segunda-feira, 18 de maio de 2020

Deus e a Pandemia


A Pandemia vem de Deus?
 
Tantas vezes chamamos por “meu Deus”, o que é uma coisa intrinsecamente boa, porque estamos a invocar o nome de Deus, pedindo-lhe ajuda, e acabamos por não reparar quando Deus vem ao nosso encontro e nos quer dar a mão no caminho para a santidade.
Com alguma ironia, direi que chamamos por Deus, imploramos a sua ajuda, de maneira directa ou pedindo a mediação de sua Mãe ou de algum santo, mas acreditamos pouco em Deus, nem sequer o queremos por perto, muitas dessas vezes. Chamamos por Deus e parecemos reconhecê-lO como o Criador, a Sabedoria, a Bondade, mas exigimos que Ele se mantenha ao comando do Cosmos, do Céu e da Terra, cumprindo escrupulosamente os nossos desejos, que deste modo se transformam nas nossas ordens a Deus. Não nos convém que a vida siga de acordo com os planos de Deus, a não ser que eles coincidam com os nossos projectos e desejos.
Se acreditássemos verdadeiramente em Deus, no seu Amor e na sua Sabedoria, procuraríamos entender o Cosmos como ele é e não transformar a Obra de Deus ao nosso jeito. Nem sequer nos incomodamos a tentar perceber a divina perspectiva, tão grande é a convicção que temos de sermos donos da verdade, conhecedores de toda a ciência. Afinal, estamos constantemente a trepar para chegarmos em primeiro lugar. Numa louca busca da nossa comodidade individual, do nosso bem-estar, julgamos que a justiça apenas se realiza se temos poder, força e dinheiro. E saúde.
Deus sofre quando se depara com os nossos erros, as nossas asneiras, as nossas mentiras, os nossos pecados. Sofre quando nos estende a mão para nos elevar e lhe retribuímos puxando-O a Ele para baixo, como que a pedir que venha abençoar o erro em que nos atolamos e o partilhe connosco. Afogamo-nos, gritamos pela ajuda de Deus, mas só aceitamos a sua mão estendida se Deus sujeitar a posição da sua mão auxiliadora à nossa ignorância, ambição à nossa hipocrisia.
Quando se fala da peste negra que assolou toda a Terra na Idade Média e se elencam as dificuldades que houve para a conter e cuidar das pessoas, são sempre referidos o atraso da Ciência e o obscurantismo da Igreja nessa época. São acusações absolutamente irracionais. A Ciência, em cada época, tem o desenvolvimento próprio dessa época, influenciado por uma infindável lista de factores. Quanto à actividade da Igreja resumia-se a digerir a ignorância que era comum a todos na Idade Média e a cuidar dos doentes, como tem feito ao longo dos tempos, mais que não fosse, acolhendo-os e animando-os com aquilo que hoje denominamos de cuidados paliativos. Destacamos neste ponto de vista os testemunhos de vida de São João de Deus e Santa Madre Teresa de Calcutá, entre tantos santos e santas, a grande maioria dos quais sem honras de altar na Terra.
Conheço muitos casos de pessoas que mudaram de vida depois de se terem encontrado com Deus durante um acidente, uma doença ou outro transtorno. Todos conhecemos, afinal, casos destes. Quando estamos sujeitos a dor e sofrimento, abandonados, falidos, moribundos e humilhados, temos maior disponibilidade para descobrimos a presença de Deus e facilidade em escutarmos a sua voz, do que temos a sorte de receber uma fortuna, herdada, ao jogo, mesmo encontrada fruto do acaso.
Sobre a pandemia do coronavírus paira uma nuvem de suspeição. Terá causas naturais ou terá sido obra de cientistas a trabalhar para algum governo ou força organizada maligna? Qualquer que seja a resposta, Deus permitiu.
Em vez de questionarmos a existência desta doença ou a benignidade, ou mesmo existência, de Deus por a ter permitido, olhemos para dentro de nós mesmos e procuremos os frutos que possamos colher deste tempo tão turbulento no mundo. Que fracção de culpa terão certas pessoas, no que se passou e como se passou? Durante meses uma parte da humanidade parou e alterou o seu modo de vida. As empresas descobriram que pode ser mais vantajoso usar o sistema de teletrabalho que manter os empregados debaixo de olho e controlar o tempo que gastam a ir à casa de banho, a tomar café ou dizer alguma coisa ao colega do lado. A pandemia ainda não terminou e desconhecemos as consequências que ela deixará, principalmente a nível económico.
E nós, todos nós, digamos, os sobreviventes, que aprendemos? Que lições tirámos? Que comportamentos adoptámos?

Imagem de instalação improvisada - Gripe Espanhola - Foi há 100 anos


Aproveitámos para olhar para dentro, pensar e repensar as nossas vidas? Tivemos tempo para reflectir sobre o que fazemos no mundo, se estamos a colaborar com a obra criadora de Deus ou se estamos a participar no que foi preparado para nós vivermos e sermos felizes?

Aqueles que durante o tempo da pandemia, do Estado de Emergência, que ficaram sem trabalhar ou em formas alternativas de trabalho, fizeram muito bem se utilizaram o tempo como se estivessem num retiro. Se utilizaram mais tempo para o estudo da Bíblia e outras leituras edificantes, ou mesmo recreativas em vez dos videojogos viciantes, mais tempo para rezar, mais tempo para pensar no que fazemos na vida, à maneira de exame de consciência de uma vida como recomendava o Padre Cruz, que necessariamente se reflectiria num projecto de melhor aproveitamento da vida depois da pandemia.

Tempo para reflectir em como somos efémeros, em como tudo é precário. Como dificilmente reconhecemos o valor que tem cada instante da vida, que não sabemos quando termina. Sabemos que morremos, mas não sabemos o dia nem a hora. Que bagagem temos preparada para a viagem depois da morte? Que herança temos preparada para os que abandonarmos quando morrermos? Que testemunho de vida andamos a dar, um que nos envergonhe ou que nos dignifique, depois da morte?
Há tantas razões para terminarmos o tempo da pandemia sendo pessoas melhores, se usarmos esse tempo para aprofundar o conhecimento das pessoas, do mundo e cada um de si mesmo.

Vemos que subitamente milhares de pessoas morrem, como numa guerra. Era justo que se nos abrisse a cabeça e entendêssemos que as guerras, as quezílias, os mal-entendidos, os que exploramos e maltratamos, são males piores que a pandemia. Mas as guerras não pararam, a violência dentro das famílias não parou, os exageros na condução na estrada mantiveram-se, provocando vítimas inocentes. Houve mesmo quem aproveitasse para lançar mísseis. Neste tempo tão apropriado para exame de consciência e tentativa de nos autocorrigirmos, houve países que esconderam dados relativos à doença, não contribuindo para um esforço comum de salvar vidas. Houve e há países e pessoas ansiosas por terem o exclusivo da venda dos medicamentos e vacinas que venham a ser descobertos e assim acumularem dinheiro sobre os cadáveres e as famílias afectadas. Há países que se preocuparam em manter a economia a funcionar, alegando que é preciso evitar o caos e a fome, mas são normalmente países ricos onde há meios suficientes para alimentar milhões de pessoas.
Fomos e somos todos atacados pelo mesmo inimigo, mas não somos capazes de nos unirmos e juntarmos forças para o vencer. Numa união de guerra tão grave, é preciso que cada um dos membros se humilhe, se rebaixe, mostre todo o jogo, para que cada um dos outros, e todos em conjunto, possam descarregar toda a energia sobre inimigo, no coronavírus.

Mas voltemos às nossas vidas privadas, às nossas famílias.
Deus deu-nos a oportunidade de colaborarmos como que numa nova criação, de partirmos quase do zero à conquista de um mundo melhor para os homens, as mulheres, as crianças, os velhos, os animais, sem fome, sem guerras. Mas o que se vê é que ainda antes de a pandemia acabar já todos esqueceram os trabalhos e os medos por que ainda estamos a passar.
Afinal, desde que haja praia, que mais pode interessar as pessoas? Que mais as pode incomodar?

Este texto, infelizmente, não vai mudar nada. Quando voltar a próxima pandemia, apenas encolherão os ombros como se o sofrimento fosse uma fatalidade que só nos traz infelicidade. Não é verdade. Em grande parte das vezes, o sofrimento é causado pelas pessoas, no seu egoísmo, na sua desatenção aos outros, na ânsia de poder, de ser o primeiro, o mais rico, o mais elogiado. A infelicidade somos nós que a fazemos, tantas vezes. Os que matam violentamente dentro da sua família, os que matam pela maneira como conduzem os automóveis, os que matam por fabricarem e venderem produtos que lhes são muito lucrativos, mas venenosos para quem os consome.

Passamos por esta vida como se de uma casa de consumo de droga se tratasse: não resistimos à tentação de nos drogarmos com a ganância e a futilidade. Afinal até somos capazes de responder, àquele que nos pede esmola, depois de o roubarmos:
- Vai trabalhar, vadio.

Orlando de Carvalho

1 comentário:


  1. Um texto cheio de meias verdades, sem dúvida repassado de alguns princípios cristãos. Referem-se inúmeras causas da situação, dando-lhes a paternidade difusa do "nós".
    Nem uma referência à causa maior, não cristã, desta situação: o endeusamento do grande motor da modernidade sócio-económica: A competição! Esta tem como único avale, a eficiência.
    Em que parte do Novo Testamento é recomendada a competição?
    Não se vêm as poderosas religiões cristãs a alertar que o rei vai nu! Porquê? Não tiveram tempo durante mais de um milénio em pelejas com os humanos?
    Por favor, deixem de manipular sem escrúpulos o conceito de Deus…
    Cuidado com a pandemia.
    Saudações
    M Pires

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