sábado, 2 de outubro de 2021

O Demónio do meio-dia


 

O Salmo 91 é a oração confiante daqueles que "habitam sob a protecção do Altíssimo e vivem na sombra do Todo-Poderoso". Eles sentem-se seguros e, portanto, não temem quando o perigo aparece. O salmo qualifica poeticamente o perigo como “terror nocturno, uma flecha que voa de dia, uma praga que desliza nas trevas” e (esta é a última metáfora que me interessa) “uma epidemia que assola ao meio-dia”. Pois bem, se procurar no texto latino da tradução conhecida como Vulgata, feita por São Jerónimo, verá que não se trata de uma epidemia, mas de um "demónio meridiano".

 

Os monges, que rezavam o breviário em latim, encontravam esta expressão todos os domingos nas completas. Sem dúvida, existem muitos tipos de "demónios", principalmente se nos ativermos ao significado de outra das palavras que os designam: diabo. Etimologicamente, o diabo é "aquele que separa", aquele que mente para criar discórdia e desunião, aquele que cria ódio e coloca algumas pessoas contra outras. A sua presença, portanto, é facilmente detectável. O "demónio do meio-dia" cria um tipo especial de discórdia.

Qual é o demónio meridiano? Não é lascívia, como afirma Umberto Eco no seu romance "O Nome da Rosa". É uma experiência feita pelos monges dos séculos IV e V, que viviam nos desertos e descobriram que, ao meio-dia, quando o sol estava mais forte, era difícil continuar a orar. O monge já não sente a alegria de cantar louvores divinos, pois é dominado pela sonolência e caminha triste e mal-humorado. A sua vontade enfraquece, ele perde a alegria. Esse detalhe explica que teólogos medievais, como Tomás de Aquino, tenham identificado o demónio meridiano com azia, falta de impulso, relutância em fazer o bem, preguiça.

As pessoas afectadas pelo demónio meridiano nunca são felizes, vivem inquietas, sempre cansadas, sempre fugindo de suas responsabilidades: precisam mudar de casa, de trabalho, de lugar, de amigos. Nada os satisfaz, tudo os aborrece. Segundo o Papa Francisco, uma das tentações que ameaçam os agentes pastorais é a azia, o cansaço, a desmotivação, que se manifesta na busca de projectos inatingíveis, em não aceitar a evolução onerosa de processos e em querer que tudo caia do céu, na falta de paciência e não saber esperar. E também em governar com base em documentos, prestando mais atenção aos seus "roteiros" do que às pessoas. «A ansiedade imediata destes tempos, conclui Francisco, faz com que os agentes pastorais não tolerem facilmente o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica, uma cruz».

Fonte:

http://nihilobstat.dominicos.org/articulos/el-demonio-del-mediodia/#.X1ZV-gkMDqs.twitter

Autor: Frei  Martín Gelabert Ballester, OP

 

Sem comentários:

Enviar um comentário