sexta-feira, 23 de abril de 2021

Tempo de Deus


 Adoração do Cordeiro Místico, autor: Jan Van Eyck, 1432


 

Para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia.

 

Isto afirma S. Pedro na segunda Epístola (2Pd 3,8) e confunde-nos. Afinal o tempo existe ou é uma ilusão? Qual é a lógica do tempo?

Para nós no século XXI a questão é muito clara e também o poderia ter sido no passado se alguns cristãos se tivessem comportado como verdadeiros seguidores de Jesus e aceitado sem reservas as suas palavras. Apenas o Amor conta para Deus. Quem se perde em acessórios, em detalhes, em ninharias, fica mesmo desnorteado e perde o sentido da única coisa que interessa, cumprir o mandamento do Amor mesmo renunciando a futilidades como a lavagem das mãos antes das refeições o apedrejamento de mulheres suspeitas de adultério ou o fundamentalismo no modo de guardar o Sábado.

A Bíblia começa por narrar a Criação, que ocorre num período de seis dias, sendo o sétimo já de descanso. Mas qual será a extensão destes dias? Começámos exactamente com a resposta que São Pedro dá a esta interrogação “Para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos são como um dia”. E temos Jesus a insistir com o desprezo pelos pormenores. Interessa quem é o Criador ou se o acto da Criação de mede em horas, em séculos ou em milénios?

Qual é a extensão de um ano, nos nossos dias?

No calendário chinês, no calendário judaico, no muçulmano, ou no cristão adoptado maioritariamente? Mesmo dentro de uma cultura cristã existe o ano civil (que pode ser comum ou bissexto), o ano escolar, o ano judicial, o ano agrícola, o ano solar…

Einstein mudou o conceito clássico de tempo, ao menos em teoria, facto que referimos, mas que cuja explicação sai do âmbito deste escrito.

E há algumas curiosidades como a Semana dos 9 Dias. Trata-se da Semana Santa, também chamada por aquele nome por se considerar que tanto a Quinta-feira Santa como a Sexta-feira Santa, pela sua importância, pelo que Jesus investiu e sofreu nesses dois dias, cada um deles conta por dois.

Na liturgia também devemos considerar a Oitava do Natal e a da Páscoa. Qualquer destes dias, pela sua grande importância, tem uma duração litúrgica de 8 dias. Assim, o dia de Natal, agendado a 25 de Dezembro, prolonga-se durante oito dias, até 1 de Janeiro. Do mesmo modo, o Domingo de Páscoa se prolonga pelos oito dias seguintes, que terminam apenas no segundo Domingo de Páscoa.

Quantas festas, de um dia se prolongam por vários? Um feriado no dia de Todos-os-Santos é vulgarmente estendido com “pontes”, dias de férias, bónus patronais ou outros, a 3 ou 4 ou mais dias.

As novenas são conjuntos de 9 dias de preparação para uma festa. Normalmente trata-se de festejar um santo e são, portanto, dias de oração, como que uma pequena Quaresma, para a grande celebração.

Os “novendiales” são a manutenção de uma antiga tradição, de acordo com a qual, durante nove dias consecutivos, se realizam particulares celebrações da Eucaristia em sufrágio do Santo Padre defunto, a partir da missa exequial. Todos têm acesso a estas celebrações, sendo que cada uma delas é confiada a um grupo determinado, tendo em consideração a sua ligação ao Papa defunto. Os últimos “novendiales” realizaram de 8 a 16 de Abril de 2005, na sequência do falecimento de S. João Paulo II a 2 de Abril e sepultamento a 8 de Abril.[1]

 

O Prefácio X da Oração Eucarística dos Domingos do Tempo Comum revela, através da liturgia, a circularidade do tempo. Explica como o tempo não decorre apenas em extensão, como empiricamente sentimos, mas tem uma circularidade própria, a do Oitavo Dia, que o próprio Prefácio explica. Reproduzimo-lo[2]:

 

Senhor, Pai santo, fonte da verdade e da vida,

é verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação

bendizer-Vos e dar-Vos graças,

porque neste dia de festa

nos congregastes na vossa casa.

Hoje a vossa família,

reunida para escutar a palavra da salvação

e participar no pão da vida,

celebra o memorial do Senhor ressuscitado,

na esperança do domingo que não tem ocaso,

quando toda a humanidade entrar no vosso descanso.

Então veremos o vosso rosto

e louvaremos sem fim a vossa misericórdia.

Nesta feliz esperança,

com os Anjos e os Santos proclamamos a vossa glória,

cantando numa só voz:

 

Marcámos a negrito as palavras e as expressões mais fortes deste Prefácio cujo tema é o Domingo, o Dia do Senhor. Aqui se explica o significado do Domingo como Oitavo Dia.

 

Neste dia de festa congregaste na vossa casa a vossa família para escutar a Palavra da Salvação e participar no Pão da Vida, celebrar o Senhor Ressuscitado na esperança do Domingo que não tem ocaso, quando toda a humanidade entrar no vosso descanso, veremos o vosso rosto e louvaremos sem fim a vossa misericórdia, na feliz esperança.

 

O Domingo é o Dia do Senhor, é um dia sem ocaso, porque a cada Domingo sucede outro Domingo, sendo que todos eles são Dia do Senhor. Ao Dia do Senhor sucede outro Dia do Senhor, que é o mesmo, porque o Senhor é um só. Numa sucessão perpétua até ao final do tempo em que entraremos no descanso e na glória de Deus, veremos o seu rosto, que louvaremos, não num tempo, não num lugar, mas na misericórdia de Deus, onde seremos eternamente felizes.

 

Este é o tempo de Deus: um tempo que não sabemos se existe, porque a única realidade que nos é garantida é a misericórdia e a felicidade eternamente, as quais nós experienciamos desde já na celebração do Dia do Senhor.

 

Orlando de Carvalho



[1] Cf. L’Osservatore Romano, edição em português, 2005.04.16, pág. 24

[2] Missal Romano

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