Miguel, meu querido neto,
Esta carta é para ti especialmente.
Quero bastante que entendas, desde muito cedo, que a vida, a
vida de todos e a tua vida, a vida está repleta de agruras e doçuras, mas será
sempre mais nivelada, sem canseiras nem tropeços se nós não a complicarmos nem
nos deixarmos enredar nas complicações que outros criam para nós e por nós.
Apenas a Palavra de Deus nos pode ajudar a entender o
significado verdadeiro dos gestos e atitudes com que nos deparamos no
quotidiano, feitos por nós ou pelos outros.
Muito do que dizemos e fazemos parece ser por intuição, sem
que o consigamos explicar e quando tentamos, a explicação ainda nos atrapalha
mais. Da mesma maneira, quando julgamos os outros – e passamos a vida a julgar,
às vezes a elogiar, mas normalmente a condenar – a maior parte das vezes
erramos, porque em vez de usarmos como termo de comparação a Palavra de Deus,
sempre tolerante e misericordiosa, usamo-nos a nós mesmos, exigindo aos outros
que sejam como nós idealizamos que deviam ser. Mas nós somos pouco mais que
barro, terra, húmus, enfim, lama, estrume. Por essa razão, quando os cemitérios
deixaram de ser ao lado das igrejas, e lá se instalaram hortas, elas eram tão
férteis. Os nossos antepassados eram o grande segredo, os seus corpos eram o
melhor fertilizante.
A Palavra de Deus chega-nos através da Sagrada Escritura,
mas também nos chega por diversos outros meios. Um deles é, sem dúvida, a
aceitação da realidade da Natureza e do bom senso. Sem aprofundar a questão do
bom senso, toma nota que o bom senso não é aquilo que me parece ou que por
qualquer razão em qualquer momento vai na minha cabeça. Vou agora falar-te de
antepassados teus.
Antes de morrer, mas vislumbrando o fim que se aproximava
inexorável, Aurora fez um pedido grave ao marido exigindo-lhe que prometesse
não voltar a casar. Parecia, naquele tempo, uma história de grande amor, quais
Romeu e Julieta.
A realidade foi bastante diferente de um manto de ternura,
foi mesmo bastante dolorosa. João, o esposo viúvo, ficou com uma criança bebé a
seu cargo. Um dia tomou-se de amores por Laura mas manteve-se fiel ao juramento
que fizera a Aurora na hora da morte. Laura dormia umas noites em sua casa,
outras em casa de João, vivia na obscuridade perante os vizinhos que a viam
entrar e sair. Nunca conseguiu aceitar Maria, o fruto do amor entre Aurora e
João e sempre lhe fez a vida negra, contribuindo e criando um mau ambiente
entre pai e filha. João nem sequer foi ao casamento da filha. E manteve a
relação amorosa até à hora da morte como se de uma vergonha que precisasse
esconder se tratasse.
Maria aprendera bem a lição de que não é lícito deixar em
testamento desejos íntimos que obriguem os que ficam a viver situações
dolorosas e fúteis. Ela deixou bem explícito que, caso morresse antes do seu
marido e seu grande amor, Amadeu, era sua opinião e desejo que ele voltasse a
casar e tivesse um lar estável. Assim aconteceu. Amadeu tomou Margarida como
sua segunda esposa. Não foi fácil aos filhos Ana e Luís aceitarem esta decisão
do pai, mas além de preceder do desejo expresso pela mãe, era também a vontade
do pai. E a família teve um tempo de alguma tranquilidade que sucedeu ao luto.
Mais tarde, muitos anos depois, venenos de escorpiões e de
serpentes lançaram conflito dentro da família. Familiares próximos de Amadeu
induziram Ana contra o pai alegando que ao tomar Margarida como esposa estava a
trair a memória de Maria. Ana deixou de falar ao pai e ao irmão Luís. A guerra
realizada olhos nos olhos e através de mensagens de correio electrónico, pois
alguns projécteis bélicos vieram do outro lado do mundo lançar ódios dentro das
famílias parou quando Luís recordou a herança da mãe, o desejo, formulado
décadas antes de adoecer, e morrer, que o marido deveria casar, se enviuvasse,
para estabilidade familiar. Mas Ana, mercê dos tais venenos de escorpiões e
serpentes, não mais falou com o pai nem com o irmão.
Luís também gerou filhos. Entre estes, Aurora, assim chamada
como a bisavó, que enviuvou logo após casar. Miguel, tu amavas muito o teu tio
que partiu tão cedo para junto de Deus e não entendes bem que ele possa ser
substituído.
Ouve bem, Miguel, meu neto. O teu tio, lá em cima, no Céu,
tem a possibilidade de olhar para nós. Ele olhou para a tua tia viúva e ficou
angustiado. Depois de tanto amor que partilharam, ele vê agora aquela que foi a
sua esposa cheia de amor para dar, mas só, uma pessoa sempre a ajudar todos,
mas sem alguém a seu lado para a proteger, cuidar e amar. O teu tio, como todos
no Céu, deseja mais que tudo paz e amor. Ele quer que a tua tia case de novo
com a pessoa a quem ela possa amar agora e que a possa fazer feliz.
Nunca fui ao Céu, mas Jesus explicou muito bem como estas
coisas se processam. Abre o teu coração e a tua mente, querido neto Miguel, e
escuta as palavras do Evangelho e como Jesus, Nosso Senhor, explica com
simplicidade estas coisas tão difíceis para as pessoas complicadas.
Certo dia, os saduceus, que afirmam que não existe ressurreição,
aproximaram-se de Jesus e propuseram-Lhe este caso:
- Mestre, Moisés disse: "Se alguém morrer sem ter
filhos, o irmão desse homem deve casar-se com a viúva a fim de que possam ter
filhos em nome do irmão que morreu". Pois bem, havia entre nós sete
irmãos. O primeiro casou-se e morreu sem ter filhos, deixando a mulher para o
seu irmão. Do mesmo modo, aconteceu com o segundo e o terceiro e assim com os
sete. Depois de todos eles, morreu também a mulher. Na ressurreição, de qual
dos sete ela será mulher? De facto, todos a tiveram».
Jesus respondeu:
- Estais enganados, porque não conheceis as Escrituras nem o
poder de Deus. De facto, na ressurreição, os homens e as mulheres não se
casarão, pois serão como os anjos do Céu. E, quanto à ressurreição, será que
não lestes o que Deus vos disse: "Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac
e o Deus de Jacob"? Ora, Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos».
Ouvindo isto, as multidões ficaram impressionadas com o
ensinamento de Jesus. (Mateus 22,23-33)
Como entendes agora, meu neto, no Céu não seremos mais avô e
neto, seremos apenas como anjos, irmãos, filhos do mesmo pai, que é Deus. Do
mesmo modo eu, o meu pai, a minha mãe e a segunda esposa do meu pai, depois de
ele enviuvar, viveremos todos em torno de Deus, como anjos, louvando e dando
graças a Deus nosso Pai comum por tudo o que Ele criou, por nós mesmos e pelo
amor que Deus reparte continuamente connosco. Deus dá-nos gratuitamente o seu
amor para que nós o demos também gratuitamente uns aos outros sem rancores, nem
ódios, nem invejas, mas como Deus o dá, com misericórdia, humildade e beleza.
Louva a Deus, todos os dias da tua vida, meu neto Miguel,
ama a todos com o mesmo amor que recebes de Deus, e viverás eternamente na
companhia de Deus e de todos nós a quem tu amas, se também procedermos como te
peço que procedas.
Ámen.
Teu avô Orlando