quinta-feira, 15 de março de 2018

Orar celebrar adorar









Orador é conferencista, é aquele que prefere a oração ou discurso. Orar é falar e falar com alguém ou para alguém. Orar não é meditar ou reflectir. A oração é dirigida ao que está exterior a nós e não a nós mesmos.
A palavra rezar é sinónimo, muitas vezes, de orar, mas tem outros sentidos. Uma reza pode ser algo muito diferente de uma oração. Ou não. Rezar tem um sentido místico que não está obrigatoriamente no orar. Mas também tem um sentido mais sombrio e mesquinho, de inferior dignidade. Falamos das rezas das bruxas, mas não de orações de bruxas. Dizemos que uma pessoa que murmura está a rezar, mas não a orar. Com menos frequência usa-se também a palavra rezar para designar o que faz o orador, o conferencista. Deixemos, por agora o termo rezar e centremo-nos em orar, pois esta palavra não se aplica a relações com bruxas, feiticeiros, demónios e outros que tais.
O orador que está perante uma audiência, conjunto de ouvintes, deve assumir a posição de pé, por respeito pelos ouvintes, para se fazer ouvir melhor, para chamar as atenções sobre si e sobre o seu discurso, porque estando de pé as suas faculdades intelectuais funcionam de modo diferente, mais eficaz, mais acutilante que se estiver sentado. Nesta posição (sentado), os músculos acomodam-se e os neurónios seguem o seu exemplo, relaxando-se na sua actividade racional. Quem está de pé a discursar tem de se aplicar para manter a posição erecta e essa sua aplicação vai reflectir-se na concentração dos neurónios, o discurso será mais inteligente.
Quando se ora, ora-se para alguém ou a alguém. Ora-se para uma audiência ou ora-se a alguma pessoa. Pronuncia-se um discurso para uma audiência ou conversa-se com alguém. Ao discursar perante uma assembleia, coloco-me à mercê do seu julgamento acerca das minhas palavras, do seu aplauso e da sua pateada. Ao orar a alguém não espero ser julgado, mas escutado; as minhas palavras não conduzem necessariamente a uma avaliação de si mesmas e de mim.
Ora a Deus, louvando-O, agradecendo-Lhe ou pedindo-Lhe, seja o que for. Também posso orar a outras entidades do universo celeste, embora não do mesmo modo que o faço a Deus. Deus pode decidir, logo ou mais tarde, sobre a minha petição, se for esse o caso. Se orar a Maria ou a algum santo reconhecido pela Igreja, a minha oração é a pedir a sua intercessão, que seja meu intermediário junto de Deus, apresentando-lhe o meu louvor, a minha petição ou transmitindo-Lhe a minha gratidão. Na oração pública apenas devo invocar os santos canonicamente reconhecidos pela Igreja. Na oração particular, posso invocar qualquer defunto que me pareça estar junto de Deus pelo conhecimento que eu, de algum modo, tenha do que foi a sua vida terrestre ou me tenha sido transmitido, quiçá por quem tenha já obtido graças divinas através dessa pessoa já finada. Posso orar, ou rezar, a Nossa Senhora de Fátima, aos Pastorinhos de Fátima ou à minha mãe, pedindo a sua intercessão junto de Deus por alguma causa. Ou posso orar, ou rezar, directamente a Deus. Claro que se a minha mente estiver devidamente esclarecido sobre esta questão, ao rezar ao pastorinho Francisco de Fátima, estou inequivocamente a rezar a Deus por sua intercessão ou a rezar ao Francisco pedindo-lhe que interceda junto de Deus pela minha causa.
Tratemos agora das palavras ‘orar’ e ‘oração’ apenas no sentido religioso, e esqueçamos o orador-conferencista. Quem está a orar, está, pois, a rezar a Deus ou a algum intermediário para Deus. Esta oração é um diálogo, com dois interlocutores. O fiel que ora e Deus, ou algum dos seus santos. Se bem que eu possa estar a dialogar com duas pessoas ao mesmo tempo, por exemplo, a pedir a ajuda junto de Deus dos pastorinhos Jacinta e Francisco. Continuarei a falar de diálogo – a dois – pois os meus interlocutores actuam ambos como agentes de Deus a quem me dirijo, como se fossem um só.
Então, se eu reunir um grupo de três ou quatro pessoas e orarmos em conjunto, a uma só voz? Continuará a ser oração, sendo nós tantos? E se enchermos uma sala, uma igreja de gente a rezar a uma só voz a pedir… a cura de um doente, a paz no Médio Oriente?
Nestes casos, podemos considerar que se trata de uma oração onde há uma comunhão orante de intenção. Mas também podemos considerar que se trata de uma celebração. E a celebração poderá ter um carácter mais popular ou mais litúrgico.
Quando um grupo de pessoas se reúne para ‘rezar’ o terço, numa casa particular, numa igreja ou na Capelinha das Aparições, em Fátima, fala-se da recitação do terço, da oração do terço, mesmo da reza do terço, mas parece-nos que a expressão mais correcta deva ser celebração do terço. As pessoas reúnem-se para celebrar – festejar – o rosário de Maria. Há um esquema pré-definido que é seguido por todos (o esquema do terço) e todos a uma só voz, mas com muitas cabeças louvam, agradecem e pedem, coisas em comum, e coisas que estão apenas no coração de quem faz essa invocação.
Para grande parte dos casos, podemos seguir o conselho evangélico: orar no silêncio do quarto, celebrar onde dois ou três se reunirem em nome de Jesus.
A grande celebração dos cristãos é a eucaristia. Existe um esquema que é seguido nestes encontros de fiéis, com várias partes e que compreende várias orações, umas mais individuais outras absolutamente comunitárias: o acto penitencial tem que ter matriz individual, a oração pela paz é marcadamente comunitária, tornando-se mesmo celebrativa quando os fiéis alegremente vivem a paz de Cristo, recebendo-a e doando-a uns aos outros, porque Cristo está em cada um e em todos.
Faz muito sentido recordarmos o rito dominicano para este momento da eucaristia. O presidente da celebração aproxima o rosto do cálice que contém o vinho já consagrado em sangue e beija o cálice. Só depois de ter deste modo recebido a paz do Ressuscitado ele exclama: Saudai-vos na paz de Cristo! Paz que ele já distribuiu por todos os membros da Assembleia.
Não devemos confundir oração com celebração, mas também é diferente de adoração. Quando estamos em adoração, a nossa atitude é a de contemplação e humilhação total. O nosso pensamento está em Deus, só em Deus e em nada mais que Deus. Nada nos deve perturbar nem desviar a nossa atenção e o nosso pensamento de Deus. Se sentimos comichão ou dor, ignoramos, porque a nossa atenção está em Deus, só sentimos o Senhor, só O vemos, só o cheiramos, todo o nosso pensamento está absorvido por Ele. De um modo geral, a posição mais condizente com o estado de quem está em adoração é de joelhos ou em prostração. Mas a partir do momento em que nos desligamos do mundo, para nos concentrarmos nEle e O adorarmos, a posição passa a ser irrelevante. Lembro-me de uma criança que fazia um esforço enorme para permanecer de joelhos, ignorando a dor que o contacto com o chão enrugado lhe estava a causar. Na adoração, configuramo-nos com Deus, deixamo-nos absorver por Ele, porque isso basta para nos satisfazer. O diálogo é absolutamente desnecessário. Trata-se de um êxtase. Pensando no Cântico dos Cânticos, este êxtase é verdadeiramente o clímax, expresso logo nos quatro primeiros versículos, mas também em todo o livro. A adoração é um enamoramento tão apaixonado como o descrito neste livro da Sagrada Escritura.[1]
Sendo a oração um diálogo em que a pessoa fala e escuta o que o seu interlocutor responde, através da escuta silenciosa, porque ele não emite sons, a oração é como uma epístola, como uma carta. E do mesmo modo que há regras para escrever uma carta, que podem ser usadas ou não, também as há para a oração.
Dirigida a quem:
          Senhor,
Não se pergunta a Deus como vai, mas sublinha-se a sua importância para nós, acrescentando um subtítulo
          Que criastes os Céus e a terra e concedestes o seu domínio a nós, criaturas humanas, para que zelássemos por tudo, como recomendarias também aos trabalhadores da Parábola dos Talentos.
Apresentamos o motivo da conversa
          Olho para os acontecimentos do Médio Oriente e só vejo guerra, mal-estar, sofrimento e a Tua ausência nos corações de todas aquelas pessoas. Olho para a minha família e observo o clima de guerra entre mim e a minha irmã. Olho para os acontecimentos da minha vida, fico revoltado, em guerra comigo mesmo.
A petição
Debruça-te sobre mim, a minha família, os povos, em especial do Médio Oriente, e envia a tua paz, molda e amacia os nossos corações, enche-nos da tua paz.
Conclusão, conforme a pessoa a quem esta oração for dirigida
a)   Tu, que vives e reinas pelos séculos sem fim.
b)   Vós que sois Deus com o Pai , na unidade do Espírito Santo.
c)    Tu, que és Deus na unidade com o Pai, para todo o sempre
Deus provavelmente não mostrará ao sujeito nenhuma manifestação de acordo ou desacordo, mas este deve continuar a insistir, como Jesus ensina, até conseguir (no caso do nosso exemplo) a graça da Paz.
Uma celebração pode seguir variados esquemas. O capítulo 8 do Livro de Neemias é sempre uma referência muito útil, quando bem interpretado, pois a própria missa segue este esquema. Devemos recordar que o rosário em comunidade, ou terço, é uma celebração, tal como a via-sacra. Como já dissemos, as celebrações incluem muitas vezes orações proferidas pelo povo, por quem preside e individuais.
Quando, durante a missa, o povo responde ‘Ouvi-nos, Senhor’, se estiver com atenção, ouviu a proposta que foi feita pelo leitor ou pelo diácono e a resposta é a oração, do mesmo modo que o Amém, em resposta a um convite orante do presidente.

Orlando de Carvalho        



[1] A amada: Beija-me com os beijos da tua boca! Os teus amores são melhores do que o vinho, o odor dos teus perfumes é suave, o teu nome é como óleo perfumado a escorrer, e as donzelas enamoram-se de ti... Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos, e exultemos! Alegremo-nos em ti! Mais que ao vinho, celebremos os teus amores! Com razão se enamoram de ti...



Sem comentários:

Enviar um comentário