lamentamos, pelo que nos convém uma
salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentámos de tal
maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o
ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever
da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos
seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas
linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentámos um
ideal teológico do matrimónio demasiado abstracto, construído quase artificialmente,
distante da situação concreta e das possibilidades efectivas das famílias tais como
são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança
na graça, não fez com que o matrimónio fosse mais desejável e atraente; muito
pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensámos que, com a simples
insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura
à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo
dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade
em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização
do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço
à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao
Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio
discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos
chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.
38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as
relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo
outro. Por isso, aprecia-se que a Igreja ofereça espaços de apoio e
aconselhamento sobre questões relacionadas com o crescimento do amor, a
superação dos conflitos e a educação dos filhos. Muitos estimam a força da
graça que experimentam na Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que lhes
permite enfrentar os desafios do matrimónio e da família. Nalguns países,
especialmente em várias partes da África, o secularismo não conseguiu
enfraquecer alguns valores tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma forte
união entre duas famílias alargadas, onde se conserva ainda um sistema bem
definido de gestão de conflitos e dificuldades. No mundo actual, aprecia-se
também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas
continuam a sustentar um projecto comum e conservam o afecto. Isto abre a porta
a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento
gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na defensiva
e gastámos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente,
com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não
sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo
claro da pregação e das atitudes de Jesus,
o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não
perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a
mulher adúltera.
39. Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural
que não promove o amor e a doação. As consultações que antecederam os dois últimos
Sínodos trouxeram à luz vários sintomas da « cultura do provisório ».
Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam duma relação
afectiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se
possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear
rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum compromisso
permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos e
benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter protecção
ou receber algum serviço. Transpõe-se para as relações afectivas o que acontece
com os objectos e o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa e joga fora,
gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo torna
as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e
necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser
usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. Faz impressão ver que as
rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos já de
meia-idade que buscam uma espécie de « autonomia » e rejeitam o ideal de
envelhecer juntos cuidando-se e apoiando-se.
40. « Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que
vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos
de possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros
tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família ». Nalguns países, muitos jovens « são
frequentemente levados a adiar o matrimónio por problemas de tipo económico,
laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a
influência das ideologias que desvalorizam o matrimónio e a família, a
experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo
de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e
os benefícios económicos derivados da convivência, uma concepção puramente
emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e a autonomia, a
rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e burocrático ». Precisamos de encontrar as palavras, as
motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos
jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compromisso, de amor e até
mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o
desafio de matrimónio.
41. Os Padres sinodais aludiram a certas « tendências culturais
que parecem impor uma afectividade sem qualquer limitação, (…) uma afectividade
narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior
maturidade ». Preocupa a « difusão da pornografia e da comercialização do
corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet » e
pela « situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição ».
Neste contexto, por vezes os casais sentem-se inseguros, indecisos,
custando-lhes a encontrar as formas para crescer. Muitos são aqueles que tendem
a ficar nos estádios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal
destabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a
ter sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo
o indivíduo e os laços sociais ». As
crises conjugais são « enfrentadas muitas vezes de modo apressado e sem a
coragem da paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e
até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais,
novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas e
problemáticas para a opção cristã ».
42. « A própria queda demográfica, causada por uma
mentalidade anti natalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde
reprodutiva, não só determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa
de estar garantida, mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um
empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O avanço das
biotecnologias também teve um forte impacto sobre a natalidade ». Podem juntar-se outros factores, como « a
industrialização, a revolução sexual, o temor da superpopulação, os problemas
económicos (...). A sociedade de consumo também pode dissuadir as pessoas de
ter filhos, só para manter a sua liberdade e estilo de vida ». É verdade que a consciência recta dos esposos,
quando foram muito generosos na transmissão da vida, pode orientá-los para a
decisão de limitar o número dos filhos por razões suficientemente sérias; e
também « por amor desta dignidade da consciência, a Igreja rejeita com todas as
suas forças as intervenções coercitivas do Estado a favor da contracepção, da
esterilização e até mesmo do aborto ».20 Estas
medidas são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é
notável que os políticos as incentivem também nalguns países que sofrem o drama
duma taxa de natalidade muito baixa.
Como assinalaram os bispos da Coreia, isto é « agir de forma
contraditória e negligenciando o próprio dever ».
43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa, nalgumas
sociedades, afecta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas
dificuldades. Os Padres disseram que « uma das maiores pobrezas da cultura
actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da
fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à
realidade socioeconómica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias. (...)
Frequentemente as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a pouca
atenção das instituições. As consequências negativas sob o ponto de vista da
organização social são evidentes:
da crise demográfica às dificuldades educativas, da fadiga
em acolher a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até à difusão
dum mal-estar afectivo que às vezes chega à violência. O Estado tem a
responsabilidade de criar as condições legislativas e laborais para garantir o
futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família
».
44. A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas
vezes a adiar a formalização duma relação. É preciso lembrar que « a família
tem direito a uma habitação condigna, apropriada para a vida familiar e
proporcional ao número dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que
proporcione os serviços básicos para a vida da família e da comunidade ». Uma família e uma casa são duas realidades que
se reclamam mutuamente. Este exemplo mostra que devemos insistir nos direitos
da família, e não apenas nos direitos individuais. A família é um bem de que a sociedade
não pode prescindir, mas precisa de ser protegida.
A defesa destes direitos é « um apelo profético a favor da instituição
familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão », sobretudo no contexto actual em que
habitualmente ocupa pouco espaço nos projectos políticos. As famílias têm,
entre outros direitos, o de « poder contar com uma adequada política
familiar por parte das autoridades públicas no campo
jurídico, económico, social e fiscal ». Às
vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas, quando têm de enfrentar a
doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando
se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. « As coerções económicas
excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida social
activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão social. As
famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao trabalho. As
possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é muito
selectiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes, agravadas
pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre si
e com os filhos, para alimentar diariamente as suas relações ».
45. « Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio, especialmente
nalguns países, e muitos são os que, em seguida, crescem com um só dos progenitores
e num contexto familiar alargado ou reconstituído. (...) Por outro lado, a
exploração sexual da infância constitui uma das realidades mais escandalosas e
perversas da sociedade actual. Além disso, nas sociedades feridas pela violência
da guerra, do terrorismo ou da presença do crime organizado, acabam
deterioradas as situações familiares, sobretudo nas grandes metrópoles, e nas
suas periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua ».28 O abuso sexual das crianças torna-se ainda
mais escandaloso, quando se verifica em ambientes onde deveriam ser protegidas,
particularmente nas famílias e nas comunidades e instituições cristãs.
46. As migrações « constituem outro sinal dos tempos, que
deve ser enfrentado e compreendido com todo o seu peso de consequências sobre a
vida familiar ». O último Sínodo atribuiu
grande importância a esta problemática ao reconhecer que, « sob modalidades
diferentes, atinge populações inteiras em várias partes do mundo. A Igreja desempenhou,
neste campo, papel de primária grandeza. A necessidade de manter e desenvolver este
testemunho evangélico (cf. Mt 25, 35) aparece hoje mais
urgente do que nunca. (...) A mobilidade humana, que corresponde ao movimento histórico
natural dos povos, pode revelar-se uma verdadeira riqueza tanto para a família
que emigra como para o país que a recebe. Caso diferente é a migração forçada
das famílias, em consequência de situações de guerra, perseguição, pobreza,
injustiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem que, muitas vezes, põe em
perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as famílias. O
acompanhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida tanto às
famílias que emigram como aos membros dos núcleos familiares que ficaram nos
lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas culturas, a formação
religiosa e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos seus ritos e
tradições, inclusive através dum cuidado pastoral específico. (...) As
migrações revelam-se particularmente dramáticas e devastadoras tanto para as
famílias como para as pessoas, quando têm lugar à margem da legalidade e são sustentadas
por circuitos internacionais do tráfico de pessoas. O mesmo se pode dizer
quando envolvem mulheres ou crianças não acompanhadas, forçadas a estadias prolongadas
nos locais de passagem entre um país e outro, nos campos de refugiados, onde
não é possível iniciar um percurso de integração. A pobreza extrema e outras situações
de desintegração induzem, por vezes, as famílias até mesmo a vender os próprios
filhos para a prostituição ou o tráfico de órgãos ». « As perseguições dos
cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em várias partes do mundo,
especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande prova: não só para a
Igreja mas também para toda a comunidade internacional. Devem ser apoiados
todos os esforços para favorecer a permanência das famílias e das comunidades cristãs
nas suas terras de origem ».
47. Os Padres dedicaram especial atenção também « às
famílias das pessoas com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na
vida, gera um desafio profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os
desejos, as expectativas. (...) Merecem grande admiração as famílias que
aceitam, com amor, a prova difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à
sociedade um valioso testemunho de fidelidade ao dom da vida. A família poderá
descobrir, juntamente com a comunidade cristã, novos gestos e linguagens,
formas de compreensão e identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do
mistério da fragilidade. As pessoas com deficiência são, para a família, um dom
e uma oportunidade para crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...)
A família que aceita, com os olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência
poderá reconhecer e garantir a qualidade e o valor de cada vida, com as suas
necessidades, os seus direitos e as suas oportunidades. Tal família
providenciará assistência e cuidados e promoverá companhia e carinho em cada
fase da vida ». Quero sublinhar que a
atenção prestada tanto aos migrantes como às pessoas com deficiência é um sinal
do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas: põem especialmente em
questão o modo como se vive, hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da
integração das pessoas frágeis.
48. « A maioria das famílias respeita os idosos, rodeia-os
de carinho e considera-os uma bênção. Um agradecimento especial deve ser
dirigido às associações e movimentos familiares que trabalham a favor dos
idosos, sob o aspecto espiritual e
social (...). Nas sociedades altamente industrializadas, onde
o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os idosos
correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados que
requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos ». « A valorização da fase conclusiva da vida é,
hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade actual se tenta, de todos os
modos possíveis, ocultar o momento da passagem. Às vezes, a fragilidade e
dependência do idoso são iniquamente exploradas por mero proveito económico.
Muitas famílias ensinam-nos que é possível enfrentar os últimos anos da vida, valorizando
o sentido de realização e integração de toda a existência no mistério pascal.
Um grande número de idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde podem viver
num ambiente sereno e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e o
suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua
prática é legal em muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe
firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos
seus membros idosos e doentes ».
49. Quero assinalar a situação das famílias caídas na
miséria, penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem
sentir de forma lancinante. Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito
pobre, tornam-se mais duras. Por exemplo,
se uma mulher deve criar o seu filho sozinha, devido a uma separação ou por
outras causas, e tem de ir trabalhar sem a possibilidade de o deixar com outra
pessoa, o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de risco e
fica comprometido o seu amadurecimento pessoal. Nas situações difíceis em que
vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em
compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de
normas como se fossem uma rocha, tendo como resultado
fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por aquela Mãe que é
chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força
sanadora da graça e da
luz do Evangelho, alguns querem « doutrinar » o Evangelho,
transformá-lo em « pedras mortas para as jogar contra os outros ».
Alguns desafios
50. As respostas recebidas nas duas consultações, efectuadas
no caminho sinodal, mencionaram as mais diversas situações que colocam novos
desafios. Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função
educativa, que acaba dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a
casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o
hábito de comerem juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de
distracção, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil a
transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias
habitualmente padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por
prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão
cultural, vê-se agravado por um futuro profissional incerto, pela insegurança
económica ou pelo medo quanto ao futuro dos filhos.
51. Mencionou-se também a toxicodependência como um dos
flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las.
Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras
dependências. A família poderia ser o lugar da prevenção e das boas regras, mas
a sociedade e a política não chegam a perceber que uma família em risco « perde
a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...). Observamos as graves
consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados,
idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens desorientados
e sem regras ». Como apontaram os bispos
do México, há tristes situações de violência familiar que são terreno fértil
para novas formas de agressividade social, porque « as relações familiares
explicam também a predisposição para uma personalidade violenta. As famílias
que influem nesta direcção são aquelas em que há uma comunicação deficiente;
aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os seus membros não se
apoiam entre si; onde não há actividades familiares que favoreçam a
participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam ser conflituosas
e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por atitudes hostis. A
violência
no seio da família é escola de ressentimento e ódio nas
relações humanas básicas ».
52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família
como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade.
Antes pelo contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos
valores comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já
não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem
e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e
tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer a grande variedade de
situações familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões
de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente
equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da
vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa hoje com
fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam, acompanhá-los
no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da união conjugal?
53. « Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da
poligamia; noutros contextos, permanece a prática dos matrimónios combinados.
(...) Em muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se
largamente a prática da convivência que precede o matrimónio e também a prática
de convivências não orientadas para assumir a forma dum vínculo institucional
». Em vários países, a legislação facilita
o avanço de várias alternativas, de modo que um matrimónio com as características
de exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como
mais uma proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma
desconstrução jurídica da família, que tende a adoptar formas baseadas quase
exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo
rejeitar velhas formas de família « tradicional », caracterizadas pelo
autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar ao
desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua
renovação. A força da família « reside essencialmente na sua capacidade de amar
e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre
crescer a partir do amor ».
54. Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que,
apesar das melhorias notáveis registadas no reconhecimento dos direitos da
mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que avançar
nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco
a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os
maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um
sinal de força masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal,
física e sexual, perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a
própria natureza da união conjugal.
Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas culturas,
mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares onde
as decisões são tomadas. A história carrega os vestígios dos excessos das
culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe,
mas recordemos também o « aluguer de ventres » ou « a instrumentalização e
comercialização do corpo feminino na cultura mediática contemporânea ». Alguns consideram que muitos dos problemas
actuais ocorreram a partir da emancipação da mulher. Mas este argumento não é
válido, « é falso, não é verdade! Trata-se de uma forma de machismo ». A idêntica dignidade entre o homem e a mulher
impele a alegrar-nos com a superação de velhas formas de discriminação e o
desenvolvimento dum estilo de reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem
formas de feminismo que não podemos considerar adequadas, de igual modo
admiramos a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da
mulher e dos seus direitos.
55. O homem « desempenha um papel igualmente decisivo na
vida da família, especialmente na protecção e sustentamento da esposa e dos filhos.
(...) Muitos homens estão conscientes da importância do seu papel na família e
vivem-no com as qualidades peculiares da índole masculina. A ausência do pai
penaliza gravemente a vida familiar, a educação dos filhos e a sua integração na
sociedade. Tal ausência pode ser física, afectiva, cognitiva e espiritual. Esta
carência priva os filhos dum modelo adequado do comportamento paterno ».
56. Outro desafio surge de várias formas duma ideologia
genericamente chamada gender, que « nega a diferença
e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças
de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a
projectos educativos e directrizes legislativas que promovem uma identidade
pessoal e uma intimidade afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade
biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção
individualista, que também muda com o tempo ». Preocupa
o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas
aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único
que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que «
sexo biológico (sex) e função sociocultural do
sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar ». Por outro lado, « a revolução biotecnológica no
campo da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o acto
generativo, tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher.
Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades
componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos
indivíduos ou dos casais ». Uma coisa é
compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar
ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade.
Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas,
não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom.
Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa,
antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
57. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem
longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam
para diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das
reflexões sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um
interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de
alegrias, dramas e sonhos. As realidades que nos preocupam, são desafios. Não
caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações autodefensivas, em vez
de suscitar uma criatividade missionária. Em todas as situações, « a Igreja
sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os
grandes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa
a existência humana ». Se constatamos muitas
dificuldades, estas são – como disseram os bispos da Colômbia – um apelo para «
libertar em nós as energias da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos,
acções transformadoras e imaginação da caridade ».
CAPÍTULO III
O OLHAR FIXO EM JESUS: A
VOCAÇÃO DA FAMÍLIA
58. Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre
de novo o primeiro anúncio, que é o « mais belo, mais importante, mais atraente
e, ao mesmo tempo, mais necessário » e «
deve ocupar o centro da actividade evangelizadora ». É o anúncio principal, « aquele que sempre se tem de voltar a
ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar,
duma forma ou doutra ». Porque « nada há de
mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse
anúncio » e « toda a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do
querigma ».
59. O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a família não
pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e
ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida. Com
efeito, o próprio mistério da família cristã só se pode compreender plenamente
à luz do amor infinito do Pai, que se manifestou em Cristo entregue até ao fim
e vivo entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está presente em
tantas histórias de amor e invocar o fogo do Espírito sobre todas as famílias
do mundo.
60. Dentro deste quadro, o presente capítulo recolhe uma
síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família. Também aqui
citarei várias contribuições prestadas pelos Padres sinodais nas suas
considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar de
Jesus, dizendo que Ele « olhou para as mulheres e os homens que encontrou com
amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e
misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus ».54 De igual modo nos acompanha, hoje, o Senhor
no nosso compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente o projecto
divino
61. Contrariamente àqueles que proibiam o matrimónio, o Novo
Testamento ensina que « tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado »
(1 Tim 4, 4). O matrimónio é um « dom » do Senhor
(cf. 1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta
avaliação positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom
divino: « Seja o matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal » (Heb
13, 4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: « Não vos recuseis um
ao outro » (1 Cor 7, 5).
62. Os Padres sinodais lembraram que Jesus, « ao referir-Se
ao desígnio primordial sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel
entre o homem e a mulher, mesmo admitindo que, “por causa da dureza do vosso
coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao
princípio, não foi assim” (Mt 19, 8). A indissolubilidade
do matrimónio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt
19, 6) não se deve entender primariamente como “jugo” imposto aos
homens, mas como um “dom” concedido às pessoas unidas em matrimónio. (...) A condescendência
divina acompanha sempre o caminho humano, com a sua graça, cura e transforma o
coração endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz.
Nos Evangelhos, sobressai claramente a postura de Jesus, que (...) anunciou a
mensagem relativa ao significado do matrimónio como plenitude da revelação que
recupera o projecto originário de Deus (cf. Mt 19, 3) ».
63. « Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas, voltou a
levar o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc
10, 1-12). A família e o matrimónio foram redimidos por Cristo (cf. Ef
5, 21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério
donde brota todo o amor verdadeiro. A aliança esponsal, inaugurada na criação e
revelada na história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado
em Cristo e na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através
da Igreja, a graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de
comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação
do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até à realização
do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro (cf.
Ap 19, 9) ».
64. « A postura de Jesus é paradigmática para a Igreja
(...). Ele inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado num
banquete de núpcias (cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou
momentos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (cf. Lc
10, 38) e com a família de Pedro (cf. Mt 8,
14). Escutou o pranto dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc
5,41; Lc 7, 14-15) e mostrando assim
o verdadeiro significado da misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança
(cf. João Paulo II, Dives in misericordia, 4).
Vê-se isto claramente nos encontros com a mulher samaritana (cf. Jo
4, 1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11), nos quais a noção
do pecado é avivada perante o amor gratuito
de Jesus ».
65. A encarnação do Verbo numa família humana, em Nazaré,
comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos de mergulhar no mistério
do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo, quando foi
concebida a Palavra no seu seio; e ainda no sim de José, que deu o nome a Jesus
e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos Magos; na
fuga para o Egipto, em que Jesus participou no sofrimento do seu povo exilado,
perseguido e humilhado; na devota espera de Zacarias e na alegria que acompanhou
o nascimento de João Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram cumprida no
templo; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus
adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que Jesus
ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a tradição crente
do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no
mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de Nazaré, cheio de
perfume a família! É o mistério que tanto fascinou Francisco de Assis, Teresa
do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias
cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
66. « A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada
Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna
capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre este
fundamento, cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na escuridão
do mundo. “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos
ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples
beleza, o seu carácter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como é
preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e
incomparável a sua função no plano social” (Paulo VI, Alocução
em Nazaré, 5 de Janeiro de 1964) ».
A família nos documentos da Igreja
67. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na
Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção
da dignidade do matrimónio e da família (cf. nn. 47-52). « Definiu o matrimónio
como comunidade de vida e amor (cf. n. 48), colocando o amor no centro da
família (...). O “verdadeiro amor entre marido e mulher” (n. 49) implica a
mútua doação de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afectividade,
correspondendo ao desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso sublinha o
enraizamento dos esposos em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos
cristãos com o sacramento do matrimónio” (n. 48) e permanece com eles. Na
encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá aos
esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, impregnando toda a sua
vida com a fé, a esperança e a caridade. Assim, os cônjuges são de certo modo
consagrados e, por meio duma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e
constituem uma igreja doméstica (cf. Lumen gentium, 11), de tal modo
que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família
cristã, que o manifesta de forma genuína ».
68. Em seguida, « na esteira do Concílio Vaticano II, o
Beato Paulo VI aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e a família. Em
particular, com a Encíclica Humanae vitae, destacou o
vínculo intrínseco entre amor conjugal e procriação: “o amor conjugal requer
nos esposos uma consciência da sua missão de ‘paternidade responsável’, sobre a
qual hoje tanto se insiste, e justificadamente, e que deve também ela ser
compreendida com exactidão (...). O exercício responsável da paternidade
implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para
com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade,
numa justa hierarquia de valores” (n. 10). Na Exortação apostólica Evangelii
nuntiandi, Paulo VI salientou a relação entre a família e a Igreja
».
69. « São João Paulo II dedicou especial atenção à família,
através das suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às famílias Gratissimam
sane e sobretudo com a Exortação apostólica Familiaris
consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família «
caminho da Igreja »; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor do
homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e
para a presença da família na sociedade. Concretamente, ao tratar da caridade
conjugal (cf. Familiaris consortio, 13), descreveu o modo como os
cônjuges, no seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua
vocação à santidade ».
70. « Bento XVI, na Encíclica Deus caritas
est, retomou o tema da verdade do amor entre o homem e a mulher, que
se vê iluminado plenamente apenas à luz do amor de Cristo crucificado (cf. n.
2). Sublinha que “o matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se
o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus
amar torna-se a medida do amor humano” (n. 11). Além disso, na Encíclica Caritas
in veritate, destaca a importância do amor como princípio de vida na
sociedade (cf. n. 44), lugar onde se aprende a experiência do bem comum ».
O sacramento do matrimónio
71. « A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-nos o acesso a
um conhecimento da Trindade que Se revela com traços familiares. A família é imagem
de Deus, que (…) é comunhão de pessoas. No baptismo, a voz do Pai chamou a
Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito Santo (cf. Mc
1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem
do pecado, não só voltou a levar o matrimónio e a família à sua forma original,
mas também elevou o matrimónio a sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf.
Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; Ef
5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é restaurada a
“imagem e semelhança” da Santíssima Trindade (cf. Gn 1,
26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. O matrimónio e a família
recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus ».
72. O sacramento do matrimónio não é uma convenção social,
um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é um dom
para a santificação e a salvação dos esposos, porque « a sua pertença recíproca
é a representação real, através do sinal sacramental, da mesma relação de
Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança
permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os
filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar ». O matrimónio é uma vocação, sendo uma resposta
à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor
entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar
uma família deve ser fruto dum discernimento vocacional.
73. « O dom recíproco constitutivo do matrimónio sacramental
está enraizado na graça do baptismo, que estabelece a aliança fundamental de
cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a graça de Cristo, os
noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à vida, e também
reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes
oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus e perante a
Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimónio como compromissos
que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento. (...) Portanto,
o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da família inteira, que,
por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus ». O
sacramento não é uma « coisa » nem uma « força », mas o próprio Cristo, na
realidade, « vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do
matrimónio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a
sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de se perdoarem mutuamente, de
levarem o fardo um do outro ». O
matrimónio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja
na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos
esposos. Quando se unem numa só carne, representam o desposório do Filho de
Deus com a natureza humana. Por isso, « nas alegrias do seu amor e da sua vida
familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do
Cordeiro ». Embora « a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja »
seja uma « analogia imperfeita », convida a invocar o Senhor para que derrame o
seu amor nas limitações das relações conjugais.
74. Vivida de modo humano e santificada pelo sacramento, a
união sexual é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da graça para os
esposos. É o « mistério nupcial ». O valor
da união dos corpos está expresso nas palavras do consentimento, pelas quais se
acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas palavras
conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer ambiguidade.
Mas, na realidade, toda a vida em comum dos esposos, toda a rede de relações
que hão-de tecer entre si, com os seus filhos e com o mundo, estará impregnada e
robustecida pela graça do sacramento que brota do mistério da Encarnação e da
Páscoa, onde Deus exprimiu todo o seu amor pela humanidade e Se uniu
intimamente com ela. Os esposos nunca estarão sós, com as suas próprias forças,
a enfrentar os desafios que surgem. São chamados a responder ao dom de Deus com
o seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança e a sua luta diária, mas
sempre poderão invocar o Espírito Santo que consagrou a sua união, para que a
graça recebida se manifeste sem cessar em cada nova situação.
75. No sacramento do matrimónio, segundo a tradição latina
da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam, os quais, ao manifestar o seu consentimento e
expressá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande dom. O seu consentimento
e a união dos seus corpos são os instrumentos da acção divina que os torna uma
só carne. No baptismo, ficou consagrada a sua capacidade de se unir em
matrimónio como ministros do Senhor, para responder à vocação de Deus. Por
isso, quando dois cônjuges não-cristãos recebem o baptismo, não é necessário
renovar a promessa nupcial sendo suficiente que não a
rejeitem, pois, pelo baptismo que recebem, essa união torna-se automaticamente
sacramental.
O próprio direito canónico reconhece a validade de alguns
matrimónios que se celebram sem um ministro ordenado. É que a ordem natural foi assumida pela redenção de Jesus
Cristo, pelo que, « entre baptizados, não pode haver contrato matrimonial
válido que não seja, pelo mesmo facto, sacramento ». A Igreja pode exigir que o acto seja público, a presença de
testemunhas e outras condições que foram variando ao longo da história, mas
isto não tira, aos dois esposos, o seu carácter de ministros do sacramento, nem
diminui a centralidade do consentimento do homem e da mulher, que é aquilo que,
de por si, estabelece o vínculo sacramental. Em todo o caso, precisamos de
reflectir mais sobre a acção divina no rito nupcial, que aparece muito
evidenciada nas Igrejas Orientais ao ressaltarem a importância da bênção sobre
os contraentes como sinal do dom do Espírito.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
76. « O Evangelho da família nutre também as sementes ainda
à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam vitalidade e
necessitam que não as transcurem », de
modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, « sejam conduzidas
pacientemente mais além, chegando a um conhecimento mais rico e uma integração mais
plena deste mistério na sua vida ».
77. Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi criado
por Cristo e para Cristo (cf. Col 1, 16), os Padres sinodais
lembraram que « a ordem da redenção ilumina e realiza a da criação. Assim, o
matrimónio natural compreende-se plenamente à luz da sua realização
sacramental: só fixando o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a verdade
das relações humanas. “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na
própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et spes, 22). Em
particular é oportuno compreender, em chave cristocêntrica, (...) o bem dos
cônjuges (bonum coniugum) », que
inclui a unidade, a abertura à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no matrimónio
cristão, também a ajuda mútua no caminho que leva a uma amizade mais plena com o
Senhor. « O discernimento da presença das semina Verbi nas outras
culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à realidade
matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimónio natural, há
elementos positivos também nas formas matrimoniais doutras tradições religiosas
», embora não faltem também as sombras. Podemos dizer que « toda a pessoa que
deseja formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por
cada acção que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito
está vivo e operante – encontrará gratidão e estima, independentemente do povo,
região ou religião a que pertença ».
78. « O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo
1, 9; Gaudium et spes, 22), inspira
o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem juntos, que
contraíram matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Na
perspectiva da pedagogia divina, a Igreja olha com amor para aqueles que
participam de modo imperfeito na vida dela: com eles, invoca a graça da
conversão; encoraja-os a fazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro e
colocarem-se ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham. (...) Quando a
união alcança uma estabilidade notável por meio dum vínculo público – e se
reveste de afecto profundo, responsabilidade pela prole, capacidade de superar
as provações –, pode ser vista como uma oportunidade a encaminhar para o
sacramento do matrimónio, sempre que este seja possível ».
79. « Perante situações difíceis e famílias feridas, é
preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à
verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris
consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os
casos, e podem existir factores que limitem a capacidade de decisão. Por isso,
ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que
não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar
atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição ».
A transmissão da vida e a educação dos filhos
80. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma « íntima comunidade
da vida e do amor conjugal », que constitui um bem para os próprios esposos; e
a sexualidade « ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher ». Por isso, também « os esposos a quem Deus não
concedeu a graça de ter filhos podem ter uma vida conjugal cheia de sentido, humana
e cristãmente falando ». Contudo, esta
união está ordenada para a geração « por sua própria natureza ». O bebé que chega « não vem de fora juntar-se ao
amor mútuo dos esposos; surge no próprio coração deste dom mútuo, do qual é
fruto e complemento ». Não aparece como o final
dum processo, mas está presente desde o início do amor como uma característica
essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio amor. Desde o início, o
amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma
fecundidade que o prolonga para além da sua própria existência. Assim nenhum
acto sexual dos esposos pode negar este significado, embora, por várias razões, nem sempre possa efectivamente gerar
uma nova vida.
81. O filho pede para nascer, não de qualquer maneira, mas
deste amor, porque ele « não é uma dívida, mas uma dádiva », que é « o fruto do acto específico do amor
conjugal de seus pais ». Com efeito, «
segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a
transmissão da vida estão ordenados reciprocamente (cf. Gn
1, 27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua
criação o homem e a mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos
do seu amor, confiando à sua responsabilidade o futuro da
humanidade através da transmissão da vida humana ».
82. Os Padres sinodais referiram que « não é difícil
constatar como se está espalhando uma mentalidade que reduz a geração da vida a
uma variável dos projectos individuais ou dos cônjuges ». A doutrina da Igreja « ajuda a viver de maneira
harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas
dimensões, juntamente com a responsabilidade geradora. É preciso redescobrir a
mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que
sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos
métodos de regulação da natalidade. (...) A escolha da adopção e do acolhimento
exprimeuma fecundidade particular da experiência conjugal ». Com particular gratidão, a Igreja « apoia as
famílias que acolhem, educam e rodeiam de carinho os filhos deficientes ».
83. Neste contexto, não posso deixar de afirmar que, se a
família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e cuidada,
constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e
destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o direito à vida
do bebé inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode
afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões
sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio
doutro ser humano. A família protege a vida em todas as fases da mesma,
incluindo o seu ocaso. Por isso, « a quem trabalha nas estruturas sanitárias,
lembra-se a obrigação moral da objecção de consciência. Da mesma forma, a Igreja
não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o
excesso terapêutico e a eutanásia », mas também « rejeita firmemente a pena de
morte ».
84. Os Padres quiseram sublinhar também que « um dos
desafios fundamentais que as famílias enfrentam hoje é seguramente o desafio
educativo, que se tornou ainda mais difícil e complexo por causa da realidade
cultural actual e da grande influência dos meios de comunicação ». « A Igreja desempenha um papel precioso de
apoio às famílias, a começar pela iniciação cristã, através de comunidades
acolhedoras ». Mas parece-me muito
importante lembrar que a educação integral dos filhos é, simultaneamente, «
dever gravíssimo » e « direito primário » dos pais.
Não é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e
insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender tirar-lhes.
O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária, acompanhando a
função não-delegável dos pais, que têm direito de poder escolher livremente o
tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos seus filhos,
de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais; serve-lhes de
complemento. Este é um princípio básico: « qualquer outro participante no
processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso
e, em certa media, até mesmo por seu encargo ». Infelizmente,
« abriu-se uma fenda entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o
pacto educativo quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a
família entrou em crise ».
85. A Igreja é chamada a colaborar, com uma acção pastoral
adequada, para que os próprios pais possam cumprir a sua missão educativa; e sempre
o deve fazer, ajudando-os a valorizar a sua função específica e a reconhecer
que quantos recebem o sacramento do matrimónio são transformados em verdadeiros
ministros educativos, pois, quando formam os seus filhos, edificam a Igreja e, fazendo-o, aceitam uma vocação que Deus lhes
propõe.
A família e a Igreja
86. « Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha
para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do Evangelho,
agradecendo-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com efeito, graças a
elas, torna-se credível a beleza do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre.
Na família, “como numa igreja doméstica” (Lumen gentium, 11), amadurece
a primeira experiência eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por
graça, se reflecte o mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a
tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre
renovado, e sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da
própria vida” (Catecismo da Igreja Católica,
1657) ».
87. A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida
pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, « em virtude do sacramento do
matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja.
Nesta perspectiva, será certamente um dom precioso, para o momento actual da
Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um
bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom
sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a
comunidade cristã ».
88. O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a
vida da Igreja. « O fim unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e aprofundar
este amor. Na sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da
paternidade e da maternidade; partilham projectos e fadigas, anseios e
preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste
amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da
história da sua vida. (...) A beleza do dom recíproco e gratuito, a alegria pela
vida que nasce e a amorosa solicitude de todos os seus membros, desde os
pequeninos aos idosos, são apenas alguns dos frutos que tornam única e
insubstituível a resposta à vocação da família
», tanto para a Igreja
como para a sociedade inteira.
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
89. Tudo o que foi dito não é suficiente para exprimir o
Evangelho do matrimónio e da família, se não nos detivermos particularmente a
falar do amor. Com efeito, não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e
doação recíproca, se não estimularmos o crescimento, a consolidação e o
aprofundamento do amor conjugal e familiar. De facto, a graça do sacramento do
matrimónio destina-se, antes de mais nada, « a aperfeiçoar o amor dos cônjuges
». Também aqui é verdade que, « ainda que
eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda
que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado,
se não tiver amor de nada me vale » (1 Cor 13, 2-3). Mas a palavra
« amor », uma das mais usadas, muitas vezes aparece desfigurada.
O nosso amor quotidiano
90. No chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos
algumas características do amor verdadeiro:
« O amor é paciente,
o amor é prestável;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta » (1 Cor 13, 4-7).
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos partilham
dia-a-dia entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a
esclarecer o significado das expressões deste texto, tendo em vista uma
aplicação à existência concreta de cada família.
Paciência
91. A primeira palavra usada é « macrothymei ».
A sua tradução não é simplesmente « suporta tudo », porque esta ideia é
expressa no final do versículo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do
texto do Antigo Testamento onde se diz que Deus é « lento para a ira » (Nm
14, 18; cf. Ex 34, 6). Uma pessoa
mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita
agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo
também na vida familiar. Os textos onde Paulo usa este termo devem ser lidos à
luz do livro da Sabedoria (cf. 11,23; 12, 2.15-18): ao mesmo tempo que se louva
a
moderação de Deus para dar tempo ao arrependimento, insiste-se
no seu poder que se manifesta quando actua com misericórdia. A paciência de
Deus é exercício da misericórdia de Deus para com o pecador e manifesta o
verdadeiro poder.
92. Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente,
nem tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objectos. O
problema surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as
pessoas sejam perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se
cumpra unicamente a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a
reagir com agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos
desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não
sabem conviver, anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á
um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: « Toda a espécie
de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com
toda a maldade » (Ef 4,31). Esta paciência
reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem direito a
viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se altera os
meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as suas ideias, se não
é em tudo como eu esperava. O amor possui sempre um sentido de profunda compaixão,
que leva a aceitar o outro como parte deste mundo, mesmo quando age de modo
diferente daquilo que eu desejaria.
Atitude de serviço
93. Vem depois a palavra jrestéuetai – a única vez que
aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa boa, que
mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja, em estrito
paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste modo Paulo pretende
esclarecer que a « paciência », nomeada em primeiro lugar, não é uma postura
totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma actividade, uma reacção
dinâmica e criativa perante os outros. Indica que o amor beneficia e promove os
outros. Por isso, traduz-se como « prestável ».
94. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que
o amor não é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o
verbo « amar » tem em hebraico: « fazer o bem ». Como dizia Santo Inácio de
Loyola, « o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras ». Assim poderá mostrar toda a sua fecundidade, permitindo-nos
experimentar a felicidade de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundantemente,
sem calcular nem reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.
Curando a inveja
95. Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma
atitude expressa como zeloi (ciúme ou inveja).
Significa que, no amor, não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro
(cf. Act 7, 9; 17, 5). A inveja é uma tristeza pelo bem
alheio, demostrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque
estamos concentrados exclusivamente no nosso bem-estar. Enquanto o amor nos faz
sair de nós mesmos, a inveja leva a centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro
amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, libertando-se
do sabor amargo da inveja. Aceita que cada um tenha dons distintos e caminhos
diferentes na vida; e, consequentemente, procura descobrir o seu próprio caminho
para ser feliz, deixando que os outros encontrem o deles.
96. Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os
dois últimos mandamentos da Lei de Deus: « Não desejarás a casa do teu próximo.
Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o
seu burro, e tudo o que é do teu próximo » (Ex 20, 17). O amor leva-nos a
uma apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu direito à
felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo
« para nosso usufruto » (1 Tim6, 17), e
consequentemente aceito, no meu íntimo, que ela possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta mesma raiz do amor leva-me a rejeitar
a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada, ou induz-me a
procurar que os próprios descartáveis da sociedade possam viver um pouco de
alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade.
Sem ser arrogante nem se
orgulhar
97. Segue-se o termo perpereuetai, que indica vanglória,
desejo de se mostrar superior para
impressionar os outros com atitude pedante e um pouco agressiva. Quem ama não
só evita falar muito de si mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe
manter-se no seu lugar sem pretender estar no centro. A palavra seguinte – physioutai
– é muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante.
Literalmente afirma que não se « engrandece » diante dos outros; mas indica
algo de mais subtil. Não se trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias
qualidades; é pior: perde-se o sentido da realidade, a pessoa considera-se
maior do que é, porque se crê mais « espiritual » ou « sábia ». Paulo usa este verbo
noutras ocasiões, para dizer, por exemplo, que « a ciência incha », ao passo
que « a caridade edifica » (1 Cor 8, 1). Por outras
palavras, alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros,
dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na realidade, o
que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está atento aos
fracos. Noutro versículo, usa-o para criticar aqueles que « se tornaram insolentes
» (1 Cor 4, 18), mas, na realidade, têm mais
palavreado do que verdadeiro « poder » do Espírito (cf. 1
Cor 4, 19).
98. É importante que os cristãos vivam isto no seu modo de
tratar os familiares pouco formados na fé, frágeis ou menos firmes nas suas
convicções. Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da família, se
consideram mais desenvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis. A atitude de
humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder
compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o
orgulho e cultivar
a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no
mundo do poder, cada um procura dominar o outro, e acrescentava: « não seja
assim entre vós » (Mt 20, 26). A lógica do amor
cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de
fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de « quem no meio de vós quiser ser o
primeiro, seja vosso servo » (Mt 20, 27). Na vida familiar, não
pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem a competição para
ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica acaba com o amor.
Vale também para a família o seguinte conselho: « Revesti-vos todos de
humildade no trato uns com os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá
a sua graça aos humildes » (1 Ped 5, 5).
Amabilidade
99. Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido
do termo asjemonéi. Significa que o amor não age rudemente,
não actua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos,
as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos.
Detesta fazer sofrer os outros. A cortesia « é uma escola de sensibilidade e
altruísmo », que exige que a pessoa « cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda
a ouvir, a falar e, em certos momentos, a calar ».
Ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz
parte das exigências irrenunciáveis do amor, por isso « todo o ser humano está
obrigado a ser afável com aqueles que o rodeiam ».
Diariamente « entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa
existência, exige a delicadeza duma atitude não invasiva, que renova a
confiança e o respeito. (...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto
mais exigirá o respeito pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro
abra a porta do seu coração ».
100. A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o
outro, requer-se um olhar amável pousado nele. Isto não é possível quando reina
um pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para
compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com que nos detenhamos menos
nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto comum, apesar
de sermos diferentes. O amor amável gera vínculos, cultiva laços, cria novas
redes de integração, constrói um tecido social firme. Deste modo, uma pessoa
protege-se a si mesma, pois, sem sentido de pertença, não se pode sustentar uma
entrega aos outros, acabando cada um por buscar apenas as próprias conveniências,
e a convivência torna-se impossível. Uma pessoa anti-social julga que os outros
existem para satisfazer as suas necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas
o seu dever. Neste caso, não haveria espaço para a amabilidade do amor e a sua
linguagem. A pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que
reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam. Vejamos, por exemplo, algumas
palavras que Jesus dizia às pessoas: « Filho, tem confiança! » (Mt
9, 2). « Grande é a tua fé! » (Mt 15, 28). « Levanta-te! » (Mc
5, 41). « Vai em paz » (Lc 7, 50). « Não temais! » (Mt
14, 27). Não são palavras que humilham, angustiam, irritam,
desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem amável de Jesus.
Desprendimento
101. Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é
preciso primeiro amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que o
amor « não procura o seu próprio interesse », ou « não procura o que é seu ».
Esta expressão aparece ainda
noutro texto: « Não tenha cada um em vista os próprios interesses,
mas todos e cada um exactamente os interesses dos outros » (Flp
2, 4). Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se
evitar de dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o
dom de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode
entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar
a si mesma sente dificuldade em amar os outros: « Para quem será bom aquele que
é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo
» (Sir 14, 5-6).
102. Mas o próprio Tomás de Aquino explicou « ser mais
próprio da caridade querer amar do que querer ser amado », e que de facto « as mães, que são as que mais
amam, procuram mais amar do que ser amadas ». Por
isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamente « sem nada
esperar em troca » (Lc 6, 35), até chegar ao amor
maior que é « dar a vida » pelos outros (Jo 15, 13). Mas será possível
um desprendimento assim, que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem
dúvida, porque é o que pede o Evangelho: « Recebestes de graça, dai de graça » (Mt
10, 8).
Sem violência interior
103. Se a primeira expressão do hino nos convidava à
paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros,
agora aparece outra palavra – paroxýnetai – que diz respeito
a uma reacção interior de indignação provocada por algo exterior. Trata-se de
uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os
outros, como se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta agressividade
íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar, acabando por nos
isolar. A indignação é saudável, quando nos leva a reagir perante uma grave
injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas as nossas atitudes
para com os outros.
104. O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria
vista (cf. Mt 7, 5), e nós, cristãos, não podemos ignorar o
convite constante da Palavra de Deus para não se alimentar a ira: « Não te
deixes vencer pelo mal » (Rm 12, 21); « não nos cansemos
de fazer o bem » (Gal 6, 9). Uma coisa é sentir
a força da agressividade que irrompe, e outra é consentir nela, deixar que se
torne uma atitude permanente: « Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se
ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). Por isso, nunca se
deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. « E como devo fazer as
pazes? Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno
gesto, uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas nunca
permitais que o dia em família termine sem fazer as pazes ». A reacção interior perante uma moléstia que nos
causam os outros, deveria ser, antes de mais nada, abençoar no coração, desejar
o bem do outro, pedir a Deus que o liberte e cure. « Respondei com palavras de
bênção, pois a isto fostes chamados: a herdar uma bênção » (1
Ped 3, 9). Se tivermos de lutar contra um mal, façamo-lo; mas sempre
digamos « não » à violência interior.
Perdão
105. Se permitirmos a entrada dum mau sentimento no nosso
íntimo, damos lugar ao ressentimento que se aninha no coração. A frase logízetai
to kakón significa que se « tem em conta o mal », « trá-lo gravado
», ou seja, está ressentido. O contrário disto é o perdão; perdão fundado numa
atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e encontrar
desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: « Perdoa-lhes, Pai, porque
não sabem o que fazem » (Lc 23, 34). Entretanto a
tendência costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades,
supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai crescendo e
cria raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode danificar o
vínculo de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às vezes,
atribui-se a tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-se cruel perante
qualquer erro do outro. A justa reivindicação dos próprios direitos torna-se
mais uma persistente e constante sede de vingança do que uma sã defesa da
própria dignidade.
106. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível
e desejável o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. A verdade é que « a comunhão
familiar só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de
sacrifício. Exige, de facto, de todos e de cada um, pronta e generosa
disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação.
Nenhuma família ignora como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos
agridem, de forma violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e
variadas formas de divisão da vida familiar ».
107. Hoje sabemos que, para se poder perdoar, precisamos de
passar pela experiência libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós
mesmos. Quantas vezes os nossos erros ou o olhar crítico das pessoas que amamos
nos fizeram perder o amor a nós próprios; isto acaba por nos levar a
acautelar-nos dos outros, esquivando-nos do seu afecto, enchendo-nos de
suspeitas nas relações interpessoais. Então, poder culpar os outros torna-se um
falso alívio. Faz falta rezar com a própria história, aceitar-se a si mesmo, saber
conviver com as próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter esta
mesma atitude com os outros.
108. Mas isto pressupõe a experiência de ser perdoados por
Deus, justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos por
um amor prévio a qualquer obra nossa, que sempre dá uma nova oportunidade,
promove e incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o
carinho do Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites,
perdoar aos outros, ainda que tenham sido injustos para connosco. Caso
contrário, a nossa vida em família deixará de ser um lugar de compreensão,
companhia e incentivo, e tornar-se-á um espaço de permanente tensão ou de castigo
mútuo.
Alegrar-se com os outros
109. A expressão jairei epi te adikía indica
algo de negativo arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude
venenosa de quem, ao ver feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é
completada pela seguinte, que o diz de forma positiva: sygjairei
te alétheia – rejubila com a verdade. Por outras palavras, alegra-se
com o bem do outro, quando se reconhece a sua dignidade, quando se apreciam as
suas capacidades e as suas boas obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade
de estar sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge,
até ao ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos.
110. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo
outro, ou quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com
alegria e, assim, dá glória a Deus, porque « Deus ama quem dá com alegria » (2
Cor 9, 7), nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com
a felicidade do outro. Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar com o
bem do outro, concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades,
condenamo-nos a viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus – « a
felicidade está mais em dar do que em receber » (At 20,
35). A família deve ser sempre o lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom
na vida, sabe que ali se vão congratular com ela.
Tudo desculpa
111. O elenco é completado com quatro expressões que falam
duma totalidade: « tudo ». Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Assim
se destaca vigorosamente o dinamismo contracorrente do amor, capaz de enfrentar
qualquer coisa que o possa ameaçar.
112. Em primeiro lugar, diz-se que « tudo desculpa – panta
stégei ». É diferente de « não ter em conta o mal », porque este
termo tem a ver com o uso da língua; pode significar « guardar silêncio » a
propósito do mal que possa haver noutra pessoa. Implica limitar o juízo, conter
a inclinação para se emitir uma condenação dura e implacável: « Não condeneis e
não sereis condenados » (Lc 6, 37). Embora isto vá
contra o uso que habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: «
Não faleis mal uns dos outros, irmãos » (Tg 4, 11). Deter-se a
danificar a imagem do outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar
ressentimentos e invejas, sem se importar com o dano causado. Muitas vezes
esquece-se que a difamação pode ser um grande pecado, uma grave ofensa a Deus,
quando afecta seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes danos muito
difíceis de reparar. Por isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a
língua, dizendo que « é um mundo de iniquidade [que] contamina todo o corpo » (Tg
3, 6), « um mal incontrolável, carregado de veneno mortal » (Tg
3, 8). Se « com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de
Deus » (Tg 3, 9), o amor faz o contrário, defendendo a
imagem dos outros e com uma delicadeza tal que leva mesmo a preservar a boa
fama dos inimigos. Ao defender a lei divina, é preciso nunca esquecer esta
exigência do amor.
113. Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do
outro, procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e
erros. Em todo o caso, guardam silêncio para não danificar a sua imagem. Mas
não é apenas um gesto externo, brota duma atitude interior. Também não é a
ingenuidade de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos do outro,
mas a perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto;
lembra-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são a
totalidade do ser do outro: um facto desagradável no relacionamento não é a
totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade,
que todos somos uma
complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é apenas
aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. E, pela mesma razão, não lhe exijo
que seja perfeito o seu amor para o apreciar: ama-me como é e como pode, com os
seus limites, mas o facto de o seu amor ser imperfeito não significa que seja
falso ou que não seja real. É real, mas limitado e terreno. Por isso, se eu lhe
exigir demais, de alguma maneira mo fará saber, pois não poderá nem aceitará
desempenhar o papel dum ser divino nem estar ao serviço de todas as minhas
necessidades. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar
silêncio perante os limites do ser amado.
Confia
114. « Panta pisteuei – tudo crê ».
Pelo contexto, não se deve entender esta « fé » em sentido teológico, mas no
sentido comum de « confiança ». Não se trata apenas de não suspeitar que o
outro esteja mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa
por Deus que se esconde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as
cinzas.
115. É precisamente esta confiança que torna possível uma
relação em liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir minuciosamente
os seus passos, para evitar que fuja dos meus braços. O amor confia, deixa em
liberdade, renuncia a controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta liberdade, que
possibilita espaços de autonomia, abertura ao mundo e novas experiências,
consente que a relação se enriqueça e não se transforme numa endogamia sem
horizontes. Assim, ao reencontrar-se, os cônjuges podem viver a alegria de
partilhar o que receberam e aprenderam fora do circuito familiar. Ao mesmo
tempo torna possível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa, quando
sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade basilar do seu ser,
mostra-se como é, sem dissimulações. Pelo contrário, quando alguém sabe que
sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão e não o amam incondicionalmente,
preferirá guardar os seus segredos,
esconder as suas quedas e fraquezas, fingir o que não é.
Concluindo, uma família, onde reina uma confiança sólida, carinhosa e, suceda o
que suceder, sempre se volta a confiar, permite o florescimento da verdadeira
identidade dos seus membros, fazendo com que se rejeite espontaneamente o
engano, a falsidade e a mentira.
Espera
116. Panta elpízei: não desespera
do futuro. Ligado à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o
outro pode mudar; sempre espera que seja possível um amadurecimento, um inesperado
surto de beleza, que as potencialidades mais recônditas do seu ser germinem
algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que
nem tudo aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas
e saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.
117. Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno, porque
inclui a certeza duma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas as suas
fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada pela
ressurreição de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e
patologias; lá, o verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua
potência de bem e beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra,
contemplar aquela pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e aguardar
aquela plenitude que, embora hoje não seja visível, há-de receber um dia no
Reino celeste.
Tudo suporta
118. Panta hypoménei significa que
suporta, com espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no
meio dum ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas
molestas, mas é algo de mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz
de superar qualquer desafio. É amor que apesar de tudo não desiste, mesmo que
todo o contexto convide a outra coisa. Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de
força contra qualquer corrente negativa, uma opção pelo bem que nada pode
derrubar. Isto lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo amor
fraterno, mesmo no meio das piores perseguições e humilhações: « A pessoa que
mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo de
bom nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. E, quando chegas
ao ponto de fixar o rosto
de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o que a
religião chama a “imagem de Deus”, começas, não obstante tudo, a amá-lo. Não
importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento de bondade de que
nunca poderás livrar-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é esta:
quando surge a oportunidade de derrotares o teu inimigo, aquele é o momento em
que deves decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível do amor, da sua
grande beleza e poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas
malignos. Às pessoas que caíram na armadilha deste sistema, tu ama-las, mas
procuras derrotar o sistema. (...) Ódio por ódio só intensifica a existência do
ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a
pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se
até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um
pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte.
A pessoa forte é aquela que pode quebrar a cadeia do ódio, a
cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e moralidade para a quebrar e
injectar dentro da própria estrutura do universo o elemento forte e poderoso do
amor ».
119. Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do
amor, que permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar
pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou vingar
de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de
tudo não desiste. Deixa-me maravilhado, por exemplo, a atitude das pessoas que,
para se proteger da violência física, tiveram de separar-se do seu cônjuge e
todavia, pela caridade conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos, foram
capazes de procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de
doença, tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não
desiste.
Crescer na caridade conjugal
120. O cântico de São Paulo, que acabámos de repassar,
permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une os esposos, amor santificado, enriquecido e iluminado pela graça
do sacramento do matrimónio. É uma « união afectiva », espiritual e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade
e a paixão erótica, embora seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos
e a paixão enfraquecem. O Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres
da vida conjugal e « detém como que o primado da nobreza ». Com efeito, este amor forte, derramado pelo
Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que
culminou na entrega até ao fim na cruz. « O Espírito, que o Senhor infunde, dá
um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos
amou. O amor conjugal atinge assim aquela plenitude para a qual está interiormente
ordenado: a caridade conjugal ».
121. O matrimónio é um sinal precioso, porque, « quando um
homem e uma mulher celebram o sacramento do matrimónio, Deus, por assim dizer,
“espelha-Se” neles, imprime neles as suas características e o carácter
indelével do seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós. Com
efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo –
vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que
consiste o mistério do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência
». Isto tem consequências muito concretas
na vida do dia-a-dia, porque, « em virtude do sacramento, os esposos são
investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das
realidades simples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja,
continuando a dar a vida por ela ».
122. Todavia convém não confundir planos diferentes: não se
deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que
reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque
o matrimónio como sinal implica « um processo dinâmico, que avança gradualmente
com a progressiva integração dos dons de Deus ».
A vida toda, tudo em comum
123. Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a
« amizade maior ». É uma união que tem
todas as características duma boa amizade: busca do bem do outro,
reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre os
amigos que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimónio, porém, acrescenta
a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projecto estável
de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos sinceros na leitura
dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta que essa relação
possa ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente a alegria de se
casar não está a pensarem algo de passageiro; aqueles que acompanham a
celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que possa perdurar
no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas também que
sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais mostram que, na
própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo. A união,
que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é mais do que uma
formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas inclinações
espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança diante de Deus,
que exige fidelidade: « O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa
da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira
e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher da sua
juventude, porque Eu odeio o divórcio » (Ml 2, 14.15-16).
124. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de aceitar o
matrimónio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar
sempre de novo até à morte, não pode sustentar um nível alto de compromisso.
Cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de crescimento. Mas
« prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um
desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o
futuro inteiro à pessoa amada ». Para que
este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se
o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, « o
facto de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de modo que não
possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu
a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande mistério ».
125. Além disso, o matrimónio é uma amizade que inclui as
características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada
vez mais firme e intensa. Com efeito, « não foi instituído só em ordem à
procriação », mas para que o amor mútuo « se exprima convenientemente, aumente
e chegue à maturidade ». Esta amizade peculiar
entre um homem e uma mulher adquire um carácter totalizante, que só se verifica
na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta união também é
exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade, sempre
no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio Vaticano II ao dizer que, «
unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom
de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e com as obras, e
penetra toda a sua vida ».
Alegria e beleza
126. No matrimónio, convém cuidar a alegria do amor. Quando
a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar
outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de
desfrutar e permite-nos encontrar prazer em realidades variadas, mesmo nas
fases da vida em que o prazer se apaga. Por isso, dizia São Tomás que se usa a
palavra « alegria » para se referir à dilatação da amplitude do coração. A alegria matrimonial, que se pode viver mesmo
no meio do sofrimento, implica aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária
de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações
e buscas, de aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele
os esposos a cuidarem um do outro: « prestam-se
recíproca ajuda e serviço ».
127. O amor de amizade chama-se « caridade », quando capta e
aprecia o « valor sublime » que tem o outro. A
beleza – o « valor sublime » do outro, que não coincide com os seus atractivos físicos
ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa, sem a
imperiosa necessidade de a possuir. Na sociedade de consumo, o sentido estético
empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído
ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação
deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Leva-nos a vibrar à vista
duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de lhe causar dano ou tirar
a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto de contemplar e apreciar
o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe para além das minhas
necessidades. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode
ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato. Por
isso, « do amor pelo qual uma pessoa me é agradável, depende que lhe dê algo de
graça ».
128. A experiência estética do amor exprime-se naquele olhar
que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou privado
de atractivos sensíveis. O olhar que aprecia tem uma enorme importância e,
recusá-lo, habitualmente faz dano. Às vezes, quantas coisas fazem os cônjuges e
os filhos para ser considerados e tidos em conta! Muitas feridas e crises têm a
sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o que exprimem
algumas
queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias: « O meu
marido não me olha, para ele parece que sou invisível ». « Por favor, olha para
mim, quando te falo ». « A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para
os filhos ». « Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é
como se não existisse ». O amor abre os olhos e
permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
129. A alegria deste amor contemplativo deve ser cultivada.
Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria do que
partilhar um bem: « Dá e recebe, e alegra a tua vida » (Sir
14, 16). As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode
provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito
recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa
cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: « Como deliciarás os
anjos! » É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los
usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de
quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado,
que transborda para o outro e se torna fecundo nele.
130. Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Como
dizia Santo Agostinho, « quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior
é o gozo no triunfo ».131 Depois de ter sofrido
e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque
conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar
melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas como
quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes
custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
131. Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado,
quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta
instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e
concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento externo ou
uma forma de contrato
matrimonial, mas é igualmente certo que a decisão de dar ao
matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos compromissos manifesta
a sua relevância: mostra a seriedade da identificação com o outro, indica uma
superação
do individualismo de adolescente e expressa a firme opção de
se pertencerem um ao outro. Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente se
abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova
responsabilidade perante outra pessoa. Isto vale muito mais do que uma mera
associação espontânea para mútua compensação, que seria a privatização do
matrimónio. Este, como instituição social, é protecção e instrumento para o
compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor, para que a opção pelo outro
cresça em solidez, concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir
a sua missão na sociedade. Por isso, o matrimónio supera qualquer moda
passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da
pessoa humana e do seu carácter social. Implica uma série de obrigações; mas
estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de
arriscar o futuro.
132. Semelhante opção pelo matrimónio expressa a decisão
real e efectiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e
contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso
público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão,
também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e
definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A
recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não
consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à
sociedade como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão
verdadeiramente enamorados tendem a manifestar aos outros o seu amor. O amor
concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com
todas as obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e
protecção dum « sim » que se dá sem reservas nem restrições. Este sim significa
dizer ao outro que poderá sempre confiar, não será abandonado, se perder
atractivo, se tiver dificuldades ou se se apresentarem novas possibilidades de
prazer ou de interesses egoístas.
Amor que se manifesta e
cresce
133. O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida
matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por
isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem
mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família, « é necessário usar três
palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três palavras-chave ». « Quando numa
família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não somos
egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos conta
de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe paz e
alegria ». Não sejamos mesquinhos no uso
destas palavras, sejamos generosos repetindo-as dia-a-dia, porque « pesam certos
silêncios, às vezes mesmo em família, entre marido e mulher, entre pais e
filhos, entre irmãos ». Pelo contrário, as
palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam o amor dia
após dia.
134. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo crescimento.
Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um amadurecimento
constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás de Aquino dizia
da caridade: « A caridade, devido à sua natureza, não tem um termo de aumento,
porque é uma participação da caridade infinita que é o Espírito Santo. (...) E,
do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe um termo, porque, ao
crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um aumento maior ». Paulo exortava com veemência: « O Senhor vos
faça crescer e superabundar de caridade uns para com os outros » (1Ts
3, 12); e acrescenta: « A respeito do amor (...), exortamo-vos,
irmãos, a progredir sempre mais » (1 Ts 4, 9.10). Sempre mais. O
amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais nada, da indissolubilidade
como uma obrigação, nem repetindo uma doutrina, mas robustecendo-o por meio dum
crescimento constante sob o impulso da graça. O amor que não cresce, começa a
correr perigo; e só podemos crescer correspondendo à graça divina com mais
actos de amor, com actos de carinho mais frequentes, mais intensos, mais
generosos, mais ternos, mais alegres. O marido e a mulher « tomam consciência
da própria unidade e cada vez mais a realizam ». O
dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um
constante desenvolvimento deste dom da graça.
135. Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e
perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Uma ideia celestial
do amor terreno esquece que o melhor ainda não foi alcançado, o vinho sazonado
com o tempo. Como recordaram os bispos do Chile, « não existem as famílias
perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam
os anos, não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade
consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade
que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família ». É mais saudável aceitar com realismo os
limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer
juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que
suceder.
O diálogo
136. O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável
para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e familiar. Mas
requer uma longa e diligente aprendizagem. Homens e mulheres, adultos e jovens
têm maneiras diversas de comunicar, usam linguagens diferentes, regem-se por
códigos distintos. O modo de perguntar, a forma de responder, o tom usado, o
momento escolhido e muitos outros factores podem condicionar a comunicação.
Além disso, é sempre necessário cultivar algumas atitudes que são expressão de
amor e tornam possível o diálogo autêntico.
137. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita
escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que
precisava de comunicar. Isto requer a ascese de não começar a falar antes do
momento apropriado. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso
assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto
implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente:
despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar espaço.
Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução para os seus problemas,
mas de ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua mágoa, a sua desilusão,
o seu medo, a sua ira, a sua esperança, o seu sonho. Todavia é frequente ouvir
estes queixumes: « Não me ouve. E quando parece que o faz, na realidade está a
pensar noutra coisa ». « Falo-lhe e tenho a sensação de que está à espera que
acabe de vez ». « Quando lhe falo, tenta mudar de assunto ou dá-me respostas rápidas
para encerrar a conversa ».
138. Desenvolver o hábito de dar real importância ao outro.
Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir,
pensar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que
diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. A
tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois têm outra experiência
da vida, olham doutro ponto de vista, desenvolveram outras preocupações e
possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a verdade do
outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a motivação de
fundo do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para isso, é preciso
colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração, individuar
o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o
diálogo.
139. Amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente
numas poucas ideias, e flexibilidade para poder modificar ou completar as próprias
opiniões. É possível que, do meu pensamento e do pensamento do outro, possa
surgir uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A unidade, a que temos de
aspirar, não é uniformidade, mas uma « unidade na diversidade » ou uma «
diversidade reconciliada ». Neste estilo enriquecedor de comunhão fraterna,
seres diferentes encontram-se, respeitam-se e apreciam-se, mas mantendo
distintos matizes e acentos que enriquecem o bem comum. Temos de nos libertar da
obrigação de ser iguais. Também é necessária sagacidade para advertir a tempo
eventuais « interferências », a fim de que não destruam um processo de diálogo.
Por exemplo, reconhecer os maus sentimentos que poderiam surgir e relativiza-los,
para não prejudicarem a comunicação. É importante a capacidade de expressar
aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem e um modo de falar que
possam ser mais facilmente aceites ou tolerados pelo outro, embora o conteúdo
seja exigente; expor as próprias críticas, mas sem descarregar a ira como uma
forma de vingança, e evitar uma linguagem moralizante que procure apenas
agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há tantas discussões no casal que não
são por questões muito graves; às vezes trata-se de pequenas coisas, pouco
relevantes, mas o que altera os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude que se
assume no diálogo.
140. Ter gestos de solicitude pelo outro e demonstrações de
carinho. O amor supera as piores barreiras. Quando se pode amar alguém ou quando
nos sentimos amados por essa pessoa, conseguimos entender melhor o que ela quer
exprimir e fazer-nos compreender. É preciso superar a fragilidade que nos leva
a temer o outro como se fosse um « concorrente ». É muito importante fundar a
própria segurança em opções profundas, convicções e valores, e não no desejo de
ganhar uma discussão ou no facto de nos darem razão.
141. Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o
diálogo, é preciso ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior
que se alimenta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à
sociedade. Caso contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente.
Quando cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade
de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e o diálogo
fica empobrecido.
Amor apaixonado
142. O Concílio Vaticano II ensinou que este amor conjugal «
compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade
às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais
peculiares do amor conjugal ». Deve haver qualquer
motivo para um amor sem prazer nem paixão se revelar insuficiente a simbolizar
a união do coração humano com Deus: « Todos os místicos afirmaram que o amor
sobrenatural e o amor celeste encontram os símbolos que procuram
O mundo das emoções
143. Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes
« paixões ») ocupam um lugar importante no matrimónio. Geram-se quando « outro
» se torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo
tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais
afectivos basilares: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou
receio. São o pressuposto da actividade psicológica mais elementar. O ser
humano é um vivente desta terra, e
tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
144. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com grande
emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de Jerusalém (cf. Mt
23, 37) e, por esta situação, chorou (cf. Lc 19,
41). Compadecia-Se também à vista da multidão atribulada (cf. Mc
6, 34). Vendo os outros a chorar, comovia-Se e turbava-Se (cf. Jo
11, 33), e Ele mesmo chorou pela morte dum amigo (cf. Jo
11, 35). Estas manifestações da sua sensibilidade mostram até que
ponto estava aberto aos outros o seu coração humano.
145. Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo
moralmente bom nem mau. Começar a sentir
desejo ou repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom ou mau é
o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os
sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más
acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem. Na
mesma linha, sentir atracção por alguém não é, de por si, um bem. Se esta
atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o
sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque «
provamos sentimentos », é um tremendo engano. Há pessoas que se sentem capazes
dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem
lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste
caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que
torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
146. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode
manifestar a profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda
a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em
comum. A
maturidade chega a uma família, quando a vida emotiva dos
seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes
opções e valores, mas segue a sua liberdade, brota
dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-
a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
147. Isto requer um caminho pedagógico, um processo que
inclui renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo
mundo como se fosse inimiga da felicidade humana. Bento XVI regista esta
crítica com muita clareza: « Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não
nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala
ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador,
nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino? » Mas ele responde que, embora não tenham faltado
exageros ou ascetismos extraviados no cristianismo, a doutrina oficial da
Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não rejeitou « o eros enquanto
tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa
divinização do eros (…) priva-o da sua
dignidade, desumaniza-o ».
148. É necessária a educação da emotividade e do instinto e,
para isso, às vezes torna-se indispensável impormo-nos algum limite. O excesso,
o descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres acabam por debilitar e
combalir o próprio
prazer, e prejudicam a
vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as paixões, o
que significa orientá-las cada vez mais num projecto de auto doação e plena
realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da família.
Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer, mas assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momentos de
dedicação generosa, espera paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal. A
vida em família é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.
149. Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o
desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do
ser humano, pois Ele criou tudo « para nosso usufruto » (1
Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista
da sua ternura, quando nos propõe: « Meu filho, se tens com
quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente » (Sir
14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus,
quando segue este convite bíblico: « No dia da felicidade, sê alegre » (Qo
7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer
encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo
com as necessidades do amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar a proposta de
alguns mestres orientais que insistem em ampliar a consciência, para não ficar presos
numa experiência muito limitada que nos fecharia as perspectivas. Esta
ampliação da consciência não é a negação ou a destruição do desejo, mas a sua
dilatação e aperfeiçoamento.
A dimensão erótica do amor
150. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos.
O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas.
Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se
produza o « depauperamento de um valor autêntico ».
São João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «
uma negação do valor do sexo humano » ou que o tolere simplesmente « pela necessidade
da procriação ». A necessidade sexual dos
esposos não é objecto de menosprezo, e « não se trata de modo algum de pôr em
questão aquela necessidade ».
151. A quantos receiam que, com a educação das paixões e da
sexualidade, se prejudique a espontaneidade do amor sexual, São João Paulo II
respondia que o ser humano « é também chamado à plena e matura espontaneidade
das relações
», que « é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do
próprio coração ». É algo que se
conquista, pois todo o ser humano « deve, perseverante e coerentemente,
aprender o que é o significado do corpo ».150 A
sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma
linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e
inviolável.
Assim, « o coração humano torna-se participante, por assim
dizer, de outra espontaneidade ». Neste
contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade.
Nele pode-se encontrar o « significado esponsal do corpo e a autêntica
dignidade do dom ». Nas suas catequeses
sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que a corporeidade
sexuada « é não só fonte de fecundidade e de procriação », mas possui « a
capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se
torna dom ». O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de
prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
152. Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a
dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o
bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos.
Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro,
torna-se uma « afirmação amorosa plena e cristalina », mostrando-nos de que
maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, « sente-se que a
existência humana foi um sucesso ».
Violência e manipulação
153. No contexto desta visão positiva da sexualidade, é
oportuno apresentar o tema na sua integridade e com um são realismo. Pois não
podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de
patologias, de modo que « se torna cada vez mais ocasião e instrumento de
afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e
instintos ». Neste tempo, também a
sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do «
usa e joga fora ». Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa
que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde
atractivo. Podem-se porventura ignorar ou dissimular as formas constantes de
domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que resultam duma
distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade dos outros e o
apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo?
154. Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimónio, a
sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos
reafirmar, claramente, que « um acto conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem
consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um
verdadeiro acto de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta ordem
moral, nas relações entre os esposos ». Os
actos próprios da união sexual dos cônjuges correspondem à natureza da
sexualidade querida por Deus, se forem vividos « de modo autenticamente humano
». Por isso, São Paulo exortava: « Que
ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão
» (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa
época em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um
ser completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve
ser uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar
as relações sexuais por algum tempo, mas « de mútuo acordo » (1
Cor 7, 5).
155. São João Paulo II fez uma advertência muito subtil,
quando disse que o homem e a mulher são « ameaçados pela insaciabilidade ». Por outras palavras, são chamados a uma união
cada vez mais intensa, mas correm o risco de pretender apagar as diferenças e a
distância inevitável que existe entre os dois. Com efeito, cada um possui uma
dignidade própria e irrepetível. Quando o bem precioso da pertença recíproca se
transforma em domínio, « muda essencialmente a estrutura de comunhão na relação
interpessoal ». Na lógica do domínio, o
dominador acaba também negando a sua própria dignidade e, em última análise, deixa « de identificar-se subjectivamente com
o próprio corpo »,161 porque lhe tira todo
o significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo e como renúncia à beleza da
união.
156. É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de
submissão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto
da Carta aos Efésios, onde se pede que « as mulheres [sejam submissas] aos seus
maridos » (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em categorias culturais
próprias daquela época; nós não devemos assumir esta roupagem cultural, mas a
mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope. Retomemos a sábia
explicação de São João Paulo II: « O amor exclui todo o género de submissão, pelo
qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade ou
unidade, que devem constituir por causa do matrimónio, realiza-se através de
uma recíproca doação, que é também submissão mútua ». Por isso, se diz que « devem também os maridos amar as suas mulheres,
como o seu próprio corpo » (Ef 5, 28). Na realidade, o
texto bíblico convida a superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos
outros: « Submetei-vos uns aos outros » (Ef 5,21). Entre os cônjuges,
esta recíproca « submissão » adquire um significado especial, devendo-se entender
como uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de
características de fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao
serviço desta amizade conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que
o outro viva em plenitude.
157. Entretanto a rejeição das distorções da sexualidade e
do erotismo nunca deveria levar-nos ao seu desprezo nem ao seu descuido. O
ideal do matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação generosa e
sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa
apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de que um
amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como
vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz,
as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual.
Bento XVI era claro a este respeito: « Se o homem aspira a ser somente espírito
e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e
corpo perdem a sua dignidade ». Por esta
razão, « o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo,
descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer
dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom ». Em
todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre
permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode fugir-nos
de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e egoístas.
Matrimónio e virgindade
158. « Muitas pessoas, que vivem sem se casar, não só se
dedicam à sua família de origem, mas muitas vezes realizam grandes serviços no seu
círculo de amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional (...). Muitos
colocam os seus talentos também ao serviço da comunidade cristã sob a forma de
assistência caritativa e voluntariado. Temos ainda aqueles que não se casam, porque
consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a sua dedicação, é
extraordinariamente enriquecida a família, na Igreja e na sociedade ».
159. A virgindade é uma forma de amor. Como sinal,
recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao
serviço da evangelização (cf. 1 Cor 7, 32) e é um reflexo da
plenitude do Céu, onde « nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos
» (Mt 22,30). São Paulo recomendava a virgindade,
porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se
concentrassem apenas na evangelização: « O tempo é breve » (1
Cor 7,29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um
desejo dele (cf. 1 Cor 7, 6-8), não uma
exigência de Cristo: « Não tenho nenhum preceito do Senhor » (1
Cor 7, 25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: «
Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra » (1
Cor 7, 7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos
« não oferecem motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a
“superioridade” da virgindade ou do
celibato » devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da
virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes
estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito
num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por
exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se
considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande
como « a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a
humana ».
160. Portanto « não se trata de diminuir o valor do
matrimónio em favor da continência » e «
não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se,
considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição
(status perfectionis), não é
por motivo da continência mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada
sobre os conselhos evangélicos ». Entretanto
uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo. E assim « chega
àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos
referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem ».
161. A virgindade tem o valor simbólico do amor que não
necessita de possuir o outro, reflectindo assim a liberdade do Reino dos Céus.
É um convite para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva do amor
definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino. Por sua
vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é
reflexo peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual existe
também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, porque mostra
a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se-lhe na
encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se « uma só carne »
com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim. Enquanto
a virgindade é um sinal « escatológico » de Cristo ressuscitado, o matrimónio é
um sinal « histórico » para nós que caminhamos na terra, um sinal de Cristo
terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu sangue. A
virgindade e o matrimónio são – e devem ser – modalidades diferentes de amar,
porque « o homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser
incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o
amor ».
162. O celibato corre o risco de ser uma cómoda solidão, que
dá liberdade para se mover autonomamente, mudar de local, tarefa e opção, dispor
do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas pessoas segundo a
atracção do momento.
Neste caso, sobressai o testemunho das pessoas casadas.
Aqueles que foram chamados à virgindade podem encontrar, nalguns casais de esposos,
um sinal claro da fidelidade generosa e indestrutível de Deus à sua Aliança,
que pode estimular os seus corações a uma disponibilidade mais concreta e
oblativa. Com efeito, há pessoas casadas que mantêm a sua fidelidade, quando o cônjuge
se tornou fisicamente desagradável ou deixou de satisfazer as suas
necessidades; e fazem-no, não obstante muitas ocasiões os convidarem à
infidelidade ou ao abandono. Uma mulher pode cuidar do marido doente e ali, ao
pé da Cruz, volta a oferecer o « sim » do seu amor até à morte. Em semelhante
amor, manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama, dignidade como
reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do que ser amado. Uma
capacidade de serviço oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas
famílias com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses pais um sinal do
amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas
celibatárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior
generosidade e disponibilidade. Hoje, a secularização ofuscou o valor duma
união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedicação matrimonial, pelo que
« é preciso aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal ».
A transformação do amor
163. O alongamento da vida provocou algo que não era comum
noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante
quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas
vezes a recíproca escolha. Talvez o cônjuge já não esteja apaixonado com um
desejo sexual intenso que o atraia para outra pessoa, mas sente o prazer de lhe
pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber que não está só, de ter um «
cúmplice » que conhece tudo da sua vida e da sua história e tudo partilha. É o
companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e
gozar das coisas lindas. Também isto gera uma satisfação, que acompanha a
decisão própria do amor conjugal. Não é possível prometer que teremos os mesmos
sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projecto comum estável,
comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver
sempre uma rica intimidade. O amor, que
nos prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora
possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração
que envolve toda a existência. Assim, no meio dum conflito não resolvido e
ainda que muitos sentimentos confusos girem pelo coração, mantém-se viva
dia-a-dia a decisão de amar, de se pertencer, de partilhar a vida inteira e
continuar a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois realiza um caminho de
crescimento e mudança pessoal. No curso de tal caminho, o amor celebra cada
passo, cada etapa nova.
164. Na história dum casal, a aparência física muda, mas
isso não é motivo para que a atracção amorosa diminua. Um cônjuge enamora-se
pela pessoa inteira do outro, com uma identidade própria, e não apenas pelo
corpo, embora este corpo, independentemente do desgaste do tempo, nunca deixe
de expressar de alguma forma aquela identidade pessoal que cativou o coração.
Quando os outros já não podem reconhecer a beleza desta identidade, o cônjuge
enamorado continua a ser capaz de a individuar com o instinto do amor, e o
carinho não desaparece. Reitera a sua decisão de lhe pertencer, volta a
escolhê-lo, e exprime esta escolha numa proximidade fiel e cheia de ternura. A
nobreza da sua opção pelo outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova forma
de emoção no cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, « a emoção
provocada por outro ser humano como pessoa (...) não tende, de per si, para o
acto conjugal ». Adquire outras expressões
sensíveis, porque o amor « é uma única realidade, embora com distintas
dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais ». O vínculo encontra novas modalidades e exige a
decisão de reatá-lo repetidamente; e não só para o conservar, mas para o fazer
crescer. É o caminho de se construir dia após dia. Entretanto nada disto é
possível, se não se invoca o Espírito Santo, se não se clama todos os dias
pedindo a sua graça, se não se procura a sua força sobrenatural, se não Lhe
fazemos presente o desejo de que derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o
fortalecer, orientar e transformar em cada nova situação.
CAPÍTULO V
O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
165. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal « não
se esgota no interior do próprio casal (...). Os cônjuges, enquanto se doam
entre si, doam para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do seu
amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do
ser pai e mãe ».
Acolher uma nova vida
166. A família é o âmbito não só da geração, mas também do
acolhimento da vida que chega como um presente de Deus. Cada nova vida «
permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa de nos
surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados antes de
chegar ». Isto mostra-nos o
primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa, porque
os filhos « são amados antes de ter feito algo para o merecer ». Mas, « desde o início, numerosas crianças são
rejeitadas, abandonadas e subtraídas à sua infância e ao seu futuro. Alguns
ousam dizer, como que para se justificar, que foi um erro tê-las feito vir ao
mundo. Isto é vergonhoso! (...) Que aproveitam as solenes declarações dos
direitos do homem e dos direitos da criança, se depois punimos as crianças
pelos erros dos adultos? » Se uma criança
chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais ou os outros membros da
família devem fazer todo o possível para aceitá-la como dom de Deus e assumir a
responsabilidade de a acolher com
magnanimidade e carinho. Com efeito, « quando se trata de
crianças que vêm ao mundo, nenhum sacrifício dos adultos será julgado demasiado
oneroso ou grande, contanto que se evite que uma criança chegue a pensar que é
um erro, que não vale nada e que está abandonada aos infortúnios da vida e à
prepotência dos homens ». O dom dum novo
filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início com o seu acolhimento,
continua com a sua guarda ao longo da vida terrena e tem como destino final a
alegria da vida eterna. Um olhar sereno voltado para a realização final da
pessoa humana tornará os pais ainda mais conscientes do precioso dom que lhes
foi confiado; de facto, Deus concede-lhes fazer a escolha do nome com que Ele
chamará cada um dos seus filhos por toda a eternidade.
167. As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja.
Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica esquecer
uma sã advertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade
responsável não é « procriação
ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo que é
necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que os
cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável,
tendo em consideração tanto as realidades sociais e demográficas, como a sua
própria situação e os seus legítimos desejos ».
O amor na expectativa própria
da gravidez
168. A gravidez é um período difícil, mas também um tempo
maravilhoso. A mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre duma nova
vida. A maternidade surge duma « particular potencialidade do organismo
feminino, que, com a sua peculiaridade criadora, serve para a concepção e a
geração do ser humano ». Cada mulher participa
do « mistério da criação, que se renova na geração humana ». Assim diz o Salmo: Senhor, « formaste-me no
seio de minha mãe » (Sl 139/138, 13). Cada criança,
que se forma dentro de sua mãe, é um projecto eterno de Deus Pai e do seu amor
eterno: « Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes
que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei » (Jr 1,
5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é
concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o
embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso
do Pai, que vê para além de toda a aparência.
169. A mulher grávida pode participar deste projecto de
Deus, sonhando o seu filho: « Toda a mãe e todo o pai sonharam o seu filho
durante nove meses. (...) Não é possível uma família sem o sonho. Numa família,
quando se perde a capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o amor não cresce; a vida debilita-se e apaga-se ». Neste sonho, para um casal cristão, aparece
necessariamente o baptismo. Os pais preparam-no com a sua oração, confiando o filho
a Jesus já antes do seu nascimento.
170. Hoje, com os progressos feitos pela ciência, é possível
saber de antemão a cor que terá o cabelo da criança e as doenças que poderá ter
no futuro, porque todas as características somáticas daquela pessoa estão
inscritas no seu código genético já no estado embrionário. Mas, conhecê-lo em
plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais precioso, o mais
importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela criança, qual é a
sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz no ventre, precisa de pedir luz
a Deus para poder conhecer em profundidade o seu próprio filho e saber
esperá-lo como ele é. Alguns pais sentem que o seu filho não chega no melhor
momento; faz-lhes falta pedir ao Senhor que os cure e fortaleça para aceitarem
plenamente aquele filho, para o esperarem com todo o coração. É importante que
aquela criança se sinta esperada. Não é um complemento ou uma solução para uma
aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode ser usado
para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se esta nova vida te
será útil ou não, se possui características
que te agradam ou não, se corresponde ou não aos teus projectos e
sonhos. Porque « os filhos são uma dádiva! Cada um é único e
irrepetível (...). Um filho é amado porque é filho: não, porque é bonito ou
porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho! Não, porque pensa como eu,
nem porque encarna as
minhas aspirações. Um filho é um filho ». O amor dos pais é instrumento do amor de Deus Pai,
que espera com ternura o nascimento de cada criança, aceita-a
incondicionalmente e acolhe-a gratuitamente.
171. A cada mulher grávida, quero pedir-lhe afectuosamente:
Cuida da tua alegria, que nada te tire a alegria interior da maternidade.
Aquela criança merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as
preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de
ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao mundo. Ocupa-te daquilo
que é preciso fazer ou preparar, mas sem obsessões, e louva como Maria: « A
minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da sua serva » (Lc 1,46-48).
Vive, com sereno entusiasmo, no meio dos teus incómodos e pede ao Senhor que
guarde a tua alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.
Amor de mãe e de pai
172. « Recém-nascidas, as crianças começam a receber em dom,
juntamente com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades
espirituais do amor. Os gestos de amor passam através do dom do seu nome
pessoal, da partilha da linguagem, das intenções dos olhares, das iluminações dos
sorrisos. Assim, aprendem que a beleza do vínculo entre os seres humanos mostra
a nossa alma, procura a nossa liberdade, aceita a diversidade do outro,
reconhece-o e respeita-o como interlocutor. (...) E isto é amor, que contém uma
centelha do amor de Deus ». Toda a criança
tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos necessários para o
seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como disseram os bispos da Austrália,
ambos « contribuem, cada um à sua maneira, para o crescimento duma criança.
Respeitar a dignidade duma criança significa afirmar a sua necessidade e o seu
direito natural a ter uma mãe e um pai ». Não
se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre
eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como
fundamento da família. Caso contrário, o filho parece reduzir-se a uma posse
caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são « cooperadores do amor de
Deus criador e como que os seus intérpretes ». Mostram
aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor. Além disso, é
juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres
diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também
receber do outro. Se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é
importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado
amadurecimento do filho.
173. O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam
muitas crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos como
plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar,
trabalhar, desenvolver
as suas capacidades e ter objectivos pessoais. Mas, ao mesmo
tempo, não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna,
especialmente nos primeiros meses de vida. A realidade é que « a mulher
apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é
concebida e se desenvolve, e dela nasce para o mundo ». O enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades
femininas, é um risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não
pretende a uniformidade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza
das mulheres implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade humana
inalienável, mas também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As
suas capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade –
conferem-lhe
também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma
missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem
de todos.
174. De facto, « as mães são o antídoto mais forte contra o
propagar-se do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham a beleza da
vida ». Sem dúvida, « uma sociedade sem mães
seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo
nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral. As mães transmitem,
muitas vezes, também o sentido mais profundo da prática religiosa: nas
primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção que uma criança aprende
(...). Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa
parte do seu calor simples e profundo. (...) Queridas mães, obrigado, obrigado por
aquilo que sois na família e pelo que dais
à Igreja e ao mundo ».
175. A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e
compaixão, ajuda a despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um
lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece
a capacidade de intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do pai ajuda a
perceber os limites da realidade, caracterizando-se mais pela orientação, pela
saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e
lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez
combine no seu trato com a esposa o
carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados
maternos. Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias
concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas
figuras, masculina e feminina, cria
o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.
176. Diz-se que a nossa sociedade é uma « sociedade sem pais
». Na cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente,
distorcida, desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão.
Verificou-se uma compreensível confusão, já que, « num primeiro momento, isto foi
sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como
representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos
filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia
casas em que no passado reinava o autoritarismo, em certos casos até a
prepotência ». Mas, « como acontece muitas
vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos nossos dias não parece
ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua
ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado
em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais
que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos ». A presença paterna e, consequentemente, a sua
autoridade são afectadas também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos
meios de comunicação e à tecnologia da distracção. Além disso, hoje, a
autoridade é olhada com suspeita e os adultos são duramente postos em
discussão. Eles próprios abandonam as certezas e, por isso, não dão orientações
seguras e bem fundamentadas aos seus filhos. Não é saudável que sejam
invertidas as funções entre pais e filhos: prejudica o processo adequado de
amadurecimento que as crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor capaz de
as orientar e que as ajude a maturar.
177. Deus coloca o pai na família, para que, com as
características preciosas da sua masculinidade, « esteja próximo da esposa,
para compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja
próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam,
quando estão descontraídos e quando se sentem angustiados, quando se exprimem e
quando permanecem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo
errado e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar presente
não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam
os filhos ». Alguns pais sentem-se inúteis
ou desnecessários, mas a verdade é que « os filhos têm necessidade de encontrar
um pai que os espera quando voltam dos seus fracassos. Farão de tudo para não o
admitir, para não o revelar, mas precisam dele ».
Não é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser
crianças antes do tempo.
Fecundidade alargada
178. Àqueles que não podem ter filhos, lembramos que « o matrimónio
não foi instituído só em ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que faltem
os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu
valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida ».199 Além disso, « a maternidade não é uma
realidade exclusivamente biológica, mas expressa-se de diversas maneiras ».
179. A adopção é um caminho para realizar a maternidade e a
paternidade de uma forma muito generosa, e desejo encorajar aqueles que não podem
ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para receber quem está privado
de um ambiente familiar adequado. Nunca se arrependerão de ter sido generosos.
Adoptar é o acto de amor que oferece uma família a quem não a tem. É importante
insistir para que a legislação possa facilitar o processo de adopção, sobretudo
nos casos de filhos não desejados, evitando assim o aborto ou o abandono.
Aqueles que assumem o desafio de adoptar e acolhem uma pessoa de maneira incondicional
e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz: « Ainda que a tua mãe chegasse
a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria » (cf. Is 49, 15).
180. « A opção da adopção e do acolhimento exprime uma
fecundidade particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos de
esposos com problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em que o
filho é desejado a todo o custo, como um direito ao próprio completamento, a
adopção e o acolhimento, rectamente compreendidos, mostram um aspecto
importante da paternidade e da filiação ajudando a reconhecer que os filhos,
quer naturais quer adoptivos ou acolhidos, são em si mesmos outro sujeito e é
preciso recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas trazê-los ao mundo. O
interesse prevalecente da criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a adopção
e o acolhimento ». Por outro lado, «
deve-se impedir o tráfico de crianças entre países e continentes, por meio de
oportunas medidas legislativas e controle estatal ».
181. Convém lembrar-nos também de que a procriação e a
adopção não são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a
família com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está
inserida, desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de
extensão do amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam que « a fé
não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um
de nós cabe
um papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus ». A família não deve imaginar-se como um recinto
fechado, procurando proteger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si
mesma à procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração
da pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o privado. Os
cônjuges precisam de adquirir consciência clara e convicta dos seus deveres sociais.
Quando isto acontece, não diminui o carinho que os une; antes, enche-se de nova
luz, como está expresso nos seguintes versos: « As tuas mãos são a minha
carícia, o meu despertar diário amo-te porque tuas mãos trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és o meu amor, o meu cúmplice e tudo e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois ».
182. Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como
demasiado diferente ou « separada ». Para evitar este risco, lembremo-nos que a
família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma família «
estranha », como um lar alheado e distante da gente. Por isso mesmo as pessoas
sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus e diziam: « De onde é
que isto lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria? » (Mc
6, 2.3). « Não é Ele o filho do carpinteiro? » (Mt
13, 55). Isto confirma que era uma família simples, próxima de
todos, integrada normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa
relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se na
família alargada, onde encontrava os parentes e os amigos. Isto explica por
que, quando regressavam de Jerusalém, os seus pais admitissem a possibilidade
de o Menino de doze anos vagar pela caravana um dia inteiro, ouvindo as
histórias e partilhando as preocupações de todos: « Pensando que Ele Se
encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem » (Lc 2,
44). Mas, às vezes,
acontece que algumas famílias cristãs, pela linguagem que
usam, a maneira de dizer as coisas, o estilo do seu tratamento, a repetição
constante de dois ou três assuntos, são vistas como distantes, separadas da
sociedade, e até os próprios parentes se sentem desprezados ou julgados por
elas.
183. Um casal de esposos, que experimenta a força do amor,
sabe que este amor é chamado a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer a
cultura do encontro, lutar pela justiça. Deus confiou à família o projecto de
tornar « doméstico » o mundo, de modo que
todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: « Um olhar atento à vida
quotidiana dos homens e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a
necessidade que há, em toda a parte, duma vigorosa injecção de espírito
familiar. (...) Não só a organização da vida comum encalha cada vez mais numa
burocracia totalmente alheia aos vínculos humanos fundamentais, mas até o
costume social e político mostra frequentemente sinais de degradação ». Pelo contrário, as famílias magnânimas e
solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer uma amizade com
aqueles que estão a viver pior do que elas. Se realmente têm a peito o
Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: « Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt
25, 40). Em última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão
eloquente, neste texto: « Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os
teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos
ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te.
Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.
E serás feliz » (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui
está o segredo duma família feliz. 184. Com o testemunho e também com a
palavra, as famílias falam de Jesus aos outros, transmitem a fé, despertam o
desejo de Deus e mostram a beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos
propõe. Assim os esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público,
colorindo-o de fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis,
fé luminosa, esperança activa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em
mil e uma maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade.
Distinguir o Corpo
185. Nesta linha, convém tomar muito a sério um texto
bíblico que habitualmente é interpretado fora do seu contexto ou duma maneira muito
geral, pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais imediato e directo,
que é marcadamente social. Trata-se da primeira Carta aos Coríntios (11,
17-34), onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da comunidade. Nela, algumas
pessoas facultosas tendiam a discriminar os pobres, e isto verificava-se mesmo
na ágape
que acompanhava a celebração da Eucaristia. Enquanto os
ricos se deleitavam com seus manjares, os pobres olhavam e passavam fome: «
Enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Porventura não tendes casas para
comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que
nada têm? » (vv. 21-22).
186. A Eucaristia exige a integração no único corpo
eclesial. Quem se abeira do Corpo e do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tempo
ofender aquele mesmo Corpo, fazendo divisões e discriminações escandalosas
entre os seus membros. Na realidade, trata-se de « distinguir » o Corpo do
Senhor, de O reconhecer com fé e
caridade, quer nos sinais sacramentais quer na comunidade;
caso contrário, come-se e bebe-se a própria condenação (cf. v. 29). Este texto
bíblico é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria comodidade e
se isolam e, de modo especial, para as famílias que ficam indiferentes aos sofrimentos
das famílias pobres e mais necessitadas. Assim, a celebração eucarística
torna-se um apelo constante a cada um para que « se examine a si mesmo » (v.
28), a fim de abrir as portas da própria família a uma maior comunhão com os descartados
da sociedade e depois, sim, receber o sacramento do amor eucarístico que faz de
nós
um só corpo. Não se deve esquecer que « a “mística” do
sacramento tem um carácter social ». Quando os comungantes se mostram
relutantes em deixar-se impelir a um compromisso a favor dos pobres e
atribulados ou consentem diferentes formas de divisão, desprezo e injustiça,
recebem indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as famílias, que se alimentam
da Eucaristia com a disposição adequada, reforçam o seu desejo de fraternidade,
o seu sentido social e o seu compromisso para com os necessitados.
A vida na fa mília em sentido amplo
187. O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se da
família alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos.
Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo menos de
companhia e gestos de carinho,
ou pode haver grandes sofrimentos que precisam de conforto. Às vezes o individualismo destes tempos leva a
fechar-se na segurança dum pequeno ninho e a sentir os outros como um incómodo.
Todavia este isolamento não proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o
coração da família e priva-a do horizonte amplo da existência.
Ser filho
188. Em primeiro lugar, falemos dos pais próprios. Jesus
lembrava aos fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc
7,8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência de ser filho. Em
cada pessoa, « mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também a ser
progenitora ou desempenha funções de responsabilidade, por baixo de tudo isso permanece
a identidade de filho. Todos somos filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida
não no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O grande dom da vida é o primeiro
presente que recebemos ».
189. Por isso, « o quarto mandamento pede aos filhos (…) que
honrem o pai e a mãe (cf. Ex 20,12). Este mandamento vem
logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito, contém algo
de sagrado, algo de divino, algo que
está na raiz de todos os outros tipos de respeito entre os
homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que
se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. O
vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e de uma história verdadeiramente
humana. Uma sociedade de filhos que não honram os pais é uma sociedade sem
honra (...). É uma sociedade destinada a encher-se de jovens áridos e ávidos ».
190. Mas há também a outra face da moeda: « O homem deixará
o pai e a mãe » (Gn 2, 24), diz a Palavra de
Deus. Às vezes, isto não é cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimónio,
porque falta esta renúncia e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados
nem transcurados, mas, para unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo
que o novo lar seja a morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja
possível tornar-se verdadeiramente « uma só carne » (Gn 2,
24). Sucede, em alguns casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que
entretanto se dizem aos pais, chegando ao ponto de se importar mais com as
opiniões destes do que com os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil
manter esta situação por muito tempo, e só provisoriamente poderia ter lugar,
isto é, enquanto se criam as condições para crescer na confiança
e no diálogo. O matrimónio desafia a encontrar uma nova
maneira de ser filho.
Os idosos
191. « Não me rejeites no tempo da velhice; não me
abandones, quando já não tiver forças » (Sl 71/70, 9). É o brado do
idoso, que teme o esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser
seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos
o brado dos idosos. Isto interpela as famílias
e as comunidades, porque « a Igreja não pode nem quer conformar-se com uma
mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença
e desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o
sentido colectivo de gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso
sentir-se parte viva da sua comunidade. Os idosos são homens e mulheres, pais e
mães que, antes de nós, percorreram o nosso próprio caminho, estiveram na nossa
mesma casa, combateram a nossa mesma batalha diária por uma vida digna ». Por isso,
« como gostaria duma Igreja que desafia a culturado descarte
com a alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos! »
192. São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao
lugar do idoso na família, porque há culturas que, « especialmente depois dum
desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e continuam a
forçar, os idosos a situações inaceitáveis de marginalização ». Os idosos ajudam a perceber « a continuidade
das gerações », com « o carisma de lançar uma ponte » entre elas. Muitas vezes
são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores aos seus netos, e «
muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na vida cristã
precisamente aos avós ». As suas palavras,
as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a reconhecer que a
história não começa com elas, que são herdeiras dum longo caminho e que é
necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra os laços com a
história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer que não é o
dono da realidade. Com efeito, « a atenção aos idosos distingue uma
civilização. Numa civilização, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o idoso?
Esta civilização irá em frente, se souber respeitar a sabedoria dos idosos ».
193. A falta de memória histórica é um defeito grave da
nossa sociedade. É a mentalidade imatura do « já está ultrapassado ». Conhecer e
ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única
possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem
memória: « Recordai os dias passados » (Heb10, 32). As histórias dos
idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam à história vivida
tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família que não respeita
nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família
desintegrada; mas uma família que recorda
é uma família com futuro. Por isso, « numa civilização em
que não há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam
problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte », porque « se separa das próprias raízes ». O fenómeno
contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de descontinuidade, desenraizamento
e perda das certezas que dão forma à vida, desafia-nos a fazer das nossas
famílias um lugar onde as crianças possam lançar raízes no terreno duma história
colectiva.
Ser irmão
194. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do
tempo, e « o laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos,
quando se verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é uma
grande escola de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos a convivência
humana (…). Talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é precisamente a
família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta primeira
experiência de fraternidade, alimentada pelos afectos e pela educação familiar,
o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira
».
195. Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de
cuidar uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, « a fraternidade na
família resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a paciência e o
carinho com que é circundado
o irmãozinho ou a irmãzinha mais frágil, doente ou
deficiente ». Faz falta reconhecer que «
ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência forte, inestimável,
insubstituível », mas é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se
como irmãos. Esta aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade.
Nalguns países, existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a
experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter
mais de um filho, é preciso encontrar formas de a criança não crescer sozinha
ou isolada.
Um coração grande
196. Com efeito, além do círculo pequeno formado pelos
cônjuges e seus filhos, temos a família alargada, que não pode ser ignorada.
Com efeito, « o amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma
derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família – entre pais e
filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares – é animado e
impelido por um dinamismo interior e incessante, que leva a família a uma
comunhão sempre mais profunda e intensa, fundamento e alma da comunidade
conjugal e familiar ». Aí se integram
também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as comunidades de famílias que
se apoiam mutuamente nas suas dificuldades, no seu compromisso social e na fé.
197. Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor,
as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar
a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e
proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras,
separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não
recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela « mesmo os mais
desastrados nos comportamentos da sua vida ». E
pode também ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a descobrir e
denunciar a tempo possíveis situações de violência ou mesmo de abuso sofridas pelas
crianças, dando-lhes um amor sadio e um sustentáculo familiar, quando os seus
pais não o podem assegurar.
198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta família
alargada, estão também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma
delicadeza própria do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas
perigosas, como invasores. A união conjugal exige que se respeite as suas tradições
e costumes, se procure compreender a sua linguagem, evitar maledicências,
cuidar deles e integrá-los dalguma forma no próprio coração, embora se deva
preservar a legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas atitudes são
também uma excelente maneira de exprimir a generosidade da dedicação amorosa ao
próprio cônjuge.
CAPÍTULO VI
ALGUMAS PERSPECTIVAS PASTORAIS
199. Os debates do caminho sinodal puseram a descoberto a
necessidade de desenvolver novos caminhos pastorais, que procurarei agora resumir
em geral. As diferentes comunidades é que deverão elaborar propostas mais
práticas e eficazes, que tenham em conta tanto a doutrina da Igreja como as
necessidades e desafios locais. Sem pretender apresentar aqui uma pastoral da família,
limitar-me-ei a coligir alguns dos principais desafios pastorais.
Anunciar hoje o Evangelho da família
200. Os Padres sinodais insistiram no facto de que as
famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais
da pastoral familiar, sobretudo oferecendo « o testemunho jubiloso dos cônjuges
e das famílias, igrejas domésticas ». Para
isso – sublinharam – é preciso fazer-lhes « experimentar que o Evangelho da família
é alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo, somos
“libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento”
(Evangelii gaudium, 1). À luz
da parábola do semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste
em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus. E não se deve esquecer
também que a Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição », mas os esposos agradecem que os pastores lhes
ofereçam motivações para uma aposta corajosa num amor forte, sólido, duradouro,
capaz de enfrentar todos os imprevistos que lhes surjam. É com humilde
compreensão que a Igreja quer chegar às famílias, com o desejo de « acompanhar
todas e cada uma delas a fim de que descubram a saída melhor para superar as dificuldades
que encontram no seu caminho ». Não basta inserir uma genérica preocupação pela
família nos grandes projectos pastorais; para que as famílias possam ser
sujeitos cada vez mais activos da pastoral familiar, requer-se « um esforço evangelizador
e catequético dirigido à família », que a encaminhe nesta direcção.
201. « Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão missionária:
é preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos
problemas reais das pessoas ». A pastoral familiar
« deve fazer experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas
mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na
reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma
normativa, mas de propor valores, correspondendo à necessidade deles que se
constata hoje, mesmo nos países mais secularizados ». De igual modo «
sublinhou-se a necessidade duma evangelização que denuncie, com desassombro, os
condicionalismos culturais, sociais, políticos e económicos, bem como o espaço
excessivo dado à lógica do mercado, que impedem uma vida familiar autêntica,
gerando discriminação, pobreza, exclusão e violência. Para isso, temos de
entrar em diálogo e cooperação com as estruturas sociais, bem como encorajar e
apoiar os leigos que se comprometem, como cristãos, no âmbito cultural e
sociopolítico ».
202. « A principal contribuição para a pastoral familiar é
oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se harmonizam os
contributos das pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais ». A par duma pastoral especificamente voltada
para as famílias, há necessidade duma « formação mais adequada dos presbíteros,
diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e restantes agentes pastorais ». Nas respostas às consultações promovidas em
todo o mundo, ressaltou-se que os ministros ordenados carecem, habitualmente,
de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias; para
isso, pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos
sacerdotes casados.
203. Os seminaristas deveriam ter acesso a uma formação
interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se limitando à
doutrina. Além disso, a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu
mundo psicoafectivo. Alguns carregam, na sua vida, a experiência da sua própria
família ferida, com a ausência de pais e instabilidade emocional. É preciso
garantir um amadurecimento, durante a formação, para que os futuros ministros
possuam o equilíbrio psíquico que a sua missão lhes exige. Os laços familiares são
fundamentais para fortificar a auto-estima sadia dos seminaristas. Por isso, é
importante que as famílias acompanhem todo o processo do Seminário e do
sacerdócio, pois ajudam a revigorá-lo de forma realista. Neste sentido, é
salutar a combinação de tempos de vida no Seminário com outros de vida em
paróquias, que permitam tomar maior contacto com a realidade concreta das
famílias. De facto, ao longo da sua vida pastoral, o sacerdote encontra-se
sobretudo com famílias. « A presença dos leigos e das famílias, particularmente
a presença feminina, na formação sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e
complementaridade das diferentes vocações na
204. As respostas às consultações exprimem, com insistência,
também a necessidade de formar agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda
de psicopedagogos, médicos de família, médicos de comunidade, assistentes
sociais, advogados de menores e família, predispondo-os para receber as
contribuições da psicologia, sociologia, sexologia e até aconselhamento. Os
profissionais, particularmente aqueles que têm experiência de acompanhamento,
ajudam a encarnar as propostas pastorais nas situações reais e nas preocupações
concretas das famílias. « Os itinerários e cursos de formação destinados
especificamente aos agentes pastorais poderão torná-los idóneos a inserir o
próprio caminho de preparação para o matrimónio na dinâmica mais ampla da vida eclesial
». Uma boa preparação pastoral é
importante, « sobretudo tendo em vista as particulares situações de emergência
decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso sexual ». Tudo isto em
nada diminui, antes integra, o valor fundamental da direcção espiritual, dos
recursos espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconciliação sacramental.
Guiar os noivos no caminho de preparação para o
matrimónio
205. Os Padres sinodais afirmaram, de várias maneiras, que é
preciso ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza do matrimónio. Devem poder captar o fascínio duma união plena que
eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida, confere à sexualidade o seu
sentido maior, ao mesmo tempo que promove o bem dos filhos e lhes proporciona o
melhor contexto para o seu amadurecimento e educação.
206. « A complexa realidade social e os desafios, que a
família é chamada a enfrentar actualmente, exigem um empenhamento maior de toda
a comunidade cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. É necessário
lembrar a importância das virtudes. Dentre elas, resulta ser condição preciosa
para o crescimento genuíno do amor interpessoal a castidade. A respeito desta
necessidade, os Padres sinodais foram concordes em sublinhar a exigência dum
maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das
próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da preparação para o
matrimónio no caminho da iniciação cristã, sublinhando o nexo do matrimónio com
o baptismo e os outros sacramentos. Da mesma forma, evidenciou-se a necessidade
de programas específicos de preparação próxima para o matrimónio que sejam verdadeira
experiência de participação na vida eclesial e aprofundem os vários aspectos da
vida familiar ».
207. Convido as comunidades cristãs a reconhecerem que é um
bem para elas mesmas acompanhar o caminho de amor dos noivos. Como justamente
disseram os bispos da Itália, aqueles que se casam são, para as comunidades
cristãs, « um recurso precioso, porque, esforçando-se sinceramente por crescer
no amor e no dom recíproco, podem contribuir para renovar o próprio tecido de
todo o corpo eclesial: a forma particular de amizade que vivem pode tornar-se
contagiosa, fazendo crescer na amizade e na fraternidade a comunidade cristã de
que fazem parte ». Há várias maneiras
legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimónio e cada Igreja
local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada que, ao
mesmo tempo, não afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes ministrar
o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, sendo válido também
aqui que « não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o sentir e
saborear interiormente as coisas ». Interessa
mais a qualidade do que a quantidade, devendo-se dar prioridade – juntamente
com um renovado anúncio do querigma – àqueles conteúdos que, comunicados de forma
atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda « com
ânimo grande e liberalidade ».Trata-se duma espécie
de « iniciação » ao sacramento do matrimónio, que lhes
forneça os elementos necessários para poderem recebê-lo com as melhores
disposições e iniciar com uma certa solidez a vida familiar.
208. Além disso, convém encontrar os modos – através das
famílias missionárias, das próprias famílias dos noivos e de vários recursos
pastorais – para oferecer uma preparação remota que faça amadurecer o amor
deles com um acompanhamento
rico de proximidade e testemunho. Habitualmente são muito
úteis os grupos de noivos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade
de temas que realmente interessam aos jovens. Entretanto são indispensáveis
alguns momentos personalizados, dado que o objectivo principal é ajudar cada um
a aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida
inteira. Aprender a amar alguém não é algo que se improvisa, nem pode ser o
objectivo dum breve curso antes da celebração do matrimónio. Na realidade, cada
pessoa prepara-se para o matrimónio, desde o seu nascimento. Tudo o que a família
lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da própria história e torná-la capaz dum
compromisso pleno e definitivo. Provavelmente os que chegam melhor preparados
ao casamento são aqueles que aprenderam
dos seus próprios pais o que é um matrimónio cristão, onde se escolheram um ao
outro sem condições e continuam a renovar
esta decisão. Neste sentido todas as actividades pastorais, que tendem a ajudar
os cônjuges a crescer no amor e a viver o Evangelho na família, são uma ajuda
inestimável a fim de que os seus filhos se preparem para a sua futura vida matrimonial.
Também não devemos esquecer os valiosos recursos da pastoral popular. Só para
dar um exemplo simples, lembro o Dia de São Valentim, que, em alguns países, é
melhor aproveitado pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores.
209. A preparação dos que já formalizaram o noivado, quando
a comunidade paroquial consegue acompanhá-los com bom período de antecipação, deve
dar-lhes também a possibilidade de individuar incompatibilidades e riscos.
Assim é possível chegarem a dar-se conta de que não é razoável apostar naquela
relação, para não se expor a um previsível fracasso que terá consequências muito
dolorosas. O problema é que o deslumbramento inicial leva a procurar esconder ou
relativizar muitas coisas, evitam-se as divergências, limitando-se assim a
adiar as dificuldades para depois. Os noivos deveriam ser incentivados e ajudados
a poderem expressar o que cada um espera dum eventual matrimónio, a sua maneira
de entender o que é o amor e o compromisso, aquilo que se deseja do outro, o
tipo de vida em comum que se quer projectar. Estes diálogos podem ajudar a ver
que, na realidade, os pontos de contacto são escassos e que a mera atracção mútua
não será suficiente para sustentar a união. Não há nada de mais volúvel,
precário e imprevisível que o desejo, e nunca se deve encorajar uma decisão de
contrair matrimónio se não se aprofundaram outras motivações que confiram a
este pacto reais possibilidades de estabilidade.
210. No caso de se reconhecer com clareza os pontos fracos
do outro, é preciso que exista uma efectiva confiança na possibilidade de
ajudá-lo a desenvolver o melhor da sua personalidade para contrabalançar o peso
das suas fragilidades, com um decidido interesse em promovê-lo como ser humano.
Isto implica aceitar com vontade firme a possibilidade de enfrentar algumas
renúncias, momentos difíceis e situações de conflito, e a sólida decisão de
preparar-se para isso. Deve ser possível detectar os sinais de perigo que
poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimónio, os meios que permitam
enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias sem se
conhecer. Limitaram-se a divertir-se juntos, a fazer experiências juntos, mas
não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos e apreender quem é
realmente o outro.
211. Tanto a preparação próxima como o acompanhamento mais
prolongado devem procurar que os noivos não considerem o matrimónio como o fim
do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a
decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos
difíceis. Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes
de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem
quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros. Estas contribuições
não são apenas convicções doutrinais, nem se podem reduzir aos preciosos
recursos espirituais que a Igreja sempre oferece, mas devem ser também percursos
práticos, conselhos bem encarnados, estratégias tomadas da experiência,
orientações psicológicas. Tudo isto cria uma pedagogia do amor, que não pode
ignorar a sensibilidade actual dos jovens, para conseguir mobilizá-los
interiormente. Ao mesmo tempo, na preparação dos noivos, deve ser possível
indicar-lhes lugares e pessoas, consultórios ou famílias prontas a ajudar, aonde
poderão dirigir-se em busca de ajuda se surgirem dificuldades. Mas nunca se
deve esquecer de lhes propor a Reconciliação sacramental, que permite colocar
os pecados e os erros da vida passada e da própria relação sob o influxo do
perdão misericordioso de Deus e da sua força sanadora.
A preparação da celebração
212. A preparação próxima do matrimónio tende a
concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes
que consomem tanto os recursos económicos como as energias e a alegria. Os
noivos chegam desfalecidos
e exaustos ao casamento, em vez de dedicarem o melhor das
suas forças a preparar-se como casal para o grande passo que, juntos, vão dar.
Esta mesma mentalidade subjaz também à decisão dalgumas uniões de facto que
nunca mais
chegam ao matrimónio, porque pensam nas elevadas despesas da
festa, em vez de darem prioridade ao amor mútuo e à sua formalização diante dos
outros. Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis
devorar pela sociedade do consumo e da aparência. O que importa é o amor que
vos une, fortalecido e santificado pela graça. Vós sois capazes de optar por
uma festa austera e simples, para colocar o amor acima de tudo. Os agentes
pastorais e toda a comunidade podem ajudar para que esta prioridade se torne a
norma e não a excepção.
213. Na preparação mais imediata, é importante esclarecer os
noivos para viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os
a compreender e viver o significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um
compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a
união dos corpos que consuma o matrimónio, quando se trata de dois baptizados, só
podem ser interpretados como sinais do amor do Filho de Deus feito carne e
unido com a sua Igreja em aliança de amor. Nos baptizados, as palavras e os
gestos transformam-se numa linguagem que manifesta a fé. O corpo, com os significados
que Deus lhe quis infundir ao criá-lo, « transforma-se na linguagem dos
ministros do sacramento, conscientes de que, no pacto conjugal, se manifesta e
realiza o mistério ».
214. Às vezes, os noivos não percebem o peso teológico e
espiritual do consentimento, que ilumina o significado de todos os gestos
sucessivos. É necessário salientar que aquelas palavras não podem ser reduzidas
ao presente; implicam uma totalidade que inclui o futuro: « até que a morte vos
separe ». O sentido do consentimento mostra que « liberdade e fidelidade não se
opõem uma à outra, aliás apoiam-se reciprocamente quer nas relações
interpessoais quer nas sociais. De facto, pensemos nos danos que produzem, na
civilização da comunicação global, o aumento de promessas não mantidas (...). A
honra à palavra dada, a fidelidade à promessa não se podem comprar nem vender.
Não podem ser impostas com a força, nem guardadas sem sacrifício ».
215. Os bispos do Quénia fizeram notar que « os futuros
esposos, muito concentrados com o dia da boda, esquecem-se de que estão a
preparar-se para um compromisso que dura a vida inteira ». Temos de ajudá-los a darem-se conta
de que o sacramento não é apenas um momento que depois passa
a fazer parte do passado e das recordações, mas exerce a sua influência sobre toda
a vida matrimonial, de maneira permanente. O significado procriador da
sexualidade, a linguagem do corpo e os gestos de amor vividos na história dum
casal de esposos transformam-se numa « continuidade ininterrupta da linguagem litúrgica
» e « a vida conjugal torna-se de algum modo liturgia ».
216. Também se pode meditar com as leituras bíblicas e
enriquecer a compreensão do significado das alianças que trocam entre si, ou
doutros sinais que fazem parte do rito. Mas não seria bom chegarem ao
matrimónio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para
serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e
inclusive consagrando o seu amor
diante duma imagem de Maria. Quem os acompanha na preparação do matrimónio
deveria orientá-los para que saibam viver estes momentos de oração, que lhes
podem fazer muito bem. « A liturgia nupcial é um evento único, que se vive no
contexto familiar e social duma festa. Jesus começou os seus milagres no
banquete das bodas de Caná: o vinho bom do milagre do Senhor, que alegra o
nascimento duma nova família, é o vinho novo da Aliança de Cristo com os homens
e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente, o celebrante tem a oportunidade
de se dirigir a uma assembleia formada por pessoas que participam
pouco na vida eclesial ou pertencem a outra confissão cristã
ou comunidade religiosa. Trata--se, pois, duma preciosa ocasião para anunciar o
Evangelho de Cristo ».
Acompanhamento nos primeiros anos da vida
matrimonial
217. Temos de reconhecer como um grande valor que se
compreenda que o matrimónio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles que
se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera
atracção ou a uma vaga afectividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma
extraordinária fragilidade quando a afectividade entra em crise ou a atracção física
diminui. Uma vez que estas confusões são frequentes, torna-se indispensável o
acompanhamento dos esposos nos primeiros anos de vida matrimonial, para
enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se pertencerem e amarem
até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é suficiente, a decisão de
casar-se apressa-se por várias razões e, como se não bastasse, atrasou a
maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de completar aquele percurso que
deveria ter sido feito durante o noivado.
218. Por outro lado, quero insistir que um desafio da
pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender
como algo acabado. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada
pelo sacramento do matrimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas,
senhores da sua própria história e criadores dum projecto que deve ser levado
para a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro, que é preciso
construir dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se pretende do
cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é:
inacabado, chamado a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é
constantemente crítico,
isto indica que o matrimónio não foi assumido também como um
projecto a construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e
generosidade. Isto faz com que o amor seja substituído pouco a pouco por um
olhar inquisidor e implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um,
pelas reclamações, a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de
se apoiarem um ao outro para o amadurecimento de ambos e para o crescimento da
união. Aos novos cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista
desde o início, de modo que tomem consciência de que estão apenas a começar. O
« sim » que deram um ao outro é o início dum itinerário, cujo objectivo se
propõe superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se
interpuserem. A bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho
sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu
projecto concreto com os seus objectivos, meios, detalhes.
219. Lembro-me dum refrão que dizia que a água estagnada
corrompe-se, estraga-se. O mesmo acontece com a vida do amor nos primeiros anos
do matrimónio quando fica estagnada, cessa de mover-se, perde aquela inquietude
sadia que a faz avançar. A dança conduzida com aquele mor jovem, a dança com
aqueles olhos iluminados pela esperança, não deve parar. No noivado e nos
primeiros anos de matrimónio, é a esperança que tem em si a força do fermento,
que faz olhar para além das contradições, conflitos, contingências, que sempre
faz ver mais além; é ela que põe em movimento a ânsia de se manter num caminho de
crescimento. A mesma esperança convida-nos a viver em cheio o presente,
colocando o coração na vida familiar, porque a melhor forma de preparar e
consolidar o futuro é viver bem o presente.
220. O caminho implica passar por diferentes etapas, que
convidam a doar-se com generosidade: do impacto inicial caracterizado por uma atracção
decididamente sensível, passa-se à necessidade do outro sentido como parte da
vida própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença mútua, seguido pela
compreensão da vida inteira como um projecto de ambos, pela capacidade de colocar
a felicidade do outro acima das necessidades próprias, e pela alegria de ver o
próprio matrimónio como um bem para a sociedade. O amadurecimento do amor
implica também aprender a « negociar ». Não se trata duma atitude interesseira
nem dum jogo de tipo comercial, mas, em última análise, dum exercício do amor recíproco,
já que esta negociação é um entrelaçado de recíprocas ofertas e renúncias para
o bem da família. Em cada nova etapa da vida matrimonial, é preciso sentar-se e
negociar novamente os acordos, de modo que não haja vencedores nem vencidos,
mas ganhem ambos. No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos compartilham
a responsabilidade pela família; mas cada lar é único e cada síntese conjugal é
diferente.
221. Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais é ter
expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando se descobre a
realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é
pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir o matrimónio como
um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de
Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o
desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio
é uma « história de salvação », o que supõe partir duma fragilidade que, graças
ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando
lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior missão
dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem
e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria
identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se lê a passagem da Bíblia
sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se Deus que plasma o homem
(cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de que falta alguma coisa
essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do homem: « Ah! Agora sim!
Esta sim! » E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele estupendo diálogo no
qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com efeito, mesmo nos
momentos difíceis, o outro volta a surpreender e abrem-se novas portas para se
reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova etapa, tornam a «
plasmar-se » um ao outro. O amor faz com que um espere pelo outro, exercitando aquela
paciência própria de artesão, que herdou de Deus.
222. O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem
generosos na comunicação da vida. « De acordo com o carácter pessoal e
humanamente completo do amor conjugal, o justo caminho para o planeamento
familiar pressupõe um diálogo consensual entre os esposos, o respeito dos
tempos e a consideração da dignidade de ambos os membros do casal. Neste
sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf. nn. 10-14)
e a Exortação apostólica Familiaris consortio (cf. nn.
14; 28-35) para se reavivar a disponibilidade a procriar, contrastando uma
mentalidade frequentemente hostil à vida. (...) A opção da paternidade
responsável pressupõe a formação da consciência que é “o centro mais secreto e
o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir
na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto
mais
procurarem os esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os
seus mandamentos (cf. Rm 2, 15) e se fizerem
acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de
um arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de
comportamento no seu ambiente ».
Continua a ser válido o que ficou dito, com clareza, no Concílio Vaticano
II: os cônjuges, « de comum acordo e com esforço comum, formarão rectamente a
própria consciência, tendo em conta o seu bem
próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a
nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo,
finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal
e da própria Igreja. São os
próprios esposos que, em última instância, devem diante de
Deus tomar esta decisão ». Por outro lado,
« deve-se promover o uso dos métodos baseados nos “ritmos naturais da
fecundidade” (Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência também que “estes métodos respeitam o corpo dos
esposos, estimulam a ternura entre eles e favorecem a educação duma liberdade
autêntica” (Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo
sempre que os filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria para os pais e
para a Igreja. Através deles, o Senhor renova o mundo ».
Alguns recursos
223. Os Padres sinodais afirmaram que « os primeiros anos de
matrimónio são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges crescem na
consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a necessidade dum
acompanhamento
pastoral que continue depois da celebração do sacramento
(cf. Familiaris consortio, parte III). Nesta pastoral,
tem grande importância a presença de casais de esposos com experiência. A paróquia
é considerada como o lugar onde casais especializados podem colocar à
disposição dos casais mais jovens a sua ajuda, com o eventual apoio de
associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. Deve-se encorajar os
esposos para uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. É
preciso sublinhar a importância da espiritualidade familiar, da oração e da
participação na Eucaristia dominical, e animar os cônjuges a reunirem-se
regularmente para promoverem o crescimento da vida espiritual e
a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias,
práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, sobretudo no
aniversário de matrimónio, foram citadas como vitais para favorecer a
evangelização através da família ».
224. Este caminho é uma questão de tempo. O amor precisa de
tempo disponível e gratuito, colocando outras coisas em segundo lugar. Faz
falta tempo para dialogar, abraçar-se sem pressa, partilhar projectos,
escutar-se, olhar-se nos olhos, apreciar-se, fortalecer a relação. Umas vezes,
o problema é o ritmo frenético da sociedade, ou os horários impostos pelos
compromissos laborais.
Outras vezes, o problema é que o tempo transcorrido em
conjunto não tem qualidade; limitam-se a partilhar um espaço físico, mas sem
prestar atenção um ao outro. Os agentes pastorais e os grupos de famílias
deveriam ajudar os casais jovens ou frágeis a aprenderem a encontrar-se nestes
momentos, a parar um diante do outro, e inclusive a partilhar momentos de
silêncio que os obriguem a sentir a presença do cônjuge.
225. Os esposos que têm uma boa experiência de « treino »
nesta linha, podem oferecer os instrumentos práticos que lhes foram úteis: a
programação dos momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos de
recreação com os filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes, os
espaços de espiritualidade partilhada. Mas podem também ensinar recursos que
ajudam a encher de conteúdo e sentido tais momentos, para se aprender a
comunicar melhor. Isto é da máxima importância quando se apagou a novidade do
noivado. Com efeito, quando não se sabe que fazer com o tempo partilhado, um ou
outro dos cônjuges acabará por se refugiar na tecnologia, inventará outros
compromissos, buscará outros braços, ou escapará duma intimidade incómoda.
226. Aos casais jovens, deve-se animar também a criar os
seus próprios hábitos, que proporcionem
uma salutar sensação de estabilidade e protecção e que se
constroem com uma série de rituais diários compartilhados. É bom dar-se sempre
um beijo pela manhã, benzer-se todas as noites, esperar pelo outro e recebê-lo
à chegada, ter alguma saída juntos, compartilhar as tarefas domésticas. Ao
mesmo tempo, porém, é bom
vencer a rotina com a festa, não perder a capacidade de
celebrar em família, alegrar-se e festejar as experiências belas. Precisam de
compartilhar a surpresa pelos dons de Deus e alimentar, juntos, o entusiasmo
pela vida. Quando se sabe celebrar, esta capacidade renova a energia do amor,
liberta-o da monotonia e enche de cor e esperança os hábitos diários.
227. Nós, pastores, devemos animar as famílias a crescerem
na fé. Para isso, é bom incentivar a confissão frequente, a direcção
espiritual, a participação em retiros. Mas há que convidar também a criar
espaços semanais de oração familiar, porque « a família que reza unida
permanece unida ». Entretanto, quando visitamos os lares, devemos convidar
todos os membros da família para um momento de oração, a fim de rezar uns pelos
outros e entregar a família nas mãos do Senhor. Ao mesmo tempo, convém
incentivar cada um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós diante de
Deus, porque cada qual tem as suas cruzes secretas. Por que não contar a Deus o
que turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias feridas e pedir
as luzes necessárias para poder cumprir o próprio compromisso? Os Padres
sinodais salientaram também que « a Palavra
de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família.
Toda a pastoral familiar deverá deixar-se moldar interiormente e formar os
membros da igreja doméstica, através da leitura orante e eclesial da Sagrada
Escritura. A Palavra de Deus é não só uma boa nova para a vida privada das pessoas,
mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos vários
desafios que têm de enfrentar os cônjuges e as famílias ».
228. Pode acontecer que um dos cônjuges não seja baptizado
ou não queira viver os compromissos da fé. Neste caso, o desejo que o outro tem
de viver e crescer como cristão faz com que a indiferença do cônjuge seja
vivida com amargura.
Apesar disso, é possível encontrar alguns valores comuns que
se podem partilhar e cultivar com entusiasmo. Seja como for, amar o cônjuge não
crente, fazê-lo feliz, aliviar os seus sofrimentos e partilhar a vida com ele é
um verdadeiro caminho de santificação. Por outro lado, o amor é um dom de Deus
e, onde se derrama, faz sentir a sua força transformadora, por vezes de maneira
misteriosa, a ponto que « o marido não crente é santificado pela mulher, e a
mulher não crente é santificada pelo marido » (1 Cor 7,
14).
229. As paróquias, os movimentos, as escolas e outras
instituições da Igreja podem desenvolver várias mediações para apoiar e
reavivar as famílias. Por exemplo, através de recursos como reuniões de casais
vizinhos ou amigos, breves retiros para casais, conferências de especialistas
sobre problemáticas muito concretas da vida familiar, centros de aconselhamento
conjugal, agentes missionários preparados para falar com os casais acerca das
suas dificuldades e aspirações, consultas sobre diferentes situações familiares
(dependências, infidelidade, violência familiar), espaços de espiritualidade,
escolas de formação para pais com filhos problemáticos, assembleias familiares.
A secretaria paroquial deveria ter possibilidades de receber com cordialidade e
ocupar-se das urgências
familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa dar
ajuda. Há também um apoio pastoral que se verifica nos grupos de casais, sejam eles
de serviço ou de missão, de oração, de formação ou de mútua ajuda. Estes grupos
proporcionam a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos outros, de
partilhar a fé, mas ao mesmo tempo são um meio para fortalecer os cônjuges e
fazê-los crescer.
230. É verdade que muitos casais de esposos desaparecem da
comunidade cristã depois do matrimónio, mas com frequência desperdiçamos algumas
ocasiões em que eles voltam a estar presentes e nas quais poderíamos tornar a
propor-lhes, de forma atraente, o ideal do matrimónio cristão e aproximá-los a
espaços de acompanhamento. Refiro-me, por exemplo, ao baptismo dum filho, à
Primeira Comunhão, ou quando participam num funeral ou no casamento dum parente
ou amigo. Quase todos os casais voltam a aparecer nestas ocasiões, que se
poderiam aproveitar melhor. Outro caminho de abordagem é a bênção das casas ou
a visita duma imagem da Virgem, que dão oportunidade para desenvolver um
diálogo pastoral sobre a situação da família. Pode ser útil também confiar a
casais mais maduros a tarefa de acompanhar casais mais recentes da sua própria
vizinhança, a fim de os visitar, acompanhar nos seus inícios e propor-lhes um percurso
de crescimento. Com o ritmo da vida actual, a maioria dos casais não estará
disposta
a reuniões frequentes, mas não podemos reduzir-nos a uma
pastoral de pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente
missionária, em saída, por aproximação, em vez de se reduzir a ser uma fábrica
de cursos a que poucos assistem.
Iluminar crises, angústias e dificuldades
231. Deixo aqui uma palavra àqueles que, no amor, já
envelheceram o vinho novo do noivado. Quando o vinho envelhece com esta
experiência do caminho, então aparece, floresce em toda a sua plenitude a
fidelidade dos momentos insignificantes da vida. É a fidelidade da espera e da paciência.
Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de certo modo vai florescendo
na idade em que tudo fica « sazonado » e os olhos brilham com a contemplação
dos filhos de seus filhos.
Foi assim desde o início, mas agora tornou-se consciente,
assente, amadurecido na surpresa quotidiana da redescoberta dia após dia, ano após
ano. Como ensinava São João da Cruz, « os velhos amantes são os já treinados e
testados ».
Eles « já não têm aqueles fervores sensíveis nem aquelas
ebulições e chamas externas de ardor, mas saboreiam a suavidade do vinho de
amor bem sedimentado na sua substância (...) assente dentro da alma ». Isto supõe que foram capazes de superar,
juntos, as crises e os momentos de angústia, sem fugir aos desafios nem
esconder as dificuldades.
O desafio das crises
232. A história duma família está marcada por crises de todo
o género, que são parte também da sua dramática beleza. É preciso ajudar a
descobrir que uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a
melhorar, sedimentar e
maturar o vinho da união. Não se vive juntos para ser cada
vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das
possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem,
que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um
novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de modo
algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma
mediocridade que se tem de suportar. Pelo contrário, quando se assume o
matrimónio como uma tarefa que implica também superar obstáculos, cada crise é
sentida como uma ocasião para
chegar a beber, juntos, o vinho melhor. É bom acompanhar os
cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as crises que lhes sobrevêm,
aceitar o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida familiar. Os casais experientes
e formados devem estar dispostos a acompanhar outros nesta descoberta, para que
as crises não os assustem nem os levem a tomar decisões precipitadas. Cada
crise esconde
uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os
ouvidos do coração.
233. Perante o desafio duma crise, a reacção imediata é
resistir, pôr-se à defesa por sentir que escapa ao próprio controle, por
mostrar a insuficiência da própria maneira de viver, e isto incomoda. Então
usa-se o método de negar os problemas, escondê-los, relativizar a sua importância,
apostar apenas em que o tempo passe.
Mas isto adia a solução e leva a gastar muitas energias num
ocultamento inútil que complicará ainda mais as coisas. Os vínculos vão-se
deteriorando e consolida-se um isolamento que danifica a intimidade. Numa crise
não assumida, o que mais se prejudica é a comunicação. Assim, pouco a pouco,
aquela que era « a pessoa que amo » passa a ser « quem me acompanha sempre na
vida », a seguir apenas « o pai ou a mãe dos meus filhos », e por fim um estranho.
234. Para se enfrentar uma crise, é necessário estar
presente. É difícil, porque às vezes as pessoas isolam-se para não mostrar o
que sentem, trancam-se num silêncio mesquinho e enganador. Nestes momentos, é
necessário criar espaços para comunicar de coração a coração. O problema é que
se torna ainda mais difícil comunicar num momento de crise, se nunca se
aprendeu a fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em tempos calmos, para
se pôr em prática nos tempos borrascosos. É preciso ajudar a descobrir as causas
mais recônditas nos corações dos esposos e enfrentá-las como um parto que
passará e deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às consultações
realizadas, assinalava-se que, em situações difíceis ou críticas, a maioria não
recorre ao acompanhamento pastoral, porque não o sente compreensivo, próximo,
realista, encarnado. Por isso, procuremos agora debruçar-nos sobre as crises
conjugais com um olhar que não ignore a sua carga de sofrimento e angústia.
235. Há crises comuns que costumam verificar-se em todos os
matrimónios, como a crise ao início quando é preciso aprender a conciliar as
diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do filho, com os
seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que altera os
hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas energias,
desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise do « ninho
vazio », que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise
causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença,
solicitude e decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam temores,
sentimentos de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar gravemente a
união.
236. A estas crises, vêm juntar-se as crises pessoais com incidência
no casal, relacionadas com dificuldades económicas, laborais, afectivas,
sociais, espirituais. E acrescentam-se circunstâncias inesperadas, que podem
alterar a vida familiar e
exigir um caminho de perdão e reconciliação. No próprio
momento em que procura dar o passo do perdão, cada um deve questionar-se, com
serena humildade, se não criou as condições para expor o outro a cometer certos
erros. Algumas famílias sucumbem, quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas
« a experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a acção de reconciliação
da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma
satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental
na vida familiar ». « A fadigosa arte da
reconciliação, que requer o apoio da graça, precisa da generosa colaboração de
parentes e amigos, e, eventualmente, até duma ajuda externa e profissional ».
237. Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que
não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente
para pôr termo ao matrimónio. Mas, assim, não haverá matrimónio que dure. Às
vezes, para decidir que tudo acabou, basta uma desilusão, a ausência num
momento em que se precisava do outro, um orgulho ferido ou um temor indefinido.
Há situações próprias da inevitável fragilidade humana, a que se atribui um
peso emotivo demasiado grande. Por exemplo, a sensação de não ser completamente
correspondido, os ciúmes, as diferenças que podem surgir entre os dois, a
atracção suscitada por outras pessoas, os novos interesses que tendem a
apoderar-se do coração, as mudanças físicas do cônjuge e tantas outras coisas
que, mais do que atentados contra o amor, são oportunidades que convidam a
recriá-lo uma vez mais.
238. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade necessária
para voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para além dos limites
da relação, e aceitam com realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos
acalentados. Evitam considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou
limitadas possibilidades que lhes oferece a vida em família e apostam em
fortalecer o vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo,
reconhecem
que cada crise é como um novo « sim » que torna possível o
amor renascer reforçado, transfigurado, amadurecido, iluminado. A partir duma
crise, tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de
voltar a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de
percorrer juntos uma nova etapa. Com esta atitude de constante abertura,
podem-se enfrentar muitas situações difíceis. Em todo o caso, reconhecendo que
a reconciliação é possível, hoje descobrimos que « se revela particularmente urgente
um ministério dedicado àqueles cuja relação matrimonial se rompeu ».
Velhas feridas
239. É compreensível que, nas famílias, haja muitas
dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de
relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. A própria
infância e a própria adolescência mal vividas são terreno fértil para crises pessoais
que acabam por afectar o matrimónio. Se todos fossem pessoas que amadureceram
normalmente, as crises seriam menos frequentes e menos dolorosas. A verdade,
porém, é que às vezes
as pessoas precisam de realizar aos quarenta anos um
amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência.
Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa
onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à
volta do próprio eu. É um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém
aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da
adolescência, caracterizado pelo
confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a
lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos
vazios ou apoiar os nossos caprichos.
240. Muitos terminam a sua infância sem nunca se terem
sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de
confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que
nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer
um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os
cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém
assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria
história. Isto exige que se reconheça a necessidade de ser curado, que se peça
com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se procurem
motivações positivas e se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito sincero
consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas
imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do
outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É
preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia
pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das
rupturas e dos divórcios
241. Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do
bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma
grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crónica.
É preciso reconhecer
que « há casos em que a separação é inevitável. Por vezes,
pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge
mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela
prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a
indiferença ». Mas « deve ser considerado um
remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas
razoáveis ».
242. Os Padres disseram que « é indispensável um
discernimento particular para acompanhar pastoralmente os separados, os
divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia
daqueles que sofreram injustamente
a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram
obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o perdão
pela injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível.
Daí a necessidade
duma pastoral da reconciliação e da mediação, inclusive
através de centros de escuta especializados que se devem estabelecer nas
dioceses ». Ao mesmo tempo, « as pessoas
divorciadas que não voltaram a casar (que são muitas vezes testemunhas da
fidelidade matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o
alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os pastores devem
acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando
há filhos ou é grave a sua situação de pobreza ». Um
falimento matrimonial torna-se muito mais traumático e doloroso quando há
pobreza, porque se têm muito menos recursos para reordenar a existência. Uma
pessoa pobre, que perde o ambiente protector da família, fica duplamente exposta
ao abandono e a todo o tipo de riscos para a sua integridade.
243. Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova
união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que « não
estão excomungadas » nem são tratadas como tais, porque sempre integram a
comunhão eclesial. Estas situações «
exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito,
evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e
promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para
a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu
testemunho sobre a indissolubilidade do matrimónio; antes, ela exprime
precisamente neste cuidado a sua caridade ».
244. Além disso, um grande número de Padres « sublinhou a necessidade de tornar mais
acessíveis, ágeis e possivelmente gratuitos de todo os procedimentos para o
reconhecimento dos casos de nulidade ». A
lentidão dos processos irrita
e cansa as pessoas. Os meus dois documentos recentes sobre
tal matéria levaram a uma simplificação dos
procedimentos para uma eventual declaração de nulidade matrimonial. Através
deles, quis também « evidenciar que o próprio bispo na sua Igreja, da qual está
constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a ele
confiados ». Por isso, « a aplicação
destes documentos é uma grande responsabilidade para os Ordinários diocesanos,
chamados eles próprios a julgar algumas causas e a garantir, de todos os modos
possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação
de pessoal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se dedique de modo
prioritário a este serviço eclesial. Por conseguinte, será necessário colocar à
disposição das pessoas separadas ou dos casais em crise um serviço de
informação, aconselhamento e mediação, ligado à pastoral familiar, que possa
também acolher as pessoas tendo em vista a investigação preliminar do processo
matrimonial (cf. Mitis Iudex, arts. 2-3) ».
245. Os Padres sinodais puseram em evidência também « as
consequências da separação ou do divórcio sobre os filhos, em todo o caso
vítimas inocentes da situação ». Acima de
todas as considerações que se queiram fazer, eles são a primeira preocupação,
que não deve ser ofuscada por nenhum outro interesse ou objectivo. Peço aos
pais separados: « Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém!
Separastes-vos devido a muitas dificuldades e motivos, a vida deu-vos esta
provação, mas os filhos não devem carregar o fardo desta separação; que eles
não sejam usados como reféns contra o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe
falar bem do pai, embora já não estejam juntos, e o pai falar bem da mãe ». É irresponsável arruinar a imagem do pai ou da
mãe com o objectivo de monopolizar o afecto do filho, para se vingar ou
defender, porque isso afectará a vida interior daquela criança e provocará
feridas difíceis de curar.
246. A Igreja, embora compreenda as situações conflituosas
que devem atravessar os cônjuges, não pode cessar de ser a voz dos mais
frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, « não obstante a
nossa sensibilidade aparentemente evoluída e todas as nossas análises psicológicas
refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também relativamente às feridas
da alma das crianças. (...) Sentimos nós o peso da montanha
que esmaga a alma duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa, até
quebrar o vínculo da fidelidade conjugal? » Tais
experiências molestas não ajudam estas crianças
a amadurecer para serem capazes de compromissos definitivos.
Por isso, as comunidades cristãs não devem deixar sozinhos os pais divorciados que
vivem numa nova união. Pelo contrário, devem integrá-los e acompanhá-los na sua
função educativa. Aliás, « como poderíamos recomendar a estes pais que façam
todo o possível por educar os seus filhos na vida cristã, dando-lhes o exemplo
duma fé convicta e praticada, se os mantivéssemos à
distância da vida da comunidade, como se estivessem excomungados? Devemos
proceder de modo que não se acrescentem outros pesos àqueles que os filhos,
nestas situações, já
têm que suportar ». Ajudar
a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os
filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta
experiência traumática. O divórcio é um mal, e é muito
preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem
dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é
reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço
deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
247. « As questões relacionadas com os matrimónios mistos
requerem uma atenção específica. Os matrimónios entre católicos e outros baptizados
“apresentam, na sua fisionomia particular, numerosos elementos que convém
valorizar e desenvolver quer pelo seu valor intrínseco quer pela ajuda que
podem dar ao movimento ecuménico”. Com tal finalidade, “procure-se (…) uma colaboração cordial entre o ministro católico
e o não católico, desde o momento da
preparação para o matrimónio e para as núpcias” (Familiaris
consortio, 78). Quanto à participação eucarística, recorda-se que “a
decisão de admitir ou não a parte não católica do matrimónio à comunhão eucarística
deve ser tomada de acordo com
as normas gerais em vigor na matéria, tanto para os cristãos
orientais como para os outros cristãos, e tendo em conta esta situação
particular, isto é, que recebem o sacramento do matrimónio cristão dois
cristãos baptizados. Embora os esposos de um matrimónio misto tenham em comum
os sacramentos do baptismo e do matrimónio, a partilha da Eucaristia pode
apenas ser excepcional e, em todo o caso, devem-se observar as disposições
indicadas” (Pont. Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório
para a Aplicação dos Princípios e das Normas sobre o Ecumenismo, 25
de Março de 1993, 159-160) ».
248. « Os matrimónios com disparidade de culto constituem um
lugar privilegiado de diálogo inter-religioso (...). Comportam algumas
dificuldades especiais quer em relação à identidade cristã da família quer
quanto à educação religiosa dos filhos. (...) O número das famílias compostas por
uniões conjugais com disparidade de culto, em aumento nos territórios de missão
e também nos países de longa tradição cristã, requer urgentemente uma atenção
pastoral diferenciada segundo os distintos contextos sociais e culturais. Nalguns
países, onde não há liberdade de religião, o cônjuge cristão é obrigado a mudar
de religião para se poder casar, e não pode celebrar o matrimónio canónico com
disparidade de culto nem baptizar os filhos. Devemos, pois, reafirmar a
necessidade de que a liberdade religiosa seja
respeitada em favor de todos ».
« É necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em
tais matrimónios, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios
peculiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o
outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem
o Evangelho de mergulhar nestas situações
para tornar possível a educação dos filhos na fé cristã ».
249. « Apresentam dificuldades particulares as situações que
dizem respeito ao acesso ao baptismo de pessoas que estão numa condição matrimonial
complexa. Trata-se de pessoas que contraíram uma união matrimonial estável, num
tempo em que pelo menos uma delas ainda não conhecia a fé cristã. Os bispos são
chamados a exercitar, nestes casos, um discernimento pastoral cônsono ao bem
espiritual delas ».
250. A Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor
Jesus que, num amor sem fronteiras, Se ofereceu por todas as pessoas sem excepção.
Com
os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de
ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem
para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar
que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser
respeitada na
sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar «
qualquer sinal de discriminação injusta » e
particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez,
deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para
que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor
dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus
na sua vida.
251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da
família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projectos de equiparação ao
matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento
algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as
uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «
inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os
organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução
de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo ».
252. As famílias monoparentais têm frequentemente origem a
partir de « mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na vida familiar,
situações de violência em que um dos progenitores teve de fugir com seus
filhos, morte
de um dos pais, abandono da família por um dos progenitores
e outras situações. Seja qual for a causa, o progenitor que vive com a criança
deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade
cristã, bem como nos
organismos pastorais paroquiais. Além disso, estas famílias
são muitas vezes afligidas pela gravidade dos problemas económicos, pela
incerteza dum trabalho precário, pela dificuldade de manter os filhos, pela
falta duma casa ».
Quando a morte crava o seu aguilhão
253. Às vezes, a vida familiar vê-se desafiada pela morte de
um ente querido. Não podemos deixar de oferecer a luz da fé para acompanhar as
famílias que sofrem em tais momentos. Abandonar uma família atribulada por uma
morte seria uma falta de misericórdia, seria perder uma oportunidade pastoral,
e tal atitude pode fechar-nos as portas para qualquer eventual acção evangelizadora.
254. Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito
amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se
comoveu e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11,33.35). E como não
compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, « é como se o tempo
parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o futuro. (...) E às
vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas – compreendo-as – se
chateiam com Deus ». « A viuvez é uma experiência particularmente difícil
(...). Alguns, quando têm de viver esta experiência, mostram
que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda maior aos
filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão
educativa. (...) Aqueles
que já não podem contar com a presença de familiares a quem
se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los
com particular atenção e disponibilidade, sobretudo se vivem em condições de
indigência ».
255. Em geral, o luto pelos falecidos pode durar bastante
tempo e, quando um pastor quer acompanhar este percurso, deve adaptar-se às necessidades
de cada uma das suas fases. Todo o percurso é atravessado por interrogativos
sobre
as causas da morte, o que poderia ter sido feito, o que uma
pessoa vive nos momentos anteriores à morte... Com um caminho sincero e
paciente de oração e libertação interior, volta a paz. No luto, há momentos em
que é preciso ajudar a descobrir que, embora tenhamos perdido um ente querido,
existe ainda uma missão a cumprir e não nos faz bem querer prolongar a
tristeza, como se isto fosse uma homenagem. A pessoa amada não precisa da nossa
tristeza, nem retém lisonjeiro que arruinemos a nossa vida. E também não é a melhor
expressão de amor lembrá-la e nomeá-la a cada momento, porque significa estar
preso a
um passado que já não existe, em vez de amar a pessoa real
que agora se encontra no Além. A sua presença física já não é possível; é
verdade que
a morte é algo de poderoso, mas « forte como a morte é o
amor » (Ct 8, 6). O amor possui uma intuição que lhe
permite escutar sem sons e ver no invisível. Isto não é imaginar o ente querido
como era, mas poder aceitá-lo transformado,
como é agora. Jesus ressuscitado, quando a sua amiga Maria
Madalena quis abraçá-Lo intensamente, pediu-lhe que não O tocasse (cf. Jo
20,17) para a levar a um encontro diferente.
256. Consola-nos saber que não se verifica a destruição
total dos que morrem, e a fé assegura -nos que o Ressuscitado nunca nos
abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte « envenene a nossa vida, torne
vãos os nossos afectos e nos
faça cair no vazio mais escuro ». A Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma
maneira tal que a nossa vida não termina com a morte (cf. Sab
3, 2-3). São Paulo fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois
da morte: « tenho o desejo de partir e estar com Cristo » (Flp
1, 23). Com Ele, espera-nos depois da morte aquilo que Deus preparou
para aqueles que O amam (cf. 1 Cor 2, 9). De forma muito bela,
assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: « Se a certeza da morte nos
entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para
os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se
transforma ». Com efeito, « os nossos entes queridos não desapareceram nas
trevas do nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e
vigorosas de Deus ».
257. Uma maneira de comunicarmos com os seres queridos que
morreram é rezar por eles. Diz a Bíblia que « rezar pelos mortos » é « santo e piedoso
» (2 Mac 12, 44.45). Rezar por eles « pode não só
ajudá-los, mas também tornar mais eficaz
a sua intercessão em nosso favor ». O Apocalipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem
injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns
Santos, antes de morrer, consolavam os seus entes queridos, prometendo-lhes que
estariam perto ajudando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de
continuar, do Céu, a fazer bem. E São
Domingos
afirmava que « seria mais útil, depois de morto (...), mais
poderoso para obter graças ». São laços de amor, porque
« de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com
os irmãos que adormeceram na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela
comunicação dos bens espirituais ».
258. Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos para ela. O
caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham connosco, até ao dia em
que « não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor » (Ap
21, 4). Deste modo
preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes
queridos que morreram. Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à sua
mãe (cf. Lc 7, 15), de forma semelhante procederá connosco.
Não gastemos energias, detendo-nos anos e anos no passado. Quanto melhor vivermos
nesta terra, tanto maior felicidade poderemos partilhar com os nossos entes
queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer, tanto mais
poderemos levar-lhes coisas
belas para o banquete celeste.
CAPÍTULO VII
REFORÇAR A EDUCAÇÃO DOS FILHOS
259. Os pais incidem sempre, para bem ou para mal, no desenvolvimento
moral dos seus filhos. Consequentemente, o melhor é aceitarem esta
responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente, entusiasta,
razoável e apropriado.
Uma vez que esta função educativa das famílias é tão
importante e se tornou muito complexa, quero deter-me de modo especial neste ponto.
Onde estão os filhos?
260. A família não pode renunciar a ser lugar de apoio,
acompanhamento, guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar
novos recursos. Precisa de considerar a que realidade quer expor os seus
filhos. Para isso não deve deixar de se interrogar sobre quem se ocupa de lhes
oferecer diversão e entretenimento, quem entra nas suas casas através dos
écrans, a quem os entrega para que os guie nos seus tempos livres. Só os momentos
que passamos com eles, falando com simplicidade e carinho das coisas
importantes, e as possibilidades sadias que criamos para ocuparem o seu tempo
permitirão evitar uma nociva invasão. Sempre faz falta vigilância; o abandono nunca
é sadio. Os pais devem orientar e alertar as
crianças e os adolescentes para saberem enfrentar situações
onde possa haver risco, por exemplo, de agressões, abuso ou consumo de droga.
261. A obsessão, porém, não é educativa; e também não é
possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a
encontrar-se. Vale aqui o princípio de que « o tempo é superior ao espaço », isto é, trata-se mais de gerar processos que de
dominar espaços. Se um progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho
e controlar todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço.
Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não
o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima
de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua
liberdade,
de preparação, de crescimento integral, de cultivo da
autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si mesmo os elementos de que
precisa para saber defender-se e agir com inteligência e cautela em
circunstâncias difíceis. Assim,
a grande questão não é onde está fisicamente o filho, com
quem está neste momento, mas onde se encontra em sentido existencial, onde está
posicionado
do ponto de vista das suas convicções, dos seus objectivos,
dos seus desejos, do seu projecto de vida. Por isso, eis as perguntas que faço aos
pais: « Procuramos compreender “onde” os filhos verdadeiramente estão no seu
caminho?
Sabemos onde está realmente a sua alma? E, sobretudo, queremos
sabê-lo? »
262. Se a maturidade fosse apenas o desenvolvimento de algo
já contido no código genético, quase nada poderíamos fazer. Mas não é! A
prudência, o recto juízo e a sensatez não dependem de factores puramente
quantitativos de crescimento, mas de
toda uma cadeia de elementos que se sintetizam no íntimo da pessoa; mais exactamente,
no centro da sua liberdade. É inevitável que cada filho nos surpreenda com os projectos
que brotam desta liberdade, que rompa
os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação
envolve a tarefa de promover liberdades responsáveis, que, nas encruzilhadas,
saibam optar com sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas
que a sua vida e
a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta
liberdade é um dom imenso.
A formação ética dos filhos
263. Os pais necessitam também da escola para assegurar uma
instrução de base aos seus filhos, mas a formação moral deles nunca a podem
delegar totalmente. O desenvolvimento afectivo e ético duma pessoa requer uma
experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança.
Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o testemunho,
gerar confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito amoroso. Quando um filho
deixa de sentir que
é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de
notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto cria feridas profundas
que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento. Esta ausência, este
abandono afectivo provoca um sofrimento mais profundo do que a eventual correcção
recebida por uma má acção.
264. A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um
desenvolvimento de hábitos bons e tendências afectivas para o bem. Isto implica
que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e as tendências
a fazer maturar.
Mas trata-se sempre de um processo que vai da imperfeição
para uma plenitude maior. O desejo de se adaptar à sociedade ou o hábito de renunciar
a uma satisfação imediata para se adequar a uma norma e garantir uma boa
convivência
já é, em si mesmo, um valor inicial que cria disposições para
se elevar depois rumo a valores mais altos. A formação moral deveria
realizar-se sempre com métodos activos e com um diálogo educativo que integre a
sensibilidade e a linguagem
própria dos filhos. Além disso, esta formação deve ser
realizada de forma indutiva, de modo que o filho possa chegar a descobrir por
si mesmo a importância de determinados valores, princípios e normas, em vez de
lhos impor como verdades indiscutíveis.
265. Para agir bem, não basta « julgar de modo adequado » ou
saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Com efeito,
muitas vezes somos incoerentes com as nossas próprias convicções, mesmo quando são
sólidas. Há ocasiões em que, por mais que a consciência nos dite determinado
juízo moral,
têm mais poder outras coisas que nos atraem; isto acontece,
se não conseguirmos que o bem individuado pela mente se radique em nós como uma
profunda inclinação afectiva, como um gosto pelo bem que pese mais do que
outros atractivos e nos faça perceber que aquilo que individuamos como bem é
tal também « para nós » aqui e agora. Uma formação ética válida implica mostrar
à
pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas
vezes, hoje, é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar
claramente o bem que se poderia alcançar com isso.
266. É necessário maturar hábitos. Os próprios hábitos
adquiridos em criança têm uma função positiva, ajudando a traduzir em
comportamentos externos sadios e estáveis os grandes valores interiorizados.
Uma pessoa pode possuir sentimentos
sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se
não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer «
por favor », « com licença », « obrigado », a tal boa disposição interior não
se traduzirá facilmente nestas expressões. O fortalecimento da vontade e a repetição
de determinadas acções constroem a conduta moral; mas, sem a repetição
consciente, livre e elogiada de determinados comportamentos bons, nunca se
chega a educar tal conduta. As motivações ou a atracção que sentimos por um determinado
valor, não se tornam uma virtude sem estes actos adequadamente motivados.
267. A liberdade é algo de grandioso, mas podemos perdê-la.
A educação moral é cultivar a liberdade através de propostas, motivações,
aplicações práticas, estímulos, prémios, exemplos, modelos, símbolos,
reflexões, exortações, revisões
do modo de agir e diálogos que ajudem as pessoas a
desenvolver aqueles princípios interiores estáveis que movem a praticar
espontaneamente o bem. A virtude é uma convicção que se transformou num
princípio interior e estável
do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a liberdade, fortifica-a
e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de inclinações compulsivas
desumanizadoras
e anti-sociais. Com efeito, a própria dignidade humana exige
que cada um « proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou
seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro ».
O valor da sanção como estímulo
268. De igual modo, é indispensável sensibilizar a criança e
o adolescente para se darem conta de que as más acções têm consequências. É preciso
despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir pesar pelo seu
sofrimento
originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções – aos
comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente cumprir esta
finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que peça perdão
e repare o mal causado aos outros. Quando o percurso educativo mostra os seus
frutos num amadurecimento da liberdade pessoal, a dado momento o próprio filho
começará a reconhecer, com gratidão, que foi bom para ele crescer numa família
e também suportar as exigências impostas por todo o processo formativo.
269. A correcção é um estímulo quando, ao mesmo tempo, se
apreciam e reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os seus pais
conservam viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor sente-se
tida em consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus pais
reconhecem as suas potencialidades. Isto não exige que os pais sejam irrepreensíveis,
mas que saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e mostrem o seu
esforço
pessoal por ser melhores. Mas um testemunho de que os filhos
precisam da parte dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O filho, que
comete uma má acção, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo ou como
alguém sobre quem se descarrega a própria agressividade. Além disso, um adulto
deve reconhecer que algumas más acções têm a ver com as fragilidades e os
limites próprios da idade. Por isso, seria nociva uma atitude constantemente
punitiva,
porque não ajudaria a notar a diferente gravidade das acções
e provocaria desânimo e exasperação: « Vós, pais, não exaspereis os vossos
filhos » (Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).
270. Condição fundamental é que a disciplina não se
transforme numa mutilação do desejo, mas se torne um estímulo para ir sempre
mais além. Como integrar disciplina e dinamismo interior? Como fazer para que a
disciplina seja limite
construtivo do caminho que uma criança deve empreender e não
um muro que a aniquile ou uma dimensão da educação que a iniba? É preciso saber
encontrar um equilíbrio entre dois extremos igualmente nocivos: um seria
pretender construir um mundo à medida dos desejos do filho, que cresceria
sentindo-se sujeito de direitos
mas não de responsabilidades; o outro extremo seria levá-lo a viver sem
consciência da sua dignidade, da sua identidade singular e dos seus direitos,
torturado pelos deveres e submetido à realização dos desejos alheios.
Realismo paciente
271. A educação moral implica pedir a uma criança ou a um
jovem apenas aquelas coisas que não representem, para eles, um sacrifício
desproporcionado, exigir-lhes apenas aquela dose de esforço que não provoque
ressentimento ou acções puramente forçadas. O percurso normal é propor pequenos
passos que possam ser compreendidos, aceites e apreciados, e impliquem uma
renúncia proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém. A
pessoa, logo que puder livrar-se da autoridade, provavelmente deixará de praticar
o bem.
272. Por vezes, a formação ética provoca desprezo devido a
experiências de abandono, desilusão, carência afectiva, ou a uma má imagem dos pais.
Projectam-se sobre os valores éticos as imagens distorcidas das figuras do pai
e da mãe ou as fraquezas dos adultos. Por isso, é preciso ajudar os
adolescentes a porem em prática a analogia: os valores são cumpridos
perfeitamente por algumas pessoas muito exemplares, mas também se realizam de
forma imperfeita e em diferentes
graus. E uma vez que as resistências dos jovens estão muito
ligadas a experiências negativas, é preciso ao mesmo tempo ajudá-los a
percorrer um itinerário de cura deste mundo interior ferido, para poderem ter
acesso à compreensão e à
reconciliação com as pessoas e com a sociedade.
273. Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a
pouco, avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades
concretas das pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis.
A psicologia e as ciências da educação, com suas valiosas contribuições, mostram
que é necessário um processo gradual para se conseguir mudanças de
comportamento e também que a liberdade precisa de ser orientada e estimulada,
porque, abandonando-a a
si mesma, não se garante a sua maturação. A liberdade efectiva,
real, é limitada e condicionada. Não é uma pura capacidade de escolher o bem, com
total espontaneidade. Nem sempre se faz uma distinção adequada entre acto «
voluntário » e acto « livre ». Uma pessoa pode querer algo de mal com uma
grande força de vontade, mas por causa duma paixão irresistível ou duma
educação deficiente. Neste caso, a sua decisão é fortemente voluntária, não
contradiz a inclinação da sua vontade, mas não é livre, porque lhe resulta
quase impossível não escolher aquele mal. É o que acontece
com um dependente compulsivo da droga: quando a quer, fá-lo com todas as suas forças,
mas está tão condicionado que, na hora, não é capaz de tomar outra decisão.
Portanto, a
sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem sentido «
deixá-lo escolher livremente », porque, de facto, não pode escolher, e expô-lo
à droga só aumenta a dependência. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso
educativo.
A vida familiar como contexto educativo
274. A família é a primeira escola dos valores humanos, onde
se aprende o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam
o íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a
um valor ou como uma rejeição espontânea de certos comportamentos. Muitas
pessoas actuam a vida inteira duma determinada forma, porque consideram
válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância,
como que por osmose: « Fui ensinado assim »; « isto é o que me inculcaram ». No
âmbito familiar, pode-se aprender também a discernir, criticamente, as
mensagens dos vários meios de
comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns programas
televisivos ou algumas formas de publicidade incidem negativamente e
enfraquecem valores recebidos na vida familiar.
275. Na época actual, em que reina a ansiedade e a pressa
tecnológica, uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a capacidade
de esperar. Não se trata de proibir as crianças de jogarem com os dispositivos
electrónicos, mas de
encontrar a forma de gerar nelas a capacidade de diferenciarem
as diversas lógicas e não aplicarem a velocidade digital a todas as áreas da
vida. O adiamento não é negar o desejo, mas retardar a sua satisfação. Quando
as crianças ou os adolescentes não são educados para aceitar que algumas coisas
devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à satisfação das suas
necessidades
imediatas e crescem com o vício do « tudo e súbito ». Este é
um grande engano que não favorece a liberdade; antes, intoxica-a. Ao contrário,
quando se educa para aprender a adiar algumas coisas e esperar o momento
oportuno, ensina-
-se o que significa ser senhor de si mesmo, autónomo face
aos seus próprios impulsos. Assim, quando a criança experimenta que pode cuidar
de si mesma, enriquece a própria auto-estima. Ao mesmo tempo, isto ensina-lhe a
respeitar a liberdade dos outros. Naturalmente isto não significa pretender das
crianças que actuem como adultos, mas também não se deve subestimar a sua
capacidade
de crescer na maturação duma liberdade responsável. Numa
família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal através das exigências
da convivência.
276. A família é o âmbito da socialização primária, porque é
o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a escutar,
partilhar, suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa deve levar
a sentir o mundo e a sociedade
como « ambiente familiar »: é uma educação para saber «
habitar » mais além dos limites da própria casa. No contexto familiar,
ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o
primeiro círculo do egoísmo mortífero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto
de outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa gentileza, do
nosso afecto. Não
há vínculo social, sem esta primeira dimensão quotidiana,
quase microscópica: conviver na proximidade, cruzando-nos nos vários momentos do
dia, preocupando-nos com aquilo que interessa a todos, socorrendo-nos
mutuamente nas
pequenas coisas do dia-a-dia. A família tem de inventar,
todos os dias, novas formas de promover o reconhecimento mútuo.
277. No ambiente familiar, é possível também repensar os
hábitos de consumo, cuidando juntos da casa comum: « A família é a protagonista
de uma ecologia integral, porque constitui o sujeito social primário, que
contém no seu interior os
dois princípios-base da civilização humana sobre a terra: o
princípio da comunhão e o princípio da fecundidade ». De igual modo, podem ser muito educativos os momentos difíceis e
duros da vida familiar. É o que acontece, por exemplo, quando chega uma doença,
porque, « diante da doença, até em família surgem dificuldades, por causa da
debilidade humana. Mas, em geral, o tempo da enfermidade faz aumentar a força
dos vínculos familiares. (...) Uma educação que negligencie a sensibilidade
pela doença humana, torna árido o coração. E deixa os jovens “anestesiados” em
relação ao sofrimento do próximo, incapazes de se confrontar com o sofrimento e
de viver a experiência do limite ».
278. O encontro educativo entre pais e filhos pode ser
facilitado ou prejudicado pelas tecnologias de comunicação e distracção, cada
vez mais sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em contacto os
membros da família, que vivem longe. Os contactos podem ser frequentes e ajudar
a resolver dificuldades. Mas deve ficar claro
que não substituem nem preenchem a necessidade do diálogo mais pessoal e
profundo que requer o contacto físico ou, pelo menos, a
voz da outra pessoa. Sabemos que, às vezes, estes meios
afastam em vez de aproximar, como quando, na hora da refeição, cada um está
concentrado
no seu telemóvel ou quando um dos cônjuges adormece à espera
do outro que passa horas entretido com algum dispositivo electrónico. Na
família, também isto deve ser motivo de diálogo e de acordos que permitam dar
prioridade ao encontro dos seus membros sem cair em proibições insensatas. Em
todo o caso, não
se podem ignorar os riscos das novas formas de comunicação
para as crianças e os adolescentes, chegando às vezes a torná-los apáticos,
desligados do mundo real. Este « autismo tecnológico » expõe-nos mais
facilmente às manipulações daqueles que procuram entrar na sua intimidade com
interesses egoístas.
279. Mas também não é bom que os pais se tornem seres
omnipotentes para seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar neles, porque
assim impedem um processo adequado de socialização e amadurecimento afectivo.
Para tornar eficaz o prolongamento da paternidade e da maternidade para uma
realidade mais ampla, « as comunidades cristãs são chamadas a dar o seu apoio à
missão educativa das famílias », particularmente através da catequese de
iniciação.
Para favorecer uma educação integral, precisamos de «
reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã ». O Sínodo quis destacar a importância das
escolas católicas, que « realizam uma função vital de ajuda aos pais no seu
dever
de educar os filhos. (...) As escolas católicas deveriam ser
incentivadas na sua missão de ajudar os alunos a crescer como adultos maduros
que podem ver o mundo através do olhar de amor de Jesus e compreender a vida
como uma chamada para servir a Deus ». Para
isso « deve-se afirmar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria
doutrina e o direito à objecção de consciência
por parte dos educadores ».
Sim à educação sexual
280. O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de «
uma educação sexual positiva e prudente » oferecida às crianças e adolescentes
« à medida que vão crescendo » e « tendo em conta os progressos da psicologia,
pedagogia e didáctica ». Deveríamos
perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. É difícil
pensar na educação sexual num tempo em
que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade. Só se
poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua;
assim,
a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente empobrecida,
mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual num percurso de conhecimento
de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade de autodomínio, que podem
ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria e
encontro amoroso.
281. A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer
que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A informação
deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil
saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma
invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de
estímulos que podem mutilar a sexualidade. Os jovens devem poder dar-se conta de
que são bombardeados por mensagens que não procuram o seu bem e o seu
amadurecimento. Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as influências
positivas, ao mesmo tempo que se afastam de tudo o que desfigura a sua
capacidade de amar. De igual modo, devemos aceitar que « a necessidade duma
linguagem nova e mais adequada se apresenta especialmente no momento
de introduzir as crianças e os adolescentes no tema da
sexualidade ».
282. Tem um valor imenso uma educação sexual que cuide um
são pudor, embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos. É uma
defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser
transformada em mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o afecto e a
sexualidade a obsessões que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em
morbosidades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de
violência sexual que nos
levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os
outros.
283. Frequentemente a educação sexual concentra-se no
convite a « proteger-se », procurando um « sexo seguro ». Estas expressões
transmitem uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da
sexualidade, como se um
possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se.
Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento. É
irresponsável
qualquer convite aos adolescentes para que brinquem com os
seus corpos e desejos, como se tivessem a maturidade, os valores, o compromisso
mútuo e os objectivos próprios do matrimónio. Assim, são levianamente
encorajados
a utilizar a outra pessoa como objecto de experiências para
compensar carências e grandes limites. É importante, pelo contrário, ensinar um
percurso pelas diversas expressões do amor, o cuidado mútuo, a ternura
respeitosa, a comunicação
rica de sentido. Com efeito, tudo isto prepara para uma
doação íntegra e generosa de si mesmo que se expressará, depois dum compromisso
público, na entrega dos corpos. Assim a união sexual no matrimónio aparecerá
como sinal dum compromisso totalizante, enriquecido por todo o caminho anterior.
284. É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir
os planos: a atracção « cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor,
tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes ». A linguagem do corpo requer uma aprendizagem
paciente que permita interpretar e educar os próprios desejos em ordem a uma
entrega de verdade. Quando se pretende entregar tudo duma vez, é possível que
não se entregue nada. Uma coisa é compreender as
fragilidades da idade ou as suas confusões, outra é encorajar
os adolescentes a prolongarem a imaturidade da sua forma de amar. Mas, quem
fala hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os jovens a sério? Quem os ajuda
a preparar-se seriamente para um amor grande e generoso? Não se toma a sério a
educação sexual.
285. A educação sexual deveria incluir também o respeito e a
valorização da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de superar o confinamento
nos próprios limites para se abrir à aceitação do outro. Para além de
compreensíveis dificuldades que cada um possa viver, é preciso ajudar a aceitar
o seu corpo como foi criado, porque « uma lógica de domínio sobre o próprio corpo
transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. (...)
Também é
necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade
ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que
é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou
da outra, obra
de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente ». Só perdendo o medo à diferença é que uma pessoa
pode chegar a libertar-se da imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo.
A educação sexual deve ajudar a aceitar o próprio corpo,
de modo que a pessoa não pretenda « cancelar a diferença
sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela ».
286. Também não se pode ignorar que, na configuração do
próprio modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem apenas factores
biológicos ou genéticos, mas uma multiplicidade de elementos que têm a ver com
o temperamento,
a história familiar, a cultura, as experiências vividas, a
formação recebida, as influências de amigos, familiares e pessoas admiradas, e
outras circunstâncias
concretas que exigem um esforço de adaptação. É verdade que
não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus, que é
anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem elementos
biológicos
que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o
masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível,
por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira
flexível à condição
laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou
alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa
um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a
aceitar como normais
estes « intercâmbios » sadios que não tiram dignidade alguma
à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e
não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições
reais do matrimónio.
Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento
das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco masculino
dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa de
chefia.
Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas
ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o
autêntico
desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas
potencialidades.
Transmitir a fé
287. A educação dos filhos deve estar marcada por um
percurso de transmissão da fé, que se vê dificultado pelo estilo de vida
actual, pelos horários de trabalho, pela complexidade do mundo actual, onde
muitos têm um ritmo frenético para poder sobreviver. Apesar disso, a família deve continuar a ser lugar onde se
ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. Isto
começa no baptismo, onde – como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os
seus
filhos « cooperam no parto santo ». Depois tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A
fé é dom de Deus, recebido no baptismo, e não o resultado duma acção humana;
mas os pais são instrumentos de Deus para a sua maturação
e desenvolvimento. Por isso, « é bonito quando as mães
ensinam os filhos pequenos a enviar um beijo a Jesus ou a Nossa Senhora. Quanta
ternura
há nisto! Naquele momento, o coração das crianças
transforma-se em lugar de oração ». A transmissão
da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em Deus, de O
procurar, de precisar d’Ele, porque só assim « cada
geração contará à seguinte o louvor das obras [de Deus] e
todos proclamarão as [Suas] proezas » (Sl 145/144, 4) e « o pai dará
a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade » (Is 38,
19). Isto requer que imploremos a acção de Deus nos corações,
aonde não podemos chegar. O grão de mostarda, semente tão
pequenina, transforma-se num grande arbusto (cf. Mt 13,
31-32), e, deste modo, reconhecemos a desproporção entre a acção e o seu
efeito. Sabemos, assim, que não somos proprietários do dom, mas seus solícitos
administradores. Entretanto o nosso esforço criativo é uma oferta que nos
permite colaborar com a iniciativa
divina. Por isso, « tenha-se o cuidado de valorizar os
casais, as mães e os pais, como sujeitos activos da catequese (...). De grande
ajuda é a catequese
familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens
e torná-los conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria
família ».
288. A educação na fé sabe adaptar-se a cada filho, porque
os recursos aprendidos ou as receitas às vezes não funcionam. As crianças
precisam de
símbolos, gestos, narrações. Os adolescentes habitualmente entram
em crise com a autoridade e com as normas, pelo que é conveniente estimular as
suas experiências pessoais de fé e oferecer-lhes testemunhos luminosos que se
imponham simplesmente pela sua beleza. Os pais, que querem acompanhar a fé dos
seus filhos, estão atentos às suas mudanças, porque sabem que a experiência
espiritual não se impõe, mas propõe-se à sua liberdade.
É fundamental que os filhos vejam de maneira concreta que,
para os seus pais, a oração é realmente importante. Por isso, os momentos de
oração em família e as expressões da piedade popular podem ter mais força evangelizadora
do que todas as catequeses e todos os discursos. Quero exprimir a minha
gratidão de forma especial a todas as mães que rezam incessantemente, como
fazia Santa Mónica, pelos filhos que se afastaram de Cristo.
289. O exercício de transmitir aos filhos a fé, no sentido
de facilitar a sua expressão e crescimento, permite que a família se torne
evangelizadora e,
espontaneamente, comece a transmiti-la a todos os que se
aproximam dela e mesmo fora do próprio ambiente familiar. Os filhos que crescem
em famílias missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os pais
sabem viver esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos e
amigos, de tal modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o mundo,
sem renunciar
à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-nos que o próprio
Jesus comia e bebia com os pecadores (cf. Mc 2, 16; Mt
11, 19), podia deter-se a conversar com a Samaritana (cf. Jo
4, 7-26) e receber de noite Nicodemos (cf. Jo
3, 1-21), deixava ungir os seus pés por uma mulher prostituta (cf. Lc
7, 36-50) e não hesitava em tocar os doentes (cf. Mc
1, 40-45; 7, 33). E o mesmo faziam os seus
apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos outros,
fechadas em pequenos grupos de eleitos, isoladas da vida do seu povo. Enquanto
as autoridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo (cf. At
2, 47; 4, 21.33; 5, 13).
290. « A família torna-se sujeito da acção pastoral, através
do anúncio explícito do Evangelho e do legado de múltiplas formas de
testemunho, nomeadamente a solidariedade com os pobres, a abertura à
diversidade das pessoas, a salvaguarda
da criação, a solidariedade moral e material para com as
outras famílias, especialmente para com as mais necessitadas, o empenho na
promoção do
bem comum, inclusive através da transformação das estruturas
sociais injustas, a partir do território onde vive a família, praticando as
obras corporais
e espirituais de misericórdia ».
Isto deve ser feito no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos:
o amor do Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus
Cristo, vivo no meio de nós, que nos torna capazes
de enfrentar, unidos, todas as tempestades e todas as etapas
da vida. E, no coração de cada família, deve ressoar também o querigma, a tempo
e fora de tempo, para iluminar o caminho. Todos deveríamos
poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: « Nós conhecemos o amor
que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). Só a partir desta
experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as famílias sejam
simultaneamente igrejas domésticas e fermento evangelizador na sociedade.
CAPÍTULO VIII
ACOMPANHAR, DISCERNIR E
INTEGRAR A FRAGILIDADE
291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora a Igreja
reconheça que toda a ruptura do vínculo matrimonial « é contra a vontade de
Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos ». Iluminada pelo olhar de
Cristo, a Igreja « dirige-se com amor àqueles que participam
na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também actua nas
suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro
e estar
ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham ». Aliás esta atitude vê-se corroborada no
contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia.
Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a
uma resposta mais plena a Deus, « a Igreja deve acompanhar, com atenção e
solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e
extraviado, dando-lhes de
novo confiança e esperança, como a luz do farol dum porto ou
duma tocha acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a rota ou
estão no meio da tempestade ».313 Não
esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é
semelhante ao de um hospital de campanha.
292. O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a
sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam
reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à
morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes
confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento
de vida nova para a sociedade. Algumas formas de união
contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de
forma parcial e analógica. Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa
de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem
ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimónio.
A gradualidade na pastoral
293. Os Padres consideraram também a situação particular de
um matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera
convivência: « quando a união atinge uma notável estabilidade através dum
vínculo público e se caracteriza por um afecto profundo, responsabilidade para
com a prole, capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a
acompanhar
na sua evolução para o sacramento do matrimónio ». Além disso, é preocupante que hoje muitos
jovens não tenham confiança no matrimónio e convivam adiando indefinidamente o compromisso
conjugal, enquanto outros põem termo ao compromisso assumido e imediatamente instauram
um novo. Aqueles « que fazem
parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral misericordiosa
e encorajadora ». Com efeito, aos pastores
compete não só a promoção do matrimónio
cristão, mas também « o discernimento pastoral das situações
de muitas pessoas que deixaram de viver esta realidade », para « entrar em diálogo
pastoral com elas a fim de evidenciar os elementos da sua vida que possam levar
a uma
maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude
». No discernimento pastoral, convém «
identificar elementos que possam favorecer a evangelização e o crescimento
humano e espiritual ».
294. « Muitas vezes a escolha do matrimónio civil ou, em
diversos casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos ou
relutância face à união sacramental, mas por situações culturais ou
contingentes ». Nestas situações, poderão
ser valorizados aqueles sinais de amor que reflectem de algum modo o amor de
Deus. Sabemos que « está em contínuo
crescimento o número
daqueles que, depois de terem vivido juntos longo tempo,
pedem a celebração do matrimónio na Igreja. Muitas vezes, escolhe-se a simples
convivência por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos
compromissos definitivos,
mas também porque se espera adquirir maior segurança existencial
(emprego e salário fixo). Noutros países, por último, as uniões de facto são
muito
numerosas, não só pela rejeição dos valores da família e do
matrimónio, mas sobretudo pelo facto de a cerimónia do casamento ser sentida
como um luxo, pelas condições sociais, de modo que a miséria material impele a
viver uniões de facto ». Mas « é preciso enfrentar todas estas situações de forma
construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a
plenitude do
matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de
acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza ». Foi o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo
4, 1-26): dirigiu uma palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para
a libertar de tudo o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena
do Evangelho.
295. Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada « lei
da gradualidade », ciente de que o ser humano « conhece, ama e cumpre o bem
moral segundo diversas etapas de crescimento ». Não é uma « gradualidade da lei
», mas uma gradualidade no exercício prudencial dos actos livres em sujeitos
que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as
exigências
objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus,
que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver com a
força da graça, embora cada ser humano « avance gradualmente com a progressiva
integração
dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e
absoluto em toda a vida pessoal e social ».
O discernimento das situações chamadas « irregulares
»
296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de
fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que
pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no
caminho: « Duas lógicas percorrem
toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...)
O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de
Jesus: o caminho
da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é
o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre
todas as
pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a
caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita ». Por isso, « temos de evitar juízos que não
tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar
atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa
da sua condição ».
297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a
encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que
se
sinta objecto duma misericórdia « imerecida, incondicional e
gratuita ». Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do
Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a
todos seja
qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se
alguém ostenta um pecado objectivo como se fizesse parte do ideal cristão ou
quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar
catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt
18, 17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o
convite à conversão. Mas, mesmo
para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na
vida da comunidade, quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer
na
forma que lhe possa sugerir a sua própria iniciativa
discernida juntamente com o pastor. Quanto ao modo de tratar as várias
situações chamadas « irregulares », os Padres sinodais chegaram a um consenso
geral que eu sustento: « Na abordagem
pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que
são divorciadas novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à
Igreja
revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas vidas e
ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio que Deus tem para elas », sempre possível com a força do Espírito Santo.
298. Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo,
podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas
ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um
adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é uma segunda união
consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação
generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e
grande
dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que
se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que
« o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos
filhos – não se podem separar ». Há também
o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimónio
e sofreram um abandono injusto, ou
o caso daqueles que « contraíram uma segunda união em vista
da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjectivamente certos em
consciência de que o precedente matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca
tinha sido válido ».
Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem dum
divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afectam
os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente
aos seus compromissos
familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal que o
Evangelho propõe para o matrimónio e a família. Os Padres sinodais afirmaram
que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer « distinguindo
adequadamente », com um olhar
que discirna bem as situações.
Sabemos que não existem « receitas simples ».
299. Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que
quiseram afirmar que « os baptizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente
devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas
possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a
chave do seu acompanhamento
pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de
Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e
fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles
dons e carismas
para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em
diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das
diferentes
formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito
litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não
devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da
Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afectuosamente
deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é
necessária
também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos,
que devem ser considerados o elemento mais importante ».
300. Se se tiver em conta a variedade inumerável de
situações concretas, como as que mencionamos antes, é compreensível que se não
devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo
canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a
um responsável discernimento
pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer:
uma vez que « o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos », as
consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os
mesmos.
Os sacerdotes têm o dever de « acompanhar as pessoas
interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as
orientações
do bispo. Neste processo, será útil fazer um exame de
consciência, através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados
novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus
filhos, quando a união
conjugal entrou em crise; se houve tentativas de
reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a
nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo
oferece ela aos jovens que se
devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode
reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém ». Trata-se
dum itinerário de acompanhamento e discernimento que « orienta estes fiéis na
tomada
de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com
o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre aquilo
que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e
sobre os passos
que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na
própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris consortio, 34),
este discernimento não poderá
jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e
caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as
necessárias
condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua
doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma
resposta
mais perfeita à mesma ». Estas
atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas,
como a ideia de que algum sacerdote
pode conceder rapidamente « excepções », ou de que há
pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando
uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos
acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a
seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um certo
discernimento
leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.
As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral
301. Para se entender adequadamente por que é possível e
necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas « irregulares
», há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se
pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida
reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já
não é possível
dizer que todos os que estão numa situação chamada «
irregular » vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante.
Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma
pessoa, mesmo
conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em
compreender « os valores inerentes à norma » ou
pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira
diferente e tomar outras decisões sem
uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais,
« pode haver factores que limitam a capacidade de decisão ». E São Tomás de Aquino reconhecia que alguém
pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes
morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque
a prática exterior dessa virtude está dificultada: « Diz-se
que alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto experimentam dificuldade em
pô-las em acto, embora tenham os hábitos de todas as virtudes ».
302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo
da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica: « A
imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até
anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o
medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros factores
psíquicos ou sociais ». E, noutro parágrafo,
refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral,
nomeadamente « a imaturidade afectiva, a força de hábitos contraídos, o estado
de angústia e outros factores psíquicos ou sociais ». Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objectiva
não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a
culpabilidade da pessoa envolvida. No
contexto destas convicções, considero muito apropriado
aquilo que muitos Padres sinodais quiseram sustentar: « Em
determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes dificuldades para
agir de maneira diferente. (...) O discernimento pastoral,
embora tendo em conta a consciência rectamente formada das pessoas, deve
ocupar-se destas situações. As próprias consequências dos actos praticados não
são necessariamente as
mesmas em todos os casos ».
303. A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos
concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor
incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objectivamente
a
nossa concepção do matrimónio. É claro que devemos incentivar
o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo
discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma
confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só
que
uma situação não corresponde objectivamente à proposta geral
do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que,
por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com
certa segurança
moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no
meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente
o ideal objectivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este
discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de
crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal
de forma mais completa.
As normas e o discernimento
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma
pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para
discernir
e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência
concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que
ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento
pastoral: « Embora
nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia
à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No
âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as
aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a
rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por
todos. (...)
Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a
indeterminação ». É verdade que as normas
gerais apresentam um bem que nunca se
deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não
podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso
afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum
discernimento prático
duma situação particular não pode ser elevado à categoria de
norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em
risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas
aplicando leis morais àqueles que vivem em situações « irregulares », como se
fossem
pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos
corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos
da Igreja « para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com
superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas ».
Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional:
« A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras
que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de
inspiração objectiva para o
seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão ». Por causa dos condicionalismos ou dos factores
atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado
– mas subjectivamente não seja culpável ou
não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso
a ajuda da Igreja. O
discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus
e de crescimento no meio dos limites. Por
pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o
caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação
que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que « um pequeno passo, no meio de
grandes limitações
humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias
dificuldades ».
A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode
deixar de incorporar esta realidade.
306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha
dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a
percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei
dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal
5, 14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura: «
Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a
multidão de pecados »
(1 Ped 4, 8); « redime o teu
pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes »
(Dn 4, 24); « a água apaga o fogo ardente,
e a esmola expia o pecado » (Sir 3,
30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: « Tal como, em perigo de incêndio,
correríamos a buscar água
para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos
turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos
proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela
como se fosse
uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água
para extinguir o incêndio ».
A lógica da misericórdia pastoral
307. Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro
que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do
matrimónio, o projecto de Deus em toda a sua grandeza: « É preciso encorajar os
jovens baptizados para não
hesitarem perante a riqueza que o sacramento do matrimónio
oferece aos seus projectos de amor, com a força do apoio que recebem da graça
de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja ». A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um
excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de
fidelidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios
jovens. A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder
a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser
humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos
falimentos é o esforço pastoral para consolidar os
matrimónios e assim evitar as rupturas.
308. Todavia, da nossa consciência do peso das
circunstâncias atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas –
conclui-se que, « sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar,
com misericórdia e paciência,
as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão
construindo dia após dia », dando lugar à « misericórdia do Senhor que nos
incentiva a praticar o bem possível ». Compreendo
aqueles que preferem uma pastoral mais rígida,
que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente
que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da
fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina
objectiva, « não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se
com a lama da estrada ». Os pastores, que
propõem aos fiéis o ideal pleno do
Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a
assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou
juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não
julguemos nem condenemos
(cf. Mt 7, 1; Lc
6, 37). Jesus « espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos
pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama
humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando
o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente ».
309. É providencial que estas reflexões sejam desenvolvidas
no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também perante as
mais diversas situações que afectam a família, « a Igreja tem a missão de
anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio
dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume
o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de
todos sem excluir ninguém ». Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como
Pastor de cem ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir
desta consciência,
tornar-se-á possível que « a todos, crentes e afastados, possa chegar o
bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós
».
310. Não podemos esquecer que « a misericórdia não é apenas
o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros
filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia,
porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco ». Não é uma proposta romântica nem uma resposta
débil ao amor de Deus, que sempre quer promover as pessoas,
porque « a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a
misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura
com que se dirige
aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo,
nada pode ser desprovido de misericórdia ». É
verdade que, às vezes, « agimos como controladores da graça e não como facilitadores.
Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos
com a sua vida fadigosa ».
311. O ensino da teologia moral não deveria deixar de
assumir estas considerações, porque, embora seja verdade que é preciso ter
cuidado
com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia
sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores
mais altos e
centrais do Evangelho, particularmente
o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às
vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia
que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e
esta é a pior maneira de aguar o Evangelho. É verdade, por exemplo, que a
misericórdia
não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos
de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais
luminosa
da verdade de Deus. Por isso, convém sempre considerar «
inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância, ponha em
dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia ».
312. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem
de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas
mais delicados, situando-nos, antes, no contexto dum
discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para
compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica
que deve prevalecer
na Igreja, para « fazer a
experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias
existenciais ». Convido os fiéis,
que
vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para
falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre
encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas
seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a
acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal.
E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade,
com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu
ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na
Igreja.
CAPÍTULO IX
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL E
FAMILIAR
313. O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de
vida a que cada um foi chamado. Várias décadas atrás, o Concílio Vaticano II, a
propósito do apostolado dos leigos, punha em realce a espiritualidade que brota
da vida familiar. Dizia que a espiritualidade dos leigos « deverá assumir características
especiais » próprias, nomeadamente a partir do « estado do matrimónio e da
família », e que os
cuidados familiares não devem ser alheios ao seu estilo de vida espiritual. Por
isso, vale a pena deter-nos brevemente a descrever algumas características
fundamentais desta espiritualidade
específica que se desenrola no
dinamismo das relações da vida familiar.
Espiritualidade da comunhão sobrenatural
314. Sempre falamos da inabitação de Deus no coração da
pessoa que vive na sua graça. Hoje podemos dizer também que a Trindade está
presente
no templo da comunhão matrimonial. Assim como habita nos
louvores do seu povo (cf. Sl 22/21, 4), assim também
vive intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória.
315. A presença do Senhor habita na família real e concreta,
com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários. Quando se
vive em família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma máscara. Se
o amor anima
esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua alegria e
a sua paz. A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos
reais e concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de dons e
encontros que fazem
maturar a comunhão. Esta dedicação une « o humano e o divino
», porque está cheia do amor de Deus. Em
suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado
pelo amor divino.
316. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho
de santificação na vida ordinária e de crescimento místico, um meio para a
união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da
vida em família
são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto
torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de
Deus, que « quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas » (1
Jo 2, 11), « permanece na morte » (1 Jo3, 14) e « não chegou a
conhecer a Deus » (1 Jo 4,8). O meu antecessor,
Bento XVI, disse que « o fechar os olhos diante do próximo torna cegos
também diante de Deus » e
que, fundamentalmente, o amor é a única luz que « ilumina incessantemente um
mundo às escuras ». Somente « se nos
amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição
em
nós » (1 Jo 4, 12). Dado que « a
pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social » e « a primeira e originária expressão da
dimensão
social da pessoa é o casal e a família », a espiritualidade encarna-se na comunhão
familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem
sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um
percurso
de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união
mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
317. Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele
unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são
vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar
os piores momentos. Nos
dias amargos da família, há uma união com Jesus abandonado,
que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, « com a graça
do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial,
participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as
dificuldades
e os sofrimentos em oferta de amor ». Por outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e
mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua
Ressurreição. Os cônjuges moldam, com vários gestos
quotidianos, este « espaço teologal, onde se pode
experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado ».
318. A oração em família é um meio privilegiado para
exprimir e reforçar esta fé pascal. Podem-se encontrar alguns minutos cada dia para
estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que os preocupam,
rezar pelas
necessidades familiares, orar por alguém que está a
atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela
vida e as
coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu
manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem
à família. As várias expressões da piedade popular são um tesouro de
espiritualidade para muitas famílias. O caminho comunitário de oração atinge o
seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no
contexto do descanso
dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar com
ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20). Aqui, os esposos
podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflecte a Aliança
que Deus selou com a humanidade na
Cruz. A Eucaristia é o
sacramento da Nova Aliança, em que se actualiza a acção redentora de Cristo
(cf. Lc 22, 20). Constatamos, assim, os laços íntimos
que existem entre a vida conjugal e a Eucaristia.
O alimento da Eucaristia é força
e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como «
igreja doméstica ».
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
319. No matrimónio, vive-se também o sentido de pertencer
completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer
e gastar-se juntos, e assim reflectem a fidelidade de Deus. Esta firme decisão,
que marca um estilo de vida, é uma « exigência interior do pacto de amor
conjugal », porque, « quem não se decide a
amar para sempre, é difícil que possa
amar deveras um só dia ». Mas
isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com resignação.
É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5,
28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de
Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao
longo do dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar
esta
aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge
é para o outro sinal e instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa
sozinhos:
« Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos » (Mt
28, 20).
320. Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima
libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o
outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único
Senhor. Ninguém
pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta
da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o
princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro
satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual
de cada um – como justamente indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude a « desiludir-se
» do outro, a deixar de esperar dessa pessoa
aquilo que é próprio apenas do amor de
Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço
exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva para a sua relação pessoal com
Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também
encontrar no amor de Deus o
sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar
cada dia a acção do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da
consolação e do estímulo
321. « Os esposos cristãos são cooperadores da graça e
testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais familiares
». Deus convida-os a gerar e a cuidar. Por
isso mesmo, a família « foi desde sempre o “hospital” mais próximo ». Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e
estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa
espiritualidade familiar.
A vida em casal é uma participação na obra fecunda de Deus,
e cada um é para o outro uma permanente provocação do Espírito. O amor de Deus
exprime-se « através das palavras vivas e concretas com que o homem e a mulher
se declaram o seu amor conjugal ». Assim,
os dois são entre si reflexos do amor divino, que conforta com a palavra, o
olhar, a ajuda, a carícia, o abraço. Por isso, « querer formar uma família é ter
a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a
coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a
coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se
sinta só ».
322. Toda a vida da família é um « pastoreio » misericordioso.
Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: « A nossa carta
sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não
com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo » (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um «
pescador de homens » (Lc 5, 10) que, em nome de
Jesus, lança as redes (cf. Lc 5, 5) para os outros, ou
um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus
entes queridos, incentivando o melhor deles. A fecundidade matrimonial implica
promover, porque « amar uma pessoa é esperar dela algo
indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo, proporcionar-lhe de alguma
forma
os meios para satisfazer tal expectativa ». Isto é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou
muitas coisas boas nos outros, com a esperança de que as façamos crescer.
323. É uma experiência espiritual profunda contemplar cada
ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade
gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente
presente
diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente,
esquecendo tudo o que existe em redor. Assim a pessoa amada merece toda a atenção.
Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele,
fixava
nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc
10,21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas
palavras e gestos eram expressão
desta pergunta: « Que queres que te faça? » (Mc
10, 51). Vive-se isto na vida quotidiana da família. Nela,
recordamos que a pessoa que vive connosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita
por ser objecto do amor imenso do Pai.
Assim floresce a ternura, capaz de « suscitar no outro a
alegria de sentir-se amado. Exprime-se, de modo particular, no debruçar-se com
delicada
atenção sobre os limites do outro, especialmente quando
aparecem de forma evidente ».
324. Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só
acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para
derramar
o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua
felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que a Palavra de Deus encoraja de forma
sugestiva: « Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela,
alguns, sem o saberem, hospedaram anjos » (Heb13,
2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos
pobres e abandonados,
é « símbolo, testemunho, participação da maternidade da
Igreja ». Na realidade, o amor social,
reflexo da Trindade, é o que unifica o sentido
espiritual da família e a sua missão fora de si mesma,
porque torna presente o querigma com todas as suas exigências comunitárias. A
família vive a sua espiritualidade própria, sendo ao mesmo tempo uma igreja
doméstica e uma célula
viva para transformar o mundo.
* * *
325. As palavras do Mestre (cf. Mt 22,
30) e as de São Paulo (cf. 1 Cor 7, 29-31) sobre o
matrimónio estão inseridas – não por acaso – na dimensão última e definitiva da
nossa existência, que precisamos de recuperar. Assim, os esposos
poderão reconhecer o sentido do caminho que estão a
percorrer. Com efeito, como recordamos várias vezes nesta Exortação, nenhuma
família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas
requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante
que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a
sua
Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de
Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Mas
contemplar a plenitude que ainda não alcançámos permite-nos também relativizar
o percurso histórico que estamos a fazer como família, para deixar de pretender
das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma
coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso,
impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande
fragilidade.
Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais
além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste
estímulo
constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar!
Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos
nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e
comunhão que
nos foi prometida.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.
Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Ámen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no Jubileu Extraordinário
da Misericórdia, a 19 de Março – solenidade de São José – do ano 2016, quarto
do meu Pontificado.
Fonte: http://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia_po.pdf
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