domingo, 22 de março de 2020

Quaresma dos miseráveis e liturgia



Lemos e ouvimos muitas vezes que não há maior sofrimento que o de Jesus durante a Paixão.

Este sentimento, afirmado assim ou de outra forma, merece-nos alguma reflexão. A primeira questão é saber como se mede o sofrimento humano? Todos sabemos que é impossível saber, entre duas pessoas, qual delas sente uma dor maior ou menor. Ainda que ambas as pessoas estejam sujeitas à mesma pressão, entram em jogo muitos factores subjectivos, sejam físicos ou psicológicos. E como garantir que a pressão nas duas pessoas é igual?

Jesus encarnou para viver à maneira humana, isto é, desde logo, de modo precário, imprevisível e pessoal, pois todos nós vivemos as mesmas coisas de modo pessoal, cada um sente a mesma situação de modo diferente.

A diferença essencial entre o sofrimento de Jesus e o de qualquer outro de nós é o sentido desse sofrimento. O sofrimento de Jesus salvou a humanidade da morte e das trevas e abriu-lhe horizontes de eternidade. O nosso sofrimento, o de cada um de nós, pode ser co-redentor ao de Cristo, na medida em que o consigamos unir e aliar ao de Jesus. Não na intensidade da dor, mas no seu sentido.

Pensemos na pessoa em grande sofrimento praguejando contra o destino e contra Deus ou inventando culpados do seu infortúnio para descarregar a sua doer amaldiçoando-os. Há outra pessoa também sob um sofrimento igualmente grande, embora menor que o da pessoa anterior, que consegue manter alguma serenidade e confiança em Deus. Este sofrimento, podendo ser menor que o anterior, é mais facilmente identificável com o de Jesus e pode mesmo participar com o de Ele na Redenção.

A Igreja comemora as dores que Jesus sentiu no seu corpo, de modo particular durante a Quaresma. É um tempo de sofrimento, em que os fiéis se humilham e se identificam com o barro e as Cinzas que caem nas suas cabeças no primeiro dia da Quaresma. A quarta-feira de Cinzas está para a Igreja como a Encarnação para Jesus. Os fiéis humilham-se e reconhecem-se pecadores e sem mérito. Jesus, ao contrário, aceitou equiparar-se a nós pecadores, embora Ele nunca tenha tido demérito algum, nunca pecou – se tivesse pecado tinha-se afastado de Si mesmo, porque pecar é afastar de Deus. Rebaixou-se, não à sua condição, como nós fazemos em quarta-feira de Cinzas, mas à nossa condição. Este rebaixamento é a kenosis de Jesus, a humilhação. Ele é a Luz que nos veio redimir, através do sofrimento a que sujeitou a sua natureza humana.

Anterior à Encarnação de Jesus, nós já conhecemos o relato dos quarenta anos dos judeus através do deserto, uma prefiguração da Quaresma. Mas como cristãos no mundo, talvez tenhamos a obrigação de perceber as quaresmas de tantas pessoas nossas contemporâneas e tantas que têm vivido ao longo dos tempos. Pessoas que sofrem em todos os lugares do mundo em guerras em que são lançadas e forçadas a participar, seja como atacantes ou atacados, matando ou morrendo, violando ou sendo violado. Quaresma de pessoas que sofrem dores provenientes de doenças naturais, de maus tratos, de desconsiderações, de humilhações.

A humanidade atravessa ao longo destes meses, no início de 2020, duas quaresmas em particular. A Quaresma litúrgica com toda a Igreja. E a quaresma do coronavírus, já baptizado de Covid19.

A quaresma da pandemia é

a angústia das pessoas na expectativa de adoecerem,

é o desleixo das pessoas que desvalorizam a sua protecção e facilitam a propagação da doença,

é o desespero de quem vê os amigos e familiares a sofrer e a morrer,

é o desalento de quem sente a impotência e recusa a aceitar uma situação de nada poder fazer contra o que está para acontecer, que nem sabe como será o dia de amanhã desta pandemia.

Vivamos uma quaresma fecunda à maneira de Jesus, aceitando o que não podemos evitar, cuidando da nossa própria saúde e ajudando os outros, todos os que precisarem, seja encorajando por palavras, seja qualquer outro tipo de auxílio que respeite a segurança de todos.

Nesta doença, as pessoas morrem sozinhas. Enquanto estiverem vivas, rezemos por elas, falemos com elas ao telefone, rezemos com elas por telefone.

Em contraste com a quaresma fértil, existe uma quaresma desperdiçada. Não será tanto a exasperação perante o sofrimento que acompanha esta doença, mas a exposição gratuita ao perigo, fazendo correr risco a si mesmo e contribuindo para o alastramento e manutenção da epidemia.

Os que estão em casa, em quarentena ou por precaução, procurem utilizar da melhor forma esse tempo. Deixamos duas propostas de directivas principais para os tempos disponíveis: amar a família, conversando, tolerando o que quer fazer coisas diferentes de mim, e dedicando uma grande quantidade de tempo à relação com Deus. Orando sozinho ou orando em família. Também há a hipótese de contactar a família e amigos por telefone, como já referido. E com eles rezar, assim mesmo, à distância.

Depois da Quaresma vem sempre a Páscoa. Os hebreus alcançaram a Terra Prometida. Jesus elevou-Se ressuscitado para se sentar junto do Pai. Nós esperamos não ser tocados pelo coronavírus, mas, em qualquer caso, o principal da Páscoa para os que temos fé é juntarmo-nos a Jesus junto do Pai.

Com a certeza de que no fim tudo acaba bem.

Entretanto ponhamos a render o tempo disponível para reflectir em algumas consequências desta paragem na vida das pessoas e das sociedades imposta pela catástrofe inédita da Covid19.

Abrandou a poluição do planeta, afrouxou o veneno que tantas fábricas expelem para a atmosfera, para os nossos pulmões, tantos esgotos de tantas tipos diminuíram o seu caudal, tantas más utilizações das dádivas da Natureza ficaram como que em suspensão.

Diminuíram as mortes nas estradas, devem estar perto de zero, uma vez que não há circulação de viaturas.

No final as pessoas vão perceber que talvez não precisem de ir tantas vezes às compras, que podem poupar mais, que gastamos tantas vezes tempo e dinheiro em futilidades. Que em vez de vivermos, temos desperdiçado a melhor coisa que recebemos em toda a nossa vida: a vida.




É verdade que durante esta calamidade mundial, muitos políticos dizem que primeiro está a economia, como Boris do Reino Unido, depois o combate à pandemia, que outros aproveitam para fazer experiências de lançamentos de mísseis, como o Kim da Coreia do Norte, como se a pandemia não fosse já castigo suficiente para a Humanidade. De facto, estamos na Terra e aqui nunca será estabelecido o Céu, por causa da nossa natureza belicosa. Mas aprendamos com o sofrimento, com cada Via Crucis e comecemos desde já a viver à maneira do Céu.



Orlando de Carvalho

Foto:
Uma escola que ruiu na Nigéria causando a morte a muitos alunos
Um grupo do Boko Haram


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