Eu acredito na transubstanciação do pão e do vinho no Corpo
e no Sangue de Jesus, operada durante a Eucaristia pela descida do Espírito
Santo sobre aquelas matérias. Sou católico e aprendi assim. Mas não acredito,
hoje, por ser uma “instrução” ou uma “regra” ou mesmo um “ensinamento” da
Igreja. Aprendi por esses meios, hoje acredito como homem adulto, com o meu
coração e a minha inteligência. E assim ensino quando estou nessa situação.
A comunhão do Corpo e Sangue do Senhor a par do conhecimento
expectante, pela fé e pela esperança, da vida eterna, são a base da fé católica
que vivemos em Igreja, e em que esta se alicerça. Em contrapartida, são também
as verdades em que os católicos têm mais dificuldade de afirmar, em acreditar,
de proclamar, fazendo-o do fundo do seu coração. Porque são intangíveis para a
compreensão sensorial. A Deus nunca ninguém o viu, relembrava o Papa Bento XVI.
A minha avó ensinou-me, em pequeno, muito pequeno, que mesmo
o que vemos com os olhos, temos de colocar sempre em dúvida, isto é, nem no que
vemos podemos acreditar. Hoje, com a minha linguagem, eu diria que posso estar
a ver, mas de uma perspectiva errada, como tão bem se evidencia com as análises
dos lances no desporto, revelando verdades diversas consoante a localização das
câmaras que captam o momento.
Pode assimilar-se e aprender com a experiência sensorial, ou
com a razão ou com a fé.
Há uns 15 anos, em conversa com um inglês católico, ele
dizia-me que em Inglaterra ninguém (leia-se quase ninguém) acredita na
transubstanciação nem na presença real de Jesus nas espécies consagradas.
Admirado, e sendo ele católico, perguntei-lhe: mas há católicos em Inglaterra,
não são todos anglicanos!
Explicou-me que a perseguição e a repressão sobre os católicos
desde Henrique VIII e Isabel I, além de ter sido exuberante e sangrenta, de uma
violência ímpar, se manteve e mantém como pressão social constante. Até meados
do século XIX o catolicismo era ilegal na Grã-Bretanha. E penso que um católico
não pode ser monarca nem monarca consorte naquele país democrático. Se for
mouro, pode ser mayor de Londres…
Ora, com todo este ambiente hostil, para além da já referida
dificuldade que um católico tem naturalmente em acreditar, porque não entende,
a presença real do Senhor no pão consagrado, esta verdade fundamental foi-se
dissipando. Mesmo entre os católicos, em Inglaterra, a aceitação da presença
plena de Jesus Cristo na comunhão é difícil e não é geral: eles mantêm muitas
vezes um ‘se’ muito profundo.
Aos poucos, a fé eucarística parece transformar-se num
hábito. Católicos permanecem diante do sacrário, como se estivessem perante um
candeeiro ou uma cadeira, conversam e cumprimentam-se durante a comunhão, ainda
com a partícula sagrada na boca, com grandes sorrisos e à vontade, atendem o
telemóvel durante a consagração e perturbam toda a Assembleia a sair com passo
apressado para atender o dito cujo lá fora, e ficam de fora, mas à porta, a
conversar em voz alta, incomodando a relação entre os outros fiéis e Nosso Senhor.
As crianças nas catequeses são mal instruídas sobre a
sacralidade deste sacramento imenso e total. Tantas vezes por causa dos pais
que enviam os seus filhos à catequese, não sei porquê, porque dá a ideia de não
acreditarem em nada daquilo, na “tese” do amor incondicional ao próximo e nunca
prescindem do conforto para ir à missa. A não ser que haja festa com banquete.
Ora, se o pão se transubstancia no Corpo do Senhor, quando o
padre que preside à celebração o eleva à vista de todos, é Jesus que ali está
de modo real. Embora a sua presença já fosse real, nas leituras proclamadas,
com especial ênfase no Evangelho ou na própria Assembleia que respondeu à
convocatória para se reunir, toca, de modo especial, o coração, o pão, que é o
mesmo que foi distribuído aos Apóstolos no Cenáculo e nos encontros que se
seguiram à ressurreição e em que Jesus apareceu. Nesse tempo, eles podiam
prostrar-se diante do Mestre, mas nós não os podemos imitar. O Mestre foi para
o Pai.
É espiritualmente mais profunda a atitude de comer o pão ou
prostrar-se e adorá-lo? Pergunta difícil, embora provavelmente eu esteja a
colocar duas hipóteses que sejam a mesma.
Hoje, muitas pessoas comungam ritualmente (quase diria
alegremente, folcloricamente) e vão à sua vida, mesmo sem chegar ao final da
missa, ou tendo chegado atrasadas ao início, sem razão justificável. Eu afirmo
que essas pessoas perdem a melhor parte.
Deus perdoar-me-á a comparação, mas é difícil imaginar
comparações com sentido quando se fala de Deus e se quer transmitir alguma
mensagem.
Pensa num sorvete, num bombom ou outro alimento de que
gostes. Uma pequena porção. Se comes o bombom com sofreguidão, se bebes o
cálice de Porto de penalti, consegues saborear? Não é tão agradável sentir
durante alguns momentos o vinho generoso nas papilas gustativas ou o bombom de
chocolate a dissolver-se espalhando-se na língua e bochechas?
Quando comungamos e zarpamos para as nossas vidas com a noção
do dever cumprido, não se deve falar de pecado, mas de burrice. Eu preciso
saborear Jesus que quis vir até mim. Preciso de tempo, pois Jesus é muito mais
saboroso e precioso que um bombom ou um cálice de vinho do Porto. Irei ao
extremo de dizer que o mais importante não é a entrada da hóstia na minha boca (e
andam tantos irmãos a perder tempo discutindo se devem comungar na mão ou na
boca, de pé ou de joelhos, futilidades que devem deixar o nosso Pai comum muito
incomodado pelo desprezo que isso representa para com Ele), mas o diálogo
apaixonado (seja humilhando-me pelo meu pecado, seja alegrando-me pelo momento,
seja implorando) que travo com o meu Senhor. Diálogo que pode muito bem ser
absolutamente silencioso, apenas saboreando o momento, como bebé que encosta a
cabeça no peito da mãe ou namorados que dão as mãos ou encostam as cabeças.
Há pessoas que por razões diversas têm comungado
espiritualmente e continuam a fazê-lo. E a Igreja ensina que a comunhão espiritual,
sem ingestão da hóstia, pode ter a mesma validade.
Neste tempo de pandemia provocado pelo vírus SARS-CoV-2,
simplificadamente chamado apenas de Novo Coronavírus, a vida das pessoas sofreu
alterações em todos os aspectos, uns porque adoeceram outros para evitar
contágio do vírus por contacto ou proximidade entre as pessoas. Também nas
igrejas, onde nos reunimos habitualmente para rezar e celebrar, houve
necessidade de se alterarem os procedimentos.
As pessoas mais idosas e as portadoras de doenças que as
fragilizam na resistência ao ataque deste vírus, foram aconselhadas a ficar em
casa, de modo especial a não participarem em ajuntamentos de pessoas. As
igrejas estiveram fechadas de todo.
Escandalizaram-se os fiéis:
- E a comunhão?
Também se escandalizaram os padres, estes ainda para além da
comunhão:
- Sem fiéis, de onde virá o dinheiro necessário à manutenção
dos espaços de culto e demais actividades, cartório, salas mortuárias,
pagamento aos empregados, nas paróquias que os têm?
Vou responder apenas à questão da comunhão. Espero que os
leitores tenham uma fé suficientemente forte para não se escandalizarem com as
palavras com que terminamos.
Naquele tempo, disse Jesus a Tomé: Acreditaste porque viste.
Felizes os que acreditam sem terem visto. (Jo 20,29)
E nós? Precisamos ver a hóstia com os nossos olhos, tocá-la,
ou somos felizes a ponto de acreditarmos que Jesus está realmente presente,
para o adorarmos e permitirmos que venha a nós?
A nossa fé não pode ficar abalada por coisa tão pequena. Não
passamos a ser descrentes, protestantes, simplesmente temos que viver nas
condições que Deus nos proporciona, ou pelo menos que Deus permite.
Quando a pandemia passar, perguntam já muitos, não terão já
ficado esquecidas a Eucaristia e a comunhão? Muito fraca seria então a nossa
fé.
Jesus coloca em causa, algumas vezes, aqueles que têm pouca
fé:
Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e
amanhã é queimada no forno, quanto mais fará por vós, gente de pouca fé! (Lc
12,28)
Jesus respondeu: «Porque tendes medo, homens de pouca fé?»
E, levantando-Se, ameaçou os ventos e o mar, e tudo ficou calmo. (Mt 8,26)
Jesus percebeu e perguntou: «Porque estais a pensar na falta
de pães, homens de pouca fé? (Mt 16,8)
Se somos católicos, temos confiança e fé. Isso nos deve
bastar.
A adoração que podemos fazer em casa, na companhia da
Sagrada Escritura e dos familiares ou pessoas que coabitam pode ser mais
saborosa que a comunhão sacramental na igreja realizada em velocidade de “vamos
a despachar” e cheia de ruído. Esta paz e tranquilidade talvez seja uma
mensagem de Deus, para todos nós católicos, no decorrer desta pandemia.
Talvez, no sentir de alguns de nós, que comungamos e
acreditamos na presença real de Jesus no pão e no vinho consagrados, seja mais
forte a relação estabelecida na adoração, seja do pão comungado, seja na
proximidade do sacrário, que na comunhão propriamente dita. Há na realidade quem
tenha sentido mais a falta de proximidade do sacrário que da comunhão em si. Poder
ficar em silêncio, sem os irmãos, sozinho com Jesus escondido no sacrário é tão
bom… é como estar no Paraíso, na proximidade de Deus. E isso não é possível
nestes tempos em que as igrejas abrem para as missas ou sacramentos e fecham de
imediato.
Nenhum momento é absolutamente mau, porque Deus é
omnipresente e está lá. Assim nós estejamos atentos para o ver e sentir.
© Orlando de Carvalho