terça-feira, 19 de agosto de 2014

O primeiro sacramento


O primeiro sacramento, numa ordenação que tenha em conta a sequência porque são administrados pela Igreja é o Baptismo. Mas podemos imaginar uma maneira diferente para a determinação do primeiro sacramento. Antes de Jesus, já havia vida sacramental, o Espírito Santo já se manifestava entre os homens e nos homens.
Centremo-nos na vida humana conforme a Sagrada Escritura no-la apresenta.
[No sexto dia] Deus disse: «Que a Terra produza seres vivos conforme a espécie de cada um: animais domésticos, répteis e feras, cada um conforme a sua espécie». E assim se fez. Deus fez as feras da Terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais domésticos, cada um conforme a sua espécie; e os répteis do solo, cada um conforme a sua espécie. E Deus viu que era bom. Então Deus disse: «Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra». Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou; e criou-os homem e mulher.
Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra; dominai os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra». E Deus disse: «Vede! Entrego-vos todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a Terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vós. E a todas as feras, a todas as aves do céu e a todos os seres que rastejam sobre a terra e nos quais há respiração de vida, dou a relva como alimento». E assim se fez. Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o sexto dia. (Génesis 1, 24-31)
Embora a uma bênção não corresponda necessariamente um sacramento, a cada sacramento está associada uma bênção, uma bênção especial e uma missão que deve ser realizada com a ajuda dessa bênção.
Ora, o texto do Livro do Génesis contém a primeira bênção bíblica. A que eu ouso chamar sacramento. Deus moldou uma criatura à sua imagem e, uma criatura dualista porque contém em si duas partes que são complementares, que se ajustam. Sabemos hoje cientificamente que esse ajustamento não é apenas físico, mas fisiológico, intelectual, emocional, funcional, energético, social.
A primeira bênção de Deus surge-nos como sacramento. Deus abençoa o homem na sua dualidade. Por isto, será melhor chamá-lo de pessoa e não apenas de homem. Porque Deus criou a pessoa homem e mulher, intrinsecamente ligados. A missão associada a este sacramento está explícita no texto bíblico:
Sede fecundos!
Multiplicai-vos!
Enchei e submetei a terra!
Submetei a Natureza!
A Natureza será o vosso sustento!
O matrimónio é a fórmula actual deste primeiro sacramento de que Deus foi ministro. Ao contrário do que sucede na actualidade entre os cristãos, o casamento não foi uma opção entre um homem e uma mulher que Deus abençoou, mas uma escolha de Deus. O ministro deste primeiro matrimónio, ao contrário do que sucede entre os cristãos de hoje, em que os ministros são os noivos, e que foi também o primeiro sacramento da História, foi Deus. O Senhor criou os noivos, apresentou-os, abençoou-os e deu-lhes uma missão concreta para realizarem sob aquela bênção, a fecundidade. A continuação da espécie humana na terra passou a ficar a cargo daquele casal e da vida que deles emanasse, estabelecendo-se uma parceria de Criação na continuidade entre Deus e as pessoas. A preservação da espécie humana também ficou confiada às pessoas. Submetei a Natureza.
Nem todos podemos responder do mesmo modo a esta solicitação para ser colaboradores activos com a Criação, neste sentido demográfico e sexuado. Jesus não o foi. Qualquer celibatário pode receber esta bênção de modo diferente daquilo a que chamamos matrimónio. Os que educam as crianças que são filhas de outros, os que extraem da terra alimento que é sustento de vida para os outros, tantos, tantos que vivem a bênção de Deus, dada aos nossos pais Adão e Eva de modo tão diverso.
Nos nossos dias, fala-se de divórcio, fala-se de uniões de pessoas homossexuais, fala-se de aborto e de eutanásia. Normalmente estas atitudes são apresentadas como reivindicações justas pelas pessoas a quem interessam. A minha proposta vai no sentido de, em vez de reivindicar esse direito, as pessoas interessadas tentem olhar para si mesmas como criaturas abençoadas por Deus, tão abençoadas que são imagem de Deus, são filhas e filhos de Deus. É à luz desta bênção que estes devem olhar para as suas vidas e as suas opções. Não só estes, mas todos nós. Em relação a nós e em relação a estes irmãos.
Sabemos que há bebés que nascem com órgãos sexuais indefinidos, sem órgãos sexuais ou com órgãos sexuais dos dois sexos. É difícil entender como isto pode suceder. Para nós humanos, crentes num Deus misericordioso, isto pode parecer uma limitação ao poder e ao amor de Deus, um erro da Natureza. Pois. Convém confiar sempre no amor extremoso de Deus, na sua ternura por nós, na divina misericórdia, que não chocaram com o santo sacrifício da Cruz, nem chocam com as nossas cruzes quotidianas. Também nós temos de ser misericordiosos, uns para com os outros. Para com os que compreendem aquela bênção de Deus de modo diferente de nós; para com aqueles que recebem connosco a bênção e precisam depois da nossa paciência e do nosso perdão, pela dificuldade na fidelidade ao compromisso sacramental. Esta fidelidade pode ser no sentido habitual da fidelidade conjugal, mas em muitos outros aspectos: quem agride o cônjuge, quem fala mal do cônjuge, quem não se doa ao cônjuge, está a amesquinhar a bênção divina do matrimónio. Um matrimónio sem a bênção explícita da Igreja em que os cônjuges se amam e são fiéis em todos os sentidos, parece-me bem mais matrimónio que um outro abençoado por um bispo em nome de Deus em que a fidelidade e o amor doação sejam inexistentes.

Este artigo, quem o ler, pode continuá-lo na sua vida. Foi para isso que o escrevi. Para que se releia o texto bíblico e à luz destas considerações a vida das (algumas) pessoas possa ser enriquecida. 

Orlando de Carvalho

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