terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A capa de S. Martinho à minha porta

 Artigo na publicação In Via, da Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina

Este ano, senti de maneira especial a lenda da capa de S. Martinho. Tantas vezes narrei a história, por escrito e de viva voz, e também dirigi a sua encenação em ambientes privados ou de catequese, mas neste 2020 foi muito diferente.

Instalado sob a arcada da minha habitação, está instalada a outra personagem da história: o vagabundo. Sem abrigo e sem nada.

Segundo me contam, no Verão, instalou-se no jardim aqui em frente um sem-abrigo, mais concretamente nos bancos do jardim. Quando ficou sem telhado, isto é, quando chegaram as primeiras chuvas, ele atravessou a rua e instalou-se debaixo do meu prédio. Já aqui viveram uma senhora, mas tinha casa por perto, e só passava aqui o dia. Bebia, desde o nascer ao pôr-do-sol, e tratava mal quem lhe oferecesse comida. Tratava mal quem passava, ofensas sem nexo de pessoa ébria, vomitava, até descia as calças e urinava para cima dos carros estacionados. Talvez na sua vida tenha havido alguma mudança e ela desapareceu.

Artigo no Jornal O Varzeense, da Paróquia de Vila Nova do Ceira

Este homem, que parece velho, tem 50 anos. E mau aspecto. Logo, não arranja trabalho (será que o quer), não tem reforma e não parece ter apoios da Segurança Social ou outra entidade. Não trata muito bem quem passa. O vinho faz destas coisas, a ofensa gratuita é fácil.

Recusa as ajudas que lhe são oferecidas. Dorme enrolado em caixas de cartão. Alguém lhe deu um cobertor bom, grosso, porque tem havido noites muito frias. Serviu durante um dia e foi para o contentor do lixo que está do outro lado da rua.

Como se pode dar metade da capa, como S. Martinho ensinou, a quem não a quer aceitar?

Se estive incomodado no 11 de Novembro, como sentirei esta situação na noite de 24 de Dezembro, se a situação se mantiver?

Escrever este texto não o vai ajudar. Rezar por ele, sempre será uma intercessão junto de Deus. Mas ajudá-lo mesmo?

Quantas pessoas existem em situações paralelas, em vida de carência, doença, sofrimento, demência e recusando qualquer auxílio, para além de álcool?

Artigo no jornal Cruz Alta da Unidade Pastoral de Sintra

Lembremos estes irmãos durante os tempos de Advento e Natal que se aproximam e especialmente quando estivermos a desfrutar da Consoada no aconchego dos nossos lares, provavelmente todos ainda em contexto de pandemia e longe dos habituais convivas. A demência e a desorientação pessoal também conduzem, por vias indirectas, ao sofrimento e à morte.

Que todos eles possam experimentar a alegria dos pastores de Belém. Cada um de nós faça a sua parte para ajudar os irmãos, todos, por todo o mundo, a sentir a felicidade que é ter parte, de alguma forma, na Encarnação. Como os anjos, anunciemos a alegria que o é, será, para todos os homens.

 

Orlando de Carvalho

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