sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Comunhão sacramental ou espiritual



 

Vem, Deus Menino, consolar os teus adoradores



Domingo de Reis estive no hospital a distribuir a sagrada comunhão a doentes acamados. Foi um dia especial, uma vez que celebrando a manifestação de Jesus aos povos e nações, através da manifestação aos magos que tinham vindo para adorar o Filho do Altíssimo, eu era instrumento da manifestação do mesmo Jesus a pessoas especiais, aos doentes que ali estavam internados.
Como sempre, levava comigo o relicário com as espécies consagradas e o missal para apoio na celebração junto de cada doente. Nesta ocasião especial, eu levei também uma imagem do Menino Jesus.
O pão consagrado é a plenitude completa e absoluta de Deus, e por isso os doentes pedem para o receber. Tal não obsta, a que um gesto de ternura possa associar-se à plenitude divina. Como qualquer pessoa, os doentes gostam sempre de um gesto de calor humano, um toque, uma palavra, uma estampa com um santinho ou uma oração, uma pergunta que demonstre o interesse pelas suas melhoras.
Nas missas festivas de Natal, manda a tradição, que o Menino seja exposto para que os fiéis o possam beijar no final da celebração.
A todos os doentes a quem distribui a comunhão, mostrei a bela imagem e perguntei, antes de abandonar o quarto, se queriam beijar o Menino Jesus. Perguntei o mesmo às outras pessoas que estavam nos quartos e mostravam atitude de sintonia com o momento sacramental. Há sempre pessoas que, mesmo não participando activamente na celebração, fazem silêncio respeitoso e pessoas que adoptam uma atitude ruidosa ou de algum modo desrespeitosa. Dói a alma quando os filhos do doente são as pessoas que se mostram mais desinteressadas ou incomodadas ou saem do quarto para não terem de presenciar a comunhão do seu velho pai ou da sua velha mãe. A comunhão levada à cama, ou ao sofá, onde o doente está, serve assim de edificação para alguns dos que assistem e de desgraça para outros que manifestam uma certa atitude anti-sacramental.
Além das sagradas espécies e do Missal, levei também uma imagem muito bela do Menino Jesus. Em cada cama, perguntei às pessoas, no final da breve celebração, se queriam beijar o Menino.
Em determinado quarto estavam dois doentes: o senhor que pedira a comunhão e outro que participou na celebração com o à vontade próprio de quem participa habitualmente na missa, embora não tenha querido comungar, porque não se considerava preparado. Escutámos as leituras, rezámos o Pai Nosso, pedi autorização para dar o abraço da paz, que é sempre recebido em inspirada alegria. Um comungou a hóstia que lhe estendi e o outro não, como já referi.
No final, o comungante declinou, com algum ar de desdém beijar a imagem do Deus Menino. Não julgo porque não conheço as razões e porque nem tenho o direito de julgar a pessoa que não quis beijar a imagem. Há muitas pessoas que procedem assim nos nossos dias, ou porque estão com pressa para ir embora no final da missa, por acharem uma falta de higiene todos beijarem a imagem que se transforma num foco de contaminação ou simplesmente porque não entendem que significado possa ter beijar uma imagem. Acontece que o outro doente daquele quarto, o que não estava preparado para comungar, respondeu afirmativamente e com ar radioso à minha proposta para beijar o Menino Jesus.
Eu fiquei a meditar nestas coisas. Pareceu-me que houve duas comunhões diferentes; e caberá a cada um de nós valorizá-las, eu que tudo presenciei e quem ler este meu relato. Uma comunhão sacramental da hóstia consagrada, por um doente e uma comunhão espiritual por parte do outro doente. Um comeu o pão da vida e renunciou o beijinho à imagem do Menino; o outro não pode comungar, mas alegrou-se ao encostar os lábios àquele Menino Jesus de loiça, no qual terá pressentido a proximidade do Deus Menino, a mais óbvia proximidade que lhe era permitida.
A última etapa desta longa visita foi uma senhora que já conhecia, e que há muito tempo está internada nos Cuidados Intensivos e com muitas limitações. Parece-me que dificilmente poderá sair daquela unidade de cuidados. Não pode deslocar-se sozinha, está sempre deitada ou sentada numa poltrona, não se mexe do pescoço para baixo, embora não esteja paralisada, como a seguir veremos, fez traqueotomia, fala, mas apenas se notam os movimentos dos lábios, porque não emite som. Aqui surge também uma das minhas limitações: não sou capaz de ler nos lábios. Ela ouve-me, mas eu tenho de adivinhar o que ela me diz. Com boa vontade, é apenas uma questão de tempo para nos entendermos, ora a senhora tem toda o tempo da vida dela e eu se não estivesse disposto a oferecer o meu tempo, não ia ali.
Ao entrar no quarto da senhora, vesti a roupa descartável que é imposta naquela situação e comecei a armar a minha tenda litúrgica: o corporal, o relicário, o missal popular e a imagem do Menino Jesus, em tamanho grande. Estava eu nesta labuta de preparação para a celebração e a senhora começou a bater com a parte de trás do calcanhar direito na base da poltrona em que estava sentada. O pé parecia tremer-lhe como a um doente de Parkinson, mas com um ritmo e uma intensidade quase violentos. Percebi que a senhora tinha piorado desde a minha última visita. Mas a coisa agravava-se e até já pensava em falar com um dos enfermeiros, eis senão começo a perceber que o olhar dela variava entre mim e, pareceu-me, a imagem. A violência e o ruído faziam parecer que se tratava de um casco de algum animal, uma cabra, um cavalo, cada fez mais forte e frequente. Ela bem mexia a boca, mas eu não entendia coisa alguma e o que ela tinha para me dizer era mesmo urgente. Continuava a olhar para mim e para a imagem ansiosamente.
- D. Teresa, quer beijar o Menino? – Perguntei.
Os olhos encheram-se de alegria e parou de bater o pé, com um movimento do pescoço, atirando o rosto para frente, tanto quanto conseguia.
- No final, depois da comunhão, beija o Menino. Sim? – adiantei.
Recomeçou a escoucear. Com força e a abanar a cabeça, dizendo que não. Os lábios pareciam dizer, mesmo a um ignorante de leitura labial como eu:
- Agora! Agora!
- Quer beijar já o Menino?
Acenou com a cabeça afirmativamente e aproximei-lhe a imagem. Foi um longo, terno e apaixonado beijo. Que ternura, meu Deus!
Celebrámos normalmente e distribui-lhe a partícula consagrada. No final, levei novamente com gentileza o Menino Jesus junto aos lábios da Teresa. Foi uma grande sucessão de pequenos beijos, muitos beijinhos com grande ternura, numa intimidade que me fazia sentir mal por estar ali a segurar imagem. Senti-me intrometido, a perturbar a privacidade daquele momento. Mas eu era a ferramenta que Deus escolheu para aquela ‘aparição’ à Teresa.

Grandes coisas fez o Senhor neste dia
No coração daqueles que o amam.
Almas glorificaram o Senhor
E espíritos alegraram-se pela sua presença
No Pão, na Palavra e pela imagem do Salvador.
Vi gente sentir sobre si o olhar do Senhor
Vi gente a sentir-se bem-aventurada.
Contemplei a presença do Senhor
Anunciada por imagem
Fazer maravilhas.
A misericórdia do Senhor a consolar corações atribulados.
Amém. Amém. Aleluia!

Orlando de Carvalho

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Vítor





Quando conheci o Vítor, há uns anos atrás, antipatizei com ele quase de imediato, uma antipatia como certos amores, à primeira vista. O rapaz era inconveniente, vestia-se de modo estranho, falava alto, gesticulava muito, ria-se ruidosamente. Ele era particularmente inconveniente e mexia nos seus interlocutores. Eu nunca tinha travado proximidade com cegos. Foi a minha primeira experiência. Todavia, ainda que sendo cego, devia comportar-se com a mesma dignidade das outras pessoas, se queria ser admitido ao convívio, dizia a minha voz interior.

Foi na comunidade paroquial de S. Domingos de Benfica que nos conhecemos onde, entre muitos outros místeres, eu era catequista. O convívio com o Vítor foi inevitável, até porque nunca exclui pessoas dos meus círculos baseado em gostos, simpatias, raças, debilidades. Fui mesmo catequista do Vítor. Percebi lentamente que o mundo do Vítor era muito diferente do meu, em certa medida, eu tinha tudo e ele não tinha nada. Ele fazia um esforço sobre-humano para manter o diálogo e o convívio. Comecei a perceber como devia ser triste ser cego, sem luz, sem cor, sem meio de defesa contra qualquer agressor, pessoa, mosca ou objecto a cair na sua direcção.

Senti inevitável uma aproximação e um estender de mão.

O Vítor continuava a ser aborrecido nas suas conversas e eu sentia um remorso enorme por o achar aborrecido, lutei contra mim: que catequista seria eu sem me doar todo àquela criança que já se tornara adolescente?

Quando o tempo chegou e tive Vítor no meu grupo de catekese passei a entendê-lo de modo mais cristão, aprendi muito acerca dele, em especial o que não era visível, por causa da sua impertinência. Eu, que nunca tinha tido contacto com um cego, comecei a entender o mundo dos invisuais.

O que me parecia presunção, percebi depois que não passava de uma forma de os cegos, neste caso o Vítor, não se sentirem inferiorizados. Ele usava constantemente o verbo ‘ver’. E falava-me das cores. A cor do meu carro, as cores das roupas, cores de tudo e mais alguma coisa. O Vítor memorizava as cores e outros dados das conversas que tinha ou escutava e esforçava-se por se sentir à altura de dialogar, sem que o achassem ‘o coitadinho do ceguinho’.

O Vítor precisava de me tocar para me ‘ver’, para saber como eram as barbas que tinha ouvido dizer que eu tinha, para ‘ver’ as fisionomias das pessoas. À medida que ganhava mais intimidade com as pessoas, perguntava-lhes pormenores sobre o ambiente e a paisagem, sobre como eram as pessoas. O rapaz não sabia se estava bem abotoado ou se tinha nódoas na roupa. Para além destas limitações, havia outras questões condicionantes da sua vida e da imagem que transmitia.

A família era grande e parecia que havia sempre alguém para ‘cuidar’ do Vítor, mas na realidade não era assim. O pai era um militar reformado, bêbedo, mal formado e violento. A mãe abandonara o lar e juntara-se com outro homem, devido à impossibilidade de aturar o marido. A mãe tinha, pois, partido, o pai tinha outros interesses, a irmão mais novo, era… mais novo, as irmãs já estavam casadas.

Eu criei amizade com o Vítor. Ele foi para retiros da catekese com o restante grupo, sob a minha custódia. Preparado por mim, fez leituras em missas, a partir de uma Bíblia em Braille, inclusivamente na Vigília Pascal.

O tempo passou. O Vítor criou amizade com outros jovens cegos. Passava fins-de-semana com esses novos amigos que conhecera no Centro para Cegos que frequentava. A vida afastou-nos, perdi-o. Lembro-me muitas vezes daquele jovem cego, sinto remorso pelos sentimentos antipatia e aborrecimento que tive em relação a ele e de que nunca ninguém suspeitou. A partir de certo momento, deixei completamente de o ver. A dificuldade que tive em entender como uma pessoa tão limitada podia ser tão alegre, mantenho-a quase integralmente.



Um dia, conversávamos, e o Vítor falou-me da sua doença. Ele conseguia ver sombras, ou pelo menos distinguir a luz da escuridão. O mal teve origem no seu parto prematuro e na sequente estadia em incubadora. A doença chama-se retinopatia de prematuridade e é agravada pelas altas de concentrações de oxigénio fornecidas ao bebé. Era seguido há muito tempo (desde sempre?) num instituto oftalmológico famoso, em Lisboa, e o médico dissera à família que havia uma cirurgia que podia melhorar a situação, mas que apenas podia ser feita na fase adulta do doente. Inexplicavelmente o início dessa fase adulta ia sendo adiado dos 12 para os 15 anos, para os 18, e não se via fim. O Vítor contava isto com alguma tristeza, mas com um sorriso no rosto.

Poderia eu ajudar o Vítor? Ele já tinha atingido a idade adulta legal, os 18 anos. Propus acompanhá-lo a uma consulta ao Instituto Oftalmológico, ao seu médico. O jovem ficou encantado com a ideia e o pai não se opôs. No dia e à hora marcados, lá fomos. Tudo aconteceu de modo muito triste. O médico comportou-se como perfeita abécula. Não foi capaz de nos dizer que hipóteses havia de fazer a tal cirurgia, ou outro tratamento, se devíamos continuar ou não a pensar no assunto, enfim, uma nulidade médica e humana. Nem foi capaz de dizer que o assunto o ultrapassava e que ignorava o que responder. Concluiu que o Vítor devia continuar a passar lá na consulta. Falei-lhe na disponibilidade para pagar um tratamento caro, até porque fazíamos parte de uma comunidade (paroquial) que poderia ser suscitada a colaborar numa angariação de fundos. Nesta parte o médico mostrou-se impressionado: sim, é bom que vão arranjando dinheiro, se puderem. Mas nem chegou a dizer para quê. Uma conversa de generalidades, como se de café fosse.

Voltámos da consulta tão pobres e ignorantes como tínhamos ido. Contudo, algumas coisas mudaram. O pai do Vítor mudou de ideias e ficou zangado por alguém o estar a substituir no que entendia como funções paternais. A habitual falta de entendimento do senhor: ele concordara e o filho já era maior.
Mas tudo foi há tanto tempo! Anos! Penso muitas vezes no Vítor, mas que posso fazer?


Até há uns dias.

Era um fim de tarde natalício, escuro como noite, e com poucas pessoas na rua por causa do frio, do vento, da chuva, já nem havia a motivação das compras, porque já passara o dia 25. No passeio largo em que eu caminhava, ao longe, percebi um casal de cegos. Bem ou mal, tenho sempre muito cuidado quando encontro cegos, no sentido de não lhes perturbar o caminho que eles normalmente tão bem conhecem. À medida que nos aproximávamos, pareceu-me que era o Vítor com uma jovem mulher. Caminhavam alegre e desajeitadamente, sem o sentido das conveniências, como eu sempre conhecera o Vítor. Além das bengalas para cegos, cada um com a sua, levavam alguns sacos e malas. Conversavam alegremente, naquela alegria tão difícil de entender. Até estarmos os três sozinhos naquele passeio imensamente largo. Eu via-os e sabia que eles ali estavam, mas eu permanecia quieto e calado, indeciso. Queria falar, mas hesitava: que coisas velhas iria eu desenterrar? Eles podiam seguir o seu caminho sem nunca imaginarem o encontro que eu tivera. Sim, que eu tivera, porque eles não tinham tido encontro algum, eles não viam, nem me viam. Mas que justiça era esta que eu me propunha traçar? Que cobardia? Que traição, esconder-me nas trevas íntimas de um cego?

Aproximei-me, já depois de nos termos cruzado, voltando atrás. E eles em alegre conversa, gesticulando e caminhando apoiados no saber das suas bengalas. Em tom quase inaudível, pouco mais que balbuciei:

- Vítor.

Pensei se devia repetir, porque o som tinha saído mesmo muito baixo e o casal conversava animadamente. Mas só durou um instante esse pensamento. Detiveram-se os dois. Enquanto ele se dirigiu um passo na minha direcção, ela revelou uma fisionomia terrivelmente assustada. Ele abria os olhos em tom de interrogação. Comecei a falar, na expectativa que o Vítor ainda me reconhecesse a voz, mas já tinham passado muitos anos e ele simplesmente interrogava com o olhar. Vi como a mulher se sentia indefesa, como presa perante o predador oculto, como vítima perante o assaltante que vai saltar da escuridão. Rapidamente encurtei aquele momento de dúvida, surpresa e medo.

- Vítor, sou o Orlando, da catequese. Conversámos breves instantes. Foi talvez um pouco de azeite na lamparina de uma amizade antiga para que não morresse.

- É a minha companheira, repetiu várias vezes o Vítor.

Eu não estava amedrontado, como ela, mas tão surpreendido como eles os dois. Quis perguntar mais sobre a vida dele, onde e de que vivia, sei lá, mas eu ainda permanecia sob o efeito da surpresa quando nos afastámos e separámos. Abracei o Vítor e toquei a mão da sua companheira (como se chamará?) com a delicadeza de que fui capaz. Eles prosseguiram alegres como eu os tinha avistado e conversando e eu espantado com o que me acontecera. Depois, pensei que tinha sido um encontro feliz.

Apenas vaidade esse sentimento de felicidade!

Contei a minha história a quem conhecera, como eu, o Vítor. E perguntei o que não lhe tinha perguntado a ele por incapacidade de reacção.

- Que faz ele? Onde mora? É sabido?

- O Vítor pede esmola no Metro.

Não! Não! Não! Aiiiii… que dor, que murro senti nas entranhas. Uma vontade de vomitar. Culpa, remorso.

Dar catequese a alguém torna-nos uma espécie de pais adoptivos ou padrinhos da pessoa, mesmo quando se trate de adultos. Este caso é de uma pessoa, de um jovem adulto, que desde o berço parece ter sido esquecido e abandonado pela fortuna. Não posso deixar de sentir a minha culpa, embora sem culpa, como sinto a culpa da sociedade em geral, e da comunidade paroquial em que o Vítor estava inserido, em particular. Poderá haver culpa pela cegueira da parte dos médicos que o assistiram na maternidade, ou nem mesmo esses. Os acidentes e as doenças, as mortes não têm que ser culpa dos médicos, fazem parte do percurso de vida dos seres vivos.

Vivo numa sociedade triste e má. A falta de assistência a quem nada tem, a quem é português, nascido em Portugal, filho de um sargento das Forças Armadas, filho numa família desordenada, faz de todos nós culpados. Somos maus cidadãos, maus cristãos e inacreditavelmente um Estado com tanto dinheiro desaparecido em casos de corrupção, não acode os filhos mais desditosos. A pedir esmola como se fosse um preguiçoso ou um profissional da vadiagem por opção? Terá o Vítor (e todos os vítores deste país) de esperar pela misericórdia de Deus? Nós conseguimos ser assim tão frios? Acolhemos e vamos buscar pessoas tão longe e viramos a cara para o lado em relação ao que está tão próximo de nós, que lhes podemos chamar o nosso próximo?

É preciso descobrir o Vítor, onde quer que esteja e ajudá-lo. Vais ficar a pensar nisto ou vais fazer alguma coisa?

Orlando de Carvalho

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Abandonar o próximo à sua sorte








O livro dos Actos dos Apóstolos (4,32ss) explica como viviam os primeiros cristãos:

[A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles gozavam de grande aceitação.

Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e colocavam-no aos pés dos Apóstolos; depois, era distribuído a cada um conforme a sua necessidade.]


Diversos grupos eclesiais e associações de fiéis têm tentado viver de acordo com esta memória da Sagrada Escritura. O que é tão difícil nos nossos dias como foi no templo dos Apóstolos, pois logo a seguir a estes versículos vem o relato de um tal Ananias que tentou enganar os demais, fazendo-se passar por benemérito.

Eu tenho alguma dificuldade em entender este texto de modo literal, uma vez que o cristão deve estar virado para fora, isto é, partilhar com os outros e não apenas com os do seu grupo. Maior é a dificuldade que tenho em entender quando nem esta proximidade de vizinhança e a comunhão de sentimentos e credo religioso conduzem à partilha espiritual e material.

Penso, em primeiro lugar, nos padres idosos que prescindiram de formar uma família onde poderiam encontrar calor e acolhimento, ao longo da vida, e cuidados no tempo da velhice. Penso nos padres que ao Domingo presidem à missa, quantas vezes às várias missas, nas diversas comunidades que foram entregues ao seu pastoreio e, no final da celebração enviam os fiéis – Ide em paz – antes de eles saírem a correr e vão almoçar sozinhos, porque todos os outros têm as suas famílias e têm que se despachar, nem tempo têm para convidar o padre, que vai almoçar sozinho.

Penso nas pessoas que se dedicam a uma paróquia ou a uma comunidade e depois são ignoradas ou ostracizadas pelos que deveriam ser o seu próximo.

Penso nas lutas dentro das comunidades cristãs. Como os grupos se afrontam, por exemplo, quando há uma alternância de pároco. Uns guiados por sentimentos de seguidismo, outros tentando fortalecer os seus grupos, ditos eclesiais. Penso como alguns preferem prejudicar os da sua comunidade, negociando com estranhos, com receio que os da sua comunidade, mas não do seu grupo, adquiram força ou preponderância, que sejam considerados mais santos!

Penso nos que se dedicam à maledicência, ao boato e ao falso testemunho, sem terem provas, muitas vezes sem objectivos, apenas por leviandade, e assim destroem vidas de irmãos.

Penso num homem leigo que dedicou parte da vida a uma comunidade paroquial e termina a vida sozinho numa ala hospitalar sem qualquer cuidado da comunidade que serviu.

Penso nos padres e leigos caluniados dentro das suas comunidades e penso nos que são injustamente encobertos dos seus crimes.

Cristão não é o que batendo a mão no peito grita a sua fé eterna e inabalável. Cristão é o que proclama o Evangelho e mostra o Reino dos Céus com o testemunho da sua vida quotidiana.

Penso nas famílias das crianças da catequese que, convencidas que os catequistas são trabalhadores remunerados, nem uma flor oferecem a quem tanto dá aos seus filhos ou netos.

Penso que a Nova Evangelização tem de prosseguir, dentro das mais básicas comunidades eclesiais.

Cada comunidade cristã, família, paróquia, associação, congregação, ordem religiosa, cabido, tem de ter como ponto de partida e objectivo a evangelização, ser comunidade evangelizadora que se evangeliza.

Como pode ser possível um fiel dentro da sua comunidade não ter dinheiro para comer e alguns irmãos terem tanto para esbanjar? Como pode acontecer um fiel cegar ou partir as pernas e ter de pedir esmola na rua, enquanto a paróquia e os irmãos paroquianos gastam em luxos? Como é possível a paróquia e outras comunidades eclesiais marginalizarem os seus irmãos que são diferentes, direi mesmo infames, (porque não?), espicaçando-os como se fossem bestas, em vez de lhes estenderem a mão, de os ajudarem, de os edificarem.

Como é possível alguém dizer-se cristão e usar a Igreja para ganhar poleiro, espezinhar os irmãos, abafar a Palavra do Evangelho e a dos pobres e mais frágeis, nos quais vive de modo peculiar Nosso Senhor Jesus Cristo?

É tempo de repensarmos a nossa vivência de cristãos e de católicos. Conduzirmos a mudança dos tempos nas comunidades de base, ao mesmo tempo que o papa o faz na Sé Apostólica.

Orlando de Carvalho