quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

NOTA DIFÍCIL





Há anos casei. A minha mulher ficou à espera de bebé. Passados 3 meses foi informada que tinha que fazer um aborto, pois corria risco de vida. Nem admitiu. Saiu da marquesa imediatamente. Não foi fácil ver a família de relações cortadas. Todos sem excepção adoravam a Isabel, mas o egoísmo foi de tal forma que ninguém defendeu a vida do Zé Maria, nosso filho…!
Eu… passei a ser o culpado de tudo… mas a gravidez foi alegre e difícil pois repouso cuidados e muita cautela, pois a Isabel já apresentava fraqueza, anemia, etc.

O Zé Maria nasceu dia 18 de Maio.

Nesse dia, há 12 anos, a Isabel fraca, mas sorridente olhou com os olhos cheios de lágrimas… a primeira e a última vez para o nosso filho. Não houve tempo para falar, dar-lhe um beijo, pegá-lo ao colo. Morreu naquele instante, estávamos os três juntos, mas ela partiu. Salvou a vida do Zé, sorriu e partiu. Deu a VIDA por ele. Não consigo descrever mais que isto… minutos depois… o Zé Maria não estava bem. Incubadora… 

Eu, perdido, sozinho, com os pais dela a culparem-me por tudo o que acontecia… enfim… olhando para aquele ser tão pequeno, ganhei forças para tratar do enterro da minha mulher. Pedi ao Padre para que a missa fosse de Acção de Graças, pois não conheci Amor maior aqui na terra… Dar a Vida… Foi cremada. Pouca gente. Fui olhado de lado… mas cá dentro não me saía da cabeça o Zé Maria… corri para o hospital nesse mesmo dia. Diagnóstico grave. De ordem variada. Ia ficar por lá uns tempos. Não hesitei por um segundo largar tudo e passar todo o tempo possível ao seu lado. Conversei, chorei, peguei ao colo onde tantas vezes adormecia, habituou-se a tanto…tubos, imobilizadores dos membros inferiores… mas… que privilégio… o baptizado ali… o primeiro sorriso, mudar a primeira fralda com um bando de enfermagem e médicos a gozarem o prato, mas a ajudarem sempre, o primeiro biberão ou mamadeira, como se diz aqui no Brasil. O meu pequeno Zé foi crescendo, engordando, palrando, reconhecia a minha voz à distância… dobrava o riso, brincava com as minhas bochechas, estendia os braços quando me via, agarrava a minha cara, esperava brincadeiras e assobios, já dobrava o riso, gargalhávamos juntos, aninhava-se nos meus braços quando ninguém o conseguia acalmar das dores, e com um beijo uma festa, afagando suas costas, a sua mão papuda no meu queixo… e embalava no sono. Às vezes eu podia ficar até depois do jantar.

Ao fim de 9 meses fui despedido! Sem dó nem piedade. O meu filho agravara seu estado… e foi numa noite calma que entrei na unidade de cuidados intensivos pediátricos, chamado com urgência. O médico falou. Não ouvi metade… apenas percebi, que o meu Zé, companheiro da Vida, já tão cheia de tanto, estava calado… sossegado… fraco… Aproximei-me. Estava de olhos abertos. Sorriu… eu chorando sorri também. Peguei nele, ninguém me impediu. Duas enfermeiras olhavam. Em silêncio… Uma tinha um terço em suas mãos… Dei um beijo ao meu Zé, enchi as bochechas de ar, assobiei, mas ele apenas sorria… devagar… Aninhado nos meus braços, levantou os dele. Mão no meu queixo, a outra no meu rosto…, fez-me uma festa… aconchegou-se, enroscou-se, sem nunca largar o meu queixo, sem nunca tirar seus olhos dos meus, de onde caíam e escorriam lágrimas grossas… embalei o meu filho sentindo que desta vez seria para adormecer para sempre. Suspirou. Sorriu… ainda com respiração superficial mantinha olhos entreabertos nos meus, captando a minha voz que sussurrava obrigados, que gostava muito dele, que a mãe estava à sua espera e que colo não lhe ia faltar. Que eu ficava bem, e que Deus me tinha dado um anjo para a Vida… a mão caiu… sorriu mais uma vez e suspirou… partiu. Ao meu colo. O primeiro da sua vida… e o último… continuei com ele ao colo, as enfermeiras, médicos, todos os que ali estavam choravam comigo… silêncio… silêncio… vim para o Brasil sim. Com a minha família. Um sonho projecto… de vida… cumprido. Vim depositar as suas cinzas no oceano. 

Vim sepultar a minha FAMÍLIA!

Voltei a Portugal. Mal. Muito mal. Tentei o suicídio. Fui salvo pela única pessoa amiga que atenta percebeu num telefonema que eu estava triste. Não sei como meteu-se no carro e foi a minha casa. Encontrou-me inanimado. Levou-me para o hospital. Não contou a ninguém. Eu não tinha nenhuma patologia. Estava apenas triste. E uma pessoa, apenas uma, o percebeu. Devo a minha Vida à Joana Brito Fontes. Ao longo destes anos nunca me abandonou.

Ajudou. Esteve presente. Não sei como mas aparecia sempre que eu estava mais em baixo. Até em recuperação das operações aos olhos.

E voltei para aqui. Trabalho bom, gente sã, mas daí saudades muitas de tudo e tanto. E tantos. Obrigado.
Reconverti-me. Voltei à igreja e a Joana, no silêncio e testemunho, com atitude, devolveu-me a alegria de sentir que afinal a minha Vida é cheia. Válida. Com uma simples pergunta: "o que seria do mundo se não existisses?
Fiz a mesma pelo Zé, pela Isabel e por ela!
Agora até por desconhecidos! 

Fiz-lhe a mesma há uns anos. Respondeu: "acabava o amor porque não haveria uma história para contar e viver. Porque na vida, o que na verdade importa são as pessoas. E o mundo era diferente se não existíssemos. Todos diferentes, mas com a missão de Ser Humano - SER ESTAR DAR. Sozinhos, nada somos..."
E ao fim de tantos anos conheci o Papa Francisco que me deu um abraço. Fui com ele a uma favela e a um reformatório. Mais um longo abraço. Percebi que conhecia a minha história.
Assisti à missa em Copacabana da minha janela.
Vou casar outra vez.
Amo o meu trabalho. O Brasil.
Graças a uma. Apenas uma.

Lágrimas de saudades gratidão e alegria por estar a escrever e finalmente conseguir falar e sentir o Amor com que fui tocado e ajudado.
Como diz a Joana, a Vida tem que ser sempre um valente abraço.

Texto de Miguel M. S. Almeida

Publicado por Orlando de Carvalho

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