A Pandemia vem de Deus?
Tantas vezes chamamos por “meu Deus”, o que é uma coisa
intrinsecamente boa, porque estamos a invocar o nome de Deus, pedindo-lhe
ajuda, e acabamos por não reparar quando Deus vem ao nosso encontro e nos quer
dar a mão no caminho para a santidade.
Com alguma ironia, direi que chamamos por Deus, imploramos a
sua ajuda, de maneira directa ou pedindo a mediação de sua Mãe ou de algum
santo, mas acreditamos pouco em Deus, nem sequer o queremos por perto, muitas
dessas vezes. Chamamos por Deus e parecemos reconhecê-lO como o Criador, a
Sabedoria, a Bondade, mas exigimos que Ele se mantenha ao comando do Cosmos, do
Céu e da Terra, cumprindo escrupulosamente os nossos desejos, que deste modo se
transformam nas nossas ordens a Deus. Não nos convém que a vida siga de acordo
com os planos de Deus, a não ser que eles coincidam com os nossos projectos e
desejos.
Se acreditássemos verdadeiramente em Deus, no seu Amor e na
sua Sabedoria, procuraríamos entender o Cosmos como ele é e não transformar a
Obra de Deus ao nosso jeito. Nem sequer nos incomodamos a tentar perceber a
divina perspectiva, tão grande é a convicção que temos de sermos donos da
verdade, conhecedores de toda a ciência. Afinal, estamos constantemente a trepar
para chegarmos em primeiro lugar. Numa louca busca da nossa comodidade
individual, do nosso bem-estar, julgamos que a justiça apenas se realiza se
temos poder, força e dinheiro. E saúde.
Deus sofre quando se depara com os nossos erros, as nossas
asneiras, as nossas mentiras, os nossos pecados. Sofre quando nos estende a mão
para nos elevar e lhe retribuímos puxando-O a Ele para baixo, como que a pedir
que venha abençoar o erro em que nos atolamos e o partilhe connosco. Afogamo-nos,
gritamos pela ajuda de Deus, mas só aceitamos a sua mão estendida se Deus
sujeitar a posição da sua mão auxiliadora à nossa ignorância, ambição à nossa
hipocrisia.
Quando se fala da peste negra que assolou toda a Terra na
Idade Média e se elencam as dificuldades que houve para a conter e cuidar das
pessoas, são sempre referidos o atraso da Ciência e o obscurantismo da Igreja
nessa época. São acusações absolutamente irracionais. A Ciência, em cada época,
tem o desenvolvimento próprio dessa época, influenciado por uma infindável
lista de factores. Quanto à actividade da Igreja resumia-se a digerir a
ignorância que era comum a todos na Idade Média e a cuidar dos doentes, como
tem feito ao longo dos tempos, mais que não fosse, acolhendo-os e animando-os
com aquilo que hoje denominamos de cuidados paliativos. Destacamos neste ponto
de vista os testemunhos de vida de São João de Deus e Santa Madre Teresa de
Calcutá, entre tantos santos e santas, a grande maioria dos quais sem honras de
altar na Terra.
Conheço muitos casos de pessoas que mudaram de vida depois
de se terem encontrado com Deus durante um acidente, uma doença ou outro
transtorno. Todos conhecemos, afinal, casos destes. Quando estamos sujeitos a
dor e sofrimento, abandonados, falidos, moribundos e humilhados, temos maior
disponibilidade para descobrimos a presença de Deus e facilidade em escutarmos
a sua voz, do que temos a sorte de receber uma fortuna, herdada, ao jogo, mesmo
encontrada fruto do acaso.
Sobre a pandemia do coronavírus paira uma nuvem de
suspeição. Terá causas naturais ou terá sido obra de cientistas a trabalhar
para algum governo ou força organizada maligna? Qualquer que seja a resposta,
Deus permitiu.
Em vez de questionarmos a existência desta doença ou a
benignidade, ou mesmo existência, de Deus por a ter permitido, olhemos para
dentro de nós mesmos e procuremos os frutos que possamos colher deste tempo tão
turbulento no mundo. Que fracção de culpa terão certas pessoas, no que se
passou e como se passou? Durante meses uma parte da humanidade parou e alterou
o seu modo de vida. As empresas descobriram que pode ser mais vantajoso usar o
sistema de teletrabalho que manter os empregados debaixo de olho e controlar o
tempo que gastam a ir à casa de banho, a tomar café ou dizer alguma coisa ao
colega do lado. A pandemia ainda não terminou e desconhecemos as consequências
que ela deixará, principalmente a nível económico.
E nós, todos nós, digamos, os sobreviventes, que aprendemos?
Que lições tirámos? Que comportamentos adoptámos?
Imagem de instalação improvisada - Gripe Espanhola - Foi há 100 anos
Aproveitámos para olhar para dentro, pensar e repensar as
nossas vidas? Tivemos tempo para reflectir sobre o que fazemos no mundo, se
estamos a colaborar com a obra criadora de Deus ou se estamos a participar no
que foi preparado para nós vivermos e sermos felizes?
Aqueles que durante o tempo da pandemia, do Estado de
Emergência, que ficaram sem trabalhar ou em formas alternativas de trabalho,
fizeram muito bem se utilizaram o tempo como se estivessem num retiro. Se
utilizaram mais tempo para o estudo da Bíblia e outras leituras edificantes, ou
mesmo recreativas em vez dos videojogos viciantes, mais tempo para rezar, mais
tempo para pensar no que fazemos na vida, à maneira de exame de consciência de
uma vida como recomendava o Padre Cruz, que necessariamente se reflectiria num
projecto de melhor aproveitamento da vida depois da pandemia.
Tempo para reflectir em como somos efémeros, em como tudo é
precário. Como dificilmente reconhecemos o valor que tem cada instante da vida,
que não sabemos quando termina. Sabemos que morremos, mas não sabemos o dia nem
a hora. Que bagagem temos preparada para a viagem depois da morte? Que herança
temos preparada para os que abandonarmos quando morrermos? Que testemunho de
vida andamos a dar, um que nos envergonhe ou que nos dignifique, depois da
morte?
Há tantas razões para terminarmos o tempo da pandemia sendo
pessoas melhores, se usarmos esse tempo para aprofundar o conhecimento das
pessoas, do mundo e cada um de si mesmo.
Vemos que subitamente milhares de pessoas morrem, como numa
guerra. Era justo que se nos abrisse a cabeça e entendêssemos que as guerras, as
quezílias, os mal-entendidos, os que exploramos e maltratamos, são males piores
que a pandemia. Mas as guerras não pararam, a violência dentro das famílias não
parou, os exageros na condução na estrada mantiveram-se, provocando vítimas
inocentes. Houve mesmo quem aproveitasse para lançar mísseis. Neste tempo tão
apropriado para exame de consciência e tentativa de nos autocorrigirmos, houve
países que esconderam dados relativos à doença, não contribuindo para um
esforço comum de salvar vidas. Houve e há países e pessoas ansiosas por terem o
exclusivo da venda dos medicamentos e vacinas que venham a ser descobertos e
assim acumularem dinheiro sobre os cadáveres e as famílias afectadas. Há países
que se preocuparam em manter a economia a funcionar, alegando que é preciso
evitar o caos e a fome, mas são normalmente países ricos onde há meios
suficientes para alimentar milhões de pessoas.
Fomos e somos todos atacados pelo mesmo inimigo, mas não
somos capazes de nos unirmos e juntarmos forças para o vencer. Numa união de
guerra tão grave, é preciso que cada um dos membros se humilhe, se rebaixe,
mostre todo o jogo, para que cada um dos outros, e todos em conjunto, possam descarregar
toda a energia sobre inimigo, no coronavírus.
Mas voltemos às nossas vidas privadas, às nossas famílias.
Deus deu-nos a oportunidade de colaborarmos como que numa
nova criação, de partirmos quase do zero à conquista de um mundo melhor para os
homens, as mulheres, as crianças, os velhos, os animais, sem fome, sem guerras.
Mas o que se vê é que ainda antes de a pandemia acabar já todos esqueceram os
trabalhos e os medos por que ainda estamos a passar.
Afinal, desde que haja praia, que mais pode interessar as
pessoas? Que mais as pode incomodar?
Este texto, infelizmente, não vai mudar nada. Quando voltar
a próxima pandemia, apenas encolherão os ombros como se o sofrimento fosse uma
fatalidade que só nos traz infelicidade. Não é verdade. Em grande parte das
vezes, o sofrimento é causado pelas pessoas, no seu egoísmo, na sua desatenção
aos outros, na ânsia de poder, de ser o primeiro, o mais rico, o mais elogiado.
A infelicidade somos nós que a fazemos, tantas vezes. Os que matam
violentamente dentro da sua família, os que matam pela maneira como conduzem os
automóveis, os que matam por fabricarem e venderem produtos que lhes são muito
lucrativos, mas venenosos para quem os consome.
Passamos por esta vida como se de uma casa de consumo de
droga se tratasse: não resistimos à tentação de nos drogarmos com a ganância e
a futilidade. Afinal até somos capazes de responder, àquele que nos pede esmola,
depois de o roubarmos:
- Vai trabalhar, vadio.
Orlando de Carvalho
ResponderEliminarUm texto cheio de meias verdades, sem dúvida repassado de alguns princípios cristãos. Referem-se inúmeras causas da situação, dando-lhes a paternidade difusa do "nós".
Nem uma referência à causa maior, não cristã, desta situação: o endeusamento do grande motor da modernidade sócio-económica: A competição! Esta tem como único avale, a eficiência.
Em que parte do Novo Testamento é recomendada a competição?
Não se vêm as poderosas religiões cristãs a alertar que o rei vai nu! Porquê? Não tiveram tempo durante mais de um milénio em pelejas com os humanos?
Por favor, deixem de manipular sem escrúpulos o conceito de Deus…
Cuidado com a pandemia.
Saudações
M Pires